segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Bom ano

Quase a chegar a 2015. 
Sabemos que uma noite igual às outras nos vai levar do ano velho para o ano novo, e que não é essa passagem noturna que transforma a vida ou muda o destino. O dia irá amanhecer igual a tantos outros, mas apesar disso, muitos de nós vão comer as passas e subir a uma cadeira, à meia-noite, fazendo força para a realização dos seus sonhos, num misto de brincadeira e coisa séria. 
Iguais às crianças, jogamos pelo seguro, não vá o diabo tecê-las e pedimos uma varinha de condão para afastar maus-olhados e convocar para os nossos dias, a presença de anjos generosos. Que nos protejam e nos favoreçam, como dizia a oração que rezava com a minha avó, todas as noites que com ela dormia Anjo da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia.

https://www.webhotel.com.pt/00021001/imagens/vela-site-1.jpgE guardava, ainda que lá mais para diante, quando fiquei mais velha, lhe tenha perdido o rasto. Mas perdemos sempre coisas quando ficamos adultos e nos apoderamos do mundo. Deixamos cair, inadvertidamente, a invenção de dias claros, por nos sentirmos, em muitos dias, cansados de acender a candeia e iluminar os caminhos. 

Nem sempre, sim, que da infância guardamos algumas réstias dentro de nós, bocados de alegria, jovialidade, mistério e fantasia, em doses suficientes para, a cada ano que passa, renovar as bem-aventuranças para nós, para os nossos e o mundo. Em jeito de fé e de pacto.   

Ainda bem que não perdemos esta infância e os seus segredos na nossa intimidade de homens e mulheres. Ainda bem que o riso nos cobre os olhos e adoça a lonjura do caminho, fazendo-nos acreditar que para além de alguma sorte ou acaso, a construção da vida nos pertence, dia após dia. E que essa epopeia é obra nossa, alicerçada em resistência, lucidez, solidariedade, liberdade, respeito e boa(s) companhia(s). 

Que 2015 surja desafiador, cheio de amizade, amor, saúde, projetos. Que saibamos e possamos fazer do novo ano, um ano novo. 
Recomecemos, de novo. Com Miguel Torga 

Recomeça...
Se puderes,
Sem angustia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiiras só metade

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.

És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga, Diário XIII

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Palavras emprestadas

Um dia de sol, a seguir ao natal. A casa em silêncio e a vontade de me encharcar de palavras, poesia e textos. Percorro os livros que o pai natal me deu. Manuel Pina, Lobo Antunes, Alice Munro. 
Depois volto a Manoel de Barros, que descobri há pouco tempo. Tão bonito e tão desafiador, poder-se assim escrever sobre a vida, desconstruindo-a.

http://tinaborba.files.wordpress.com/2011/07/passaros-paisagem-imaginaria_6449_1024x768.jpgAqui fica por palavras suas o apanhador de desperdícios, neste tempo de pseudo abundância. 


O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios
Não gosto de palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Fazer a ronda no natal

Agora que as crianças foram para casa e a sala ficou silenciosa, tenho o natal a apoderar-se de mim.  Entranha-se no corpo e no coração, invade as horas que restam das noites de sono, cola-se nas bolas que pomos na árvore, ecoa em mil pensamentos mansos. Olhamos de longe as luzes e fugimos da confusão, este natal reclama outra paz e silêncio, palavras justas, sentimentos certos, tempo que chegue para aquietar desconsolos e projetar o amor. Vivê-lo nos lugares e junto de quem é colo e regaço durante o ano. 

Por isso, já visitei amigos e inaugurei a ronda. Fizemos as filhós na casa que, desde sempre, recebe quem se cuida e se quer bem. Como uma família. Lá estivemos pela noite dentro, com a lareira acesa, rindo de quando novos também ali estávamos, as crianças a correrem com olhos brilhantes, agora já mães e pais a abraçar os seus bebés. O bacalhau e as couves, os homens a conversar, os fritos para dividir, somos muitos e levamos para outros.

Também já fui à casa que é templo de  longas conversas e confidências durante o ano. Neste natal a sala inundou-se de objetos guardados no baú, garrafas, quadros, postais, livros, tudo renovado com a atenção aos outros, os que estão no seu coração generoso. Embrulhos lindos e cuidadosamente decorados, nem na loja mais in poderíamos ter tal oferta, confirmámos o seu jeito de artesã exímia para alindar atos de amor, dedicação e respeito. A casa discreta, perfumada e com velas acesas,  um natal sóbrio e distinto. Pensado.

http://media.uccdn.com/pt/images/3/3/4/img_como_decorar_velas_para_o_natal_4433_orig.jpgTambém houve um café e sonhos na casa que é de uma pessoa só, mas que parece muitas, porque se concebe rodeada do mundo. Ali estivemos a mitigar vidas, contando e recontando pequenas parcelas dos nossos dias, filhos e escola, sonhos e espantos, fazemos resumos em tardes curtas, sabemos da lonjura do que nos une. Uma música suave e enfeites de natal, anjos e velas, árvores e panos bordados, uma suavidade discreta e quente. Mesmo num dia de frio.

E assim vai a nossa ronda que ainda não terminou, temos outros encontros marcados, amigas e amigos do peito, gostamos de manter as tradições e sentir o que fica do que passa. O que se mantém vivo e pertença de nós, depois de desmontar a árvore e guardar o presépio. Gostamos assim deste natal, dos abraços quentes e dos afetos, de apertar as mãos e desfiar rosários. E agradecer a amizade, aquela que enlaça as rugas que vimos romper em cada rosto, os risos a esconder as lágrimas que já chorámos, a alegria a tecer o conforto de nos termos por perto.

E assim será natal, longe de confusões e perto de mim e dos meus. Por isso, falta ainda nesta ronda, o encontro com os que já não estão. Guardarei silêncio para eles e não deixarei de os convocar, não há natal sem a sua memória. Andarão por entre os meus passos e os meus gestos, o que sou a eles o devo. Acenderei, para confirmar a luz da sua presença, umas velas vermelhas pela sala. E assim se cumprirá o natal, em ronda de afetos e amor.
Bom natal.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Natal para todos

Sábado de chuva em tempo de quase natal. Apesar das luzes e do brilho, do muito trabalho e algum turbilhão, as gotas na janela a emprestar ao dia, tons de cinza escorridos, a lembrar que o tempo se esvai por entre os dedos, deixando-nos com uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma. E no entanto respiramos, debatemo-nos por causas e compromissos, agendamos sonhos e futuros, temos em cada dia a certeza de que prosseguir é o único sentido. Não só no natal, mas durante todo o ano. 
 
Sábado de chuva, em tempo (quase) de Natal. Cá por casa, já montámos a árvore e colocámos os enfeites nos sítios do costume, gostamos de manter as tradições, do baú saem sempre os anjos e as botas feitas no jardim-de-infância pelos rapazes, que agora estão homens e olham para tudo com o sorriso do costume. Também expomos postais escritos por amigos, alguns já não estão fisicamente por perto, mas permanecem intactos e inquebráveis no nosso coração e na nossa vida. Vale a pena torná-los visíveis e presentes nos dias de festa do amor. Os amigos são o nosso bem maior, as nossas ofertas verdadeiras.

http://ambientudo.no.sapo.pt/images/PaiNatal.gifSábado de chuva, em tempo (quase) de Natal. Na escola as crianças andam mais contentes e agitadas, os olhos brilham e o corpo pula, muitos desejos em formas de perguntas, Manela o pai existe mesmo? Manela, o pai natal dá sempre presentes? e nós a devolver as interrogações, para não matarmos (indevidamente) a fantasia, para saber o que esperam ouvir, para não prometer sem cumprir. E fazem desenhos, cantam e dançam, mostram sapatos dados e gorros quentes, que o frio aperta e eu gostava de ter roupa no natal, para trazer para a escola. E bonecas e jogos e bolas. Com descrição e recato, não pedem muito, a abundância não é uma experiência do seu tempo e da sua condição. 

E precisam de brinquedos, porque se batem sem fim por um berlinde, choros, brigas e pedidos. Precisam de brinquedos e vão tê-los, mobilizámos outros e acolheram a ideia, gente interessada e sensível, quem mais tem pode dar, os excessos de uns são o essencial de outros. Não devia ser assim, a repartição dos bens devia ser (mais) equitativa e justa, uma decisão política e não atos de solidariedade, mas não sendo possível, façamos o que nos compete e falemos alto sobre desigualdades, para dizer ao mundo e para que o mundo não se esqueça. Nem sempre é bem entendido, o incómodo gera olhares de cansaço, porque repete ela sempre as mesmas coisas? Porque a vida custa a mudar, os destinos fazem-se diariamente e o tempo não se compadece com demoras e inércias.

Sábado de chuva, em tempo (quase) de Natal. Apesar da chuva e das gotas na janela, vai haver sol em alguns lugares. E risos de crianças à volta da árvore de natal e dos presentes. E gestos amigos e beijos doces. E sonhos na mesa, com uma toalha bonita.  E vai ser bom. 
Vai ser natal, gostamos de cumprir as tradições... 

domingo, 7 de dezembro de 2014

Falar e pensar(se)

Andou quase toda a semana em reboliço, inquieta, de espaço em espaço, iniciando atividades sem as terminar, mexendo e tirando objetos dos espaços, conflituando com amigas, interrompendo as conversas, chorando ou protestando. Na quinta-feira, entornou um bocado de leite na mesa e quando vi, misturava tintas, empurrado e deixando cair a mistura no chão. 
Depois de limparmos tudo, disse-lhe que queria conversar com ela e perguntei-lhe se me sabia explicar porque tinha feito aquilo, em vez de apenas limpar o leite. Ficou em silêncio e disse
- Deixa-me pensar
- Pois claro, pensa...
Esteve em silêncio e depois disse
- Passam-me assim estas ideias pela cabeça e depois eu faço
- E que coisas são?
- São coisas assim diferentes, para eu fazer... coisas assim diferentes...não ser bem comportada...
- E sabes porque te passam essas coisas pela cabeça?
- Passam-me essas coisas pela cabeça...que dizer eu só sei dizer a parte que te disse, que elas me passam pela cabeça, a outra parte que tu perguntaste, eu não sei...é difícil...

Fiquei a olhar para ela, mexi-lhe no cabelo e tive que concordar. Pensei que a outra parte, aquela que comanda ações menos adequadas do ponto de vista da relação com os outros, os espaços e os acontecimentos, é difícil de narrar pelas crianças, porque lhes está vedada em termos de consciência e pensamento. Agem sem que saibam porquê e para quê e compete ao educador e à sua capacidade de escuta e observação, ler para além do vísível e do imediato, tentando alcançar as origens e a razão dos comportamentos menos positivos. Não se trata, contudo, de encontrar as explicações tantas vezes leves e pouco fundamentadas para a vida que fervilha dentro de cada um, mas aliar, numa dimensão reticular, compreensão e principalmente estratégias para a mudança. Os meninos e meninas que fazem birras, batem, desafiam os adultos, rasgam os trabalhos dos outros, esperam que os contenham, os amparem  e os libertem das amarras que os aprisionam dentro de si.

http://images3.minhavida.com.br/imagensConteudo/13989/sexismo_13989_24815.jpgNão é fácil, como disse a M., tanto mais que não se trata apenas de um menino, mas dos ecos, em muitos meninos, de histórias de dores, ausências, tristezas, carências, que encontram na vivência da sala o espaço certo para se expressarem e virem à luz do dia.
Num processo de projeção, mandam contra nós, as mesmas atitudes e comportamentos que desde bebés foram moldando no seio das famílias e da comunidade a que pertencem.

As estratégias para contrariar este estado de coisas, morrem tantas vezes na praia e tenho para mim que as falas - dos crescidos e dos pequenos - são um instrumento valioso para nos ligar, construir sentido para o que somos e queremos vir a ser.
Um instrumento lento, pois, mas espero que poderoso e transformador, ainda que não único, porque às vezes apenas falar não basta. Um instrumento que possibilita também ao educador repensar-se e repensar o currículo e a sua função no grupo.

De resto, vamos vendo (tímidas) modificações nos comportamentos. E confirmações do que somos e fazemos. Como no outro dia em que falámos do que os meninos e meninas queriam ser quando fossem grandes. Depois de dizerem de sua justiça (médica de bebés, médica de animais, cabeleireira, policia, bombeiro, camionista, comboionista, bailarina, mãe...), vimos o que era preciso aprender para ter cada profissão e poder alcançá-la, no futuro. Nessa conversa um dos meninos, disse-me
- E tu, Manela, o que queres ser?
Ía responder "já sou educadora", mas disse, quase sem pensar
- Quero ser uma educadora feliz, convosco.
Ficaram a olhar-me, em silêncio, alguns com um sorriso e ele disse
- Eu acho que tu és a melhor educadora do mundo...
- E porquê, sabes-me dizer?
- Olha, porque...quando me encosto a ti, tu és quentinha como a minha mãe.

Fiquei sem resposta a pensar que estava tudo dito e tudo por dizer. E fazer. Dei por mim a pensar em como esta relação de afeto é boa e quente e reconfortante, mas como, talvez, possa ser, por si só, uma armadilha na construção de novos sentidos e novas atitudes e disposições. E lembrei-me do João dos Santos e do seu texto "tire a mãe da boca e aprenda matemática com as tias", onde se reflete sobre a necessidade de construir maior autonomia e distanciamento para que as aprendizagens tenham lugar.

Já tenho TPC para a interrupção do período letivo, no natal. Pensar se estarei a ser mais mãe que educadora ou por onde passa o equilíbrio entre estas figuras de referência, o que significa, entre muitas outras coisas, repensar o currículo na sua dimensão do desenvolvimento pessoal e social e o meu lugar como educadora, neste grupo.
Será que vou ter tempo para comer as sonhos de natal?

domingo, 30 de novembro de 2014

Infância(s) e contexto(s)

Mais um sábado pedagógico. Obrigada às oradoras, Adelaide e Esmeralda por tão bem retratarem o seu oficio e nos oferecerem relatos de práticas tão sistemáticas, transparentes e promotoras de uma escola de cultura e democracia. Rodeadas das produções e das falas das crianças, ali estiveram a (re)afirmar o seu lugar e função nos projetos que dinamizam no quotidiano da sala de aula, como estratégia para as aprendizagens significativas. Assim o defenderam, num discurso simultaneamente racional e afetivo. Ser professor assim exige organização, vigilância permanente (de princípios, objetivos, modos de fazer), estudo, escrita, reflexão. E sobretudo lealdade e coerência, consigo próprio, com as crianças e o com grupo de companheiros de jornada. Como ninguém nasce ensinado, é fundamental a cooperação entre iguais.  E entre grandes e pequenos. Esta é também a lógica dos projetos, como nos revelaram nesta manhã. 

No intervalo, percorri o colégio (Cantinho dos Amigos) que nos acolheu com simpatia, prática que já tem história. E história tem também a construção dos cenários educativos que podemos ver nas salas e nos diferentes espaços da casa. Para além da funcionalidade, é bonito o que se vê. As obras das crianças e das famílias ali estão, bem cuidadas e estrategicamente pensadas para documentar o trabalho pedagógico e o projeto educativo. Pinturas, desenhos, fotografias, exposição de brinquedos (no contexto do dia nacional do pijama e dos direitos das crianças), tudo muito bem cuidado, com cor, estética, legendas, frases, ideias. Nas salas, a organização dos instrumentos de regulação do grupo, os inventários, os espaços e áreas de trabalho, a diversidade das produções, a identidade dos grupos, as histórias vividas e registadas. E claro, os equipamentos, adequados, bonitos, cuidados.

http://portal.aprendiz.uol.com.br/wp-content/uploads/2013/03/jogos-educativos-escola-cred-fotolia.jpg
Uma manhã cheia, com muito sol e eu a escurecer por dentro. Cheia de alegria por renovar os meus princípios e a minha convicção, mas a estremecer com os lugares de sombra, esses que ofuscam as conquistas e nos tolhem as ousadias. Eu a pensar e a rever o que faço menos bem. Eu a rebuscar o que em mim ainda persiste da velha escola.

Eu a comparar os espaços, os contextos, as famílias. Eu a refletir sobre o currículo que consigo construir contra o(s) currículo(s) que vejo praticado(s). Eu a desejar ser muito melhor, como pessoa e profissional, para me enlaçar plenamente no meu contexto e não sonhar com os outros, os que nos devolvem a imagem que queremos ver no espelho da nossa identidade.

E assim vim para casa, entre o prazer e o cansaço de ser educadora onde sou. Com vontades de outros mundos, mais abertos e comuns, mais livres e pacíficos, mais normalizados? Assim vim para casa e depois escrevi este texto. Eu sei que há coisas que talvez não se devam escrever, não é politicamente correto fazer comparações ou cobiçar contextos alheios. Sei disso tudo, uma parte de mim, sabe disso tudo. A outra parte reclama dias lisos e janelas frescas de afeto e acalmia para as crianças crescerem com risos cristalinos e sobretudo com igualdade de oportunidades e respeito pelos seus direitos.

Aqui fica  o poema "Traduzir-se" (Ferreira Goulart) de que gosto muito e que leio, quando a alma anda entre cá e lá. Como hoje.

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Telegrama

Procuro-te nos vales da minha memória e apareces sorridente, em forma de retrato esbatido pelo tempo. Aos poucos o teu rosto define-se, olhos, boca, cabelo, para subitamente desaparecer contra o vidro da janela.

http://4.bp.blogspot.com/_S6NiUDwOpQU/SjK7m9vE84I/AAAAAAAACYo/6WYHNp6bEN0/s320/ruazinha+desconhecida.jpgPercorro com as mãos o vidro embaciado, desenho uma espécie de rede para reter as raízes que trazes presas ao teu nome. Chamo por ele e o eco repete-o sem fim, o coração é um túnel onde as palavras germinam, agarradas às veias onde veloz corre o sangue da vida.

De resto, nada mais sei, a não ser deste dia de chuva mansa, capaz de iluminar saudades  em forma de palavras escritas. Lanço-as por aqui, um pouco à toa, para que não consumam inutilmente os lugares de descanso dos nossos sonhos.

sábado, 22 de novembro de 2014

Envolvimento e participação

Com algum cuidado, lá acertámos os dias para virem à escola para em conjunto com os filhos, participarem na iniciativa do dia nacional do pijama. O convite foi informal, em conversas matinais, ao pé da porta, cara a cara, num tom quase aligeirado, que por aqui, os pedidos convencionais com palavras escritas morrem na praia e produzem pouco efeito. E lá vieram, durante três dias, mães, pais, irmãs, umas acompanhadas com outras, que isto de ir sozinho à escola, fazer não se sabe bem o quê, não é fácil nem tranquilizador. E de tantas mãos empenhadas, a princípio a medo, depois com risos e conversas (mais) soltas, nasceram belos corações de cartão, decorados com panos coloridos, bocados de tule e renda, papéis brilhantes, e tantas outras coisas que foram encontrando dentro das caixas colocadas no meio das mesas. Tal como as crianças, misturaram cores, cola, recortaram, colaram, pediram apoio, negociaram com os filhos, aprumaram-se na tarefa e fizeram as suas obras. Lindas.

Também houve encomendas para quem não pode ou não quis comparecer à chamada. Distribuiu-se o material, que nem sempre existe em casa o que abunda na escola.  Se assim é, resta-nos encontrar outras estratégias e contrariar o que pode ser impedimento. Assim fizemos e ficámos expectantes sobre os resultados, depois de um ano em que as aproximações entre escola e família, foram tímidas, conflituosas, ausentes, ainda que em crescendo, desde o início do ano até ao seu final. Por isso, quando as encomendas chegaram e nos eram confiadas com gestos reservados e olhos a inquirir sobre o seu valor e perfeição, maravilhámo-nos e agradecemos. E documentámos o trabalho, devolvendo o seu interesse para uma causa comum e para cada um dos participantes. Agora temos a sala com muitos corações e retratos de famílias, que as crianças, todas as crianças, têm direito a uma família.

http://blog.fernandaferraro.com.br/wp-content/uploads/2011/06/%C3%81rvore-de-cora%C3%A7%C3%B5es.png
Se conto tudo isto e sobre isto escrevo, não é por ser coisa rara nos contextos da educação de infância. Todos conhecemos o trabalho desenvolvido pelos educadores no domínio da relação com as famílias e as diferentes estratégias .para dinamizar a sua participação no currículo. Quando comparado com outras experiências, o que se viveu na nossa sala é uma pequena gota, mas a gota certa para nos saciar a sede e a esperança nos beneficios de uma educação partilhada. Porque por aqui, ainda nos encontramos no limar das arestas, no início da caminhada, da criação de um lastro de bem viver, de acertos de linguagens e pontos de vista, da desconstrução de uma representação da escola como território exterior, pertença dos professores, e onde a participação ganha contornos de entradas abruptas para guerras, desconfianças e exigências.

Porque por aqui, as culturas em presença cresceram afastadas dos direitos de cidadania e as histórias de vida guardam memórias de escola onde o insucesso e a estranheza foram a nota dominante. Sabemos todos como a participação exige um autoconceito positivo, o reconhecimento do projeto educativo como coisa partilhada, sendo comum que quem mais participa é quem se revê e entende a cultura de que a escola é portadora. E a escola produz linguagens e projetos que muitas vezes são estranhas ao universo cultural das familias em presença.  Contrariar esta realidade é duro, difícil e exige uma extraordinária resiliência e sentido de futuro. Porque as mudanças são tão lentas que quase se desiste no limiar do cansaço.

Sei que não exagero e sei por isso que o que vivemos foi bonito e novo. Aqueceu-me o sonho e ajudou  a confirmar que se a educação não pode tudo, alguma coisa a educação pode (Paulo Freire).  Pois é, pode inundar a sala de corações coloridos, num gesto solidário de grandes e pequenos. Pode criar espaços de afirmação de pessoas que habitualmente vivem na sombra, podem ser sementes de histórias de  outras linguagens, onde todos se incluam e onde todos se revejam.

Fácil? não, não vai ser, mas já começámos. Saiba eu e toda a equipa manter a capacidade de investir, aceitar a lenta sucessão dos dias e encontrar as estratégias certas para apoiar a(s) mudança(s). Saiba eu aguentar o desejo de outra(s) realidade(s) mais fáceis e de maior feição para o trabalho educativo. Temos que estar onde somos mais necessários.

domingo, 16 de novembro de 2014

Em teu nome

Há um silêncio tranquilo e doce que envolve o dia lá fora. Em mim, um tempo lento cobre-me de nostalgia e não sei onde permanecer, desloco-me ao ritmo da saudade que tenho. O domingo já acordou, já planeei a semana de trabalho para os meninos e meninas, estou preocupada com alguns deles, tento acertar a interiorização de novas formas de estar e fazer na sala. Demoramo-nos nesta (re)construção de sentido(s) para encontrar serenidade e diminuição de conflitos e agitação. Demoramo-nos na aprendizagem da aquietação do corpo, esse instrumento primeiro para conhecer o mundo. Demoramo-nos para entender o nosso lugar ao lado de outros. Contudo, hoje, adormeço esta procura e esta preocupação, tenho a energia em saldo negativo.
Hoje em mim, o silêncio inunda quase todas as palavras que me deixaste e percorro apenas algumas memórias e o que ficou para fazer. Ainda era muito, na tua agenda a tua letra a lápis de carvão registou algumas coisas a não esquecer. Ficaram suspensas, nesse tempo não sabias que a partida estava para breve. 

http://coppaflores.com/wp-content/uploads/Destaque7-Jarra-de-Flores-02-2wjk6htkwfqysvkz5z6mtm.jpgHoje, em mim, as tuas mãos de afago nos meus bibes de menina, compondo-me a alindando-me. A tua atrapalhação quando, mais velha, te perguntei pela vida das mulheres que geram filhos, mistério que queria ver resolvido. A tua atenção e as tuas conversas a propósito do mundo, da politica e das noticias que acompanhavas a par e passo, quando mais tarde começaste a viver na nossa casa.

Hoje, em mim, a imagem das tuas mãos de costureira, oficio com que ganhaste a vida e puseste o pão de cada dia sobre a mesa. Nunca te perguntei pelos teus sonhos para além das linhas e do dedal, mas pressenti sempre no teu coração uma eterna juventude e uma curiosidade aberta para o mundo. Interessavas-te pela vida e os teus olhos menineiros, já o escrevi, pareciam faróis a precorrer a linha do horizonte, à espera de boas novas. Mantiveste sempre a esperança de confirmar outra terra à vista, mesmo nos dias de nevoeiro.

Hoje, em mim, a saudade pela tua partida, ainda que mansa e mais conformada. Já são sete anos de ausência, os rapazes cresceram e eu envelheci. Continuamos por cá a recordar-te e a rirmo-nos com as tuas frases e a leveza de mulher forte e combatente.

Vamos almoçar todos juntos, hoje, em tua honra, assim propôs o teu neto mais novo. Gostaria que nos pudesse ouvir, felizes, com as nossas memórias, à volta da mesa.  E que soubesses que isso, apesar da saudade e da nostalgia, é um dos teus legados na nossa vida. 

domingo, 9 de novembro de 2014

Acertar-me

Acertar o passo. Um dois, um dois. Respirar. Acertar o passo, de novo, um dois, um dois, ouvir o bater do coração, acertar a cadência e a serenidade, as expectativas, os pés, com firmeza, no chão. Acertar a doçura e a alegria. 

Acertar a respiração, com calma, e acertar as palavras, as ideias. Acertar o que tem que ser acertado. Acertar noutro(s) tema(s), e nas mãos teimosas e transparentes, procuram letras do alfabeto e fazem  as palavras que agora nascem. Acertar no que me persegue, do qual não sei fugir. Acertar no dar o peito às balas, porque só sei virar-me de frente para a vida. 
Acertar nos embates e na construção de dias novos. Acertar na agonia deste teimar, torná-lo mais dócil e temperado.

Acertar os muitos livros nas estantes do sótão, voltar a reler e a pensar. Com entusiasmo. Acertar o espanto que já foi lugar de chegada e agora se mantém em lugar incerto. Acertar as leituras para serem fermento do pão na mesa, todos os dias.

http://lounge.obviousmag.org/esconderijo/2012/06/05/relogioGIRL.jpgAcertar os amigos. Convocar os seus milagres de tempo partilhado, alimentar-me dos seus conselhos, colo e poiso, nas tardes longas de outono com castanhas. Acertá-los para adormecer num sono tranquilo de quem quer amanhecer.

Acertar as minhas palavras de mãe. Descobrir as mais eficazes para apoiar o crescimento de embondeiros nos quintais dos filhos que fazem casas em terras alheias.
Semear e acertar com o crescimento e a colheita dos frutos do amor.

Acertar-me. Colocar-me no meio do relógio do tempo que roda sem parar e medir-lhe a cadência e a pulsação. Acertar o meu desejo de primaveras, antes da passagem do inverno. Acertar a paciência e a persistência. 

Acertar a pedagogia. Parar a fuga para a frente e acertar o passo. Um dois, um dois, de novo, um dois, um dois. Deixar de querer dar dez passos, medir o tamanho das pernas dos meninos e meninas, olhar o caminho andado, ver o que falta percorrer. Um dois, um dois. Apenas assim, porque é assim que pode ser. Acertar o modelo pedagógico, retirar-lhe o lugar de dianteira, acertá-lo com os modos de vida vivida na sala e em casa. Acertar os risos, as mãos que batem, os colos que buscam, as falas que oferecem. 

Acertar as expectativas, acertar o olhar sobre o local. Abeirar-me do que me rodeia e ser apenas compreensivelmente ousada. Acertar as exigências sobre mim e os outros. Acertar e acertar-me.     

domingo, 2 de novembro de 2014

Saudade

Neste fim-de-semana que agora acaba, as palavras deram lugar ao silêncio e aos campos da Murtosa, a terra que te viu nascer e partir. Durante dois dias andei por lá, às voltas com a saudade e as memórias de infância, em retratos antigos de menina de franja, fios de água e luz cintilante, pés pequenos na água fresca, amoras vermelhas a derreter na boca...azedas amarelas para trincar, flores para o jogo já namoras? Quantos namorados tens? e depois mandavam-se as flores à camisola e contavam-se as que ficavam presas...e ríamo-nos pelo numero exagerado de namorados, nós que sonhávamos por um, apenas um...

Alindei a casa,  senti  o frio da manhã, apreciei o cair da tarde, perdi o olhar nos braços da ria, procurei os flamingos que descansam nas suas águas e desejei que estivesses comigo. Connosco, na nossa casa, a fazer o comer ou a ver a televisão. Ou a perguntar pelo tempo, irá chover hoje?

http://1.bp.blogspot.com/-m4L_in5C9BE/UODRQP1Q4KI/AAAAAAAAD_0/pEuxUlOjybU/s1600/moliceiro+foto+Joaquim+Aur%C3%A9lio1.jpgTalvez vá, sim mãe, aliás já choveu. E eu sinto falta de ver o teu rosto contra o vidro da janela, à procura dos sinais do tempo. O teu rosto real  com algumas rugas, moreno, doce e quente. Com o calor da vida que tinhas no teu corpo e no teu coração de mulher e mãe.  

Assim te queria e assim te pensei, neste fim-de-semana. Doeu-me um bocadinho. Não há forma de passar esta dor fina e quase sempre presente. 

Podemos disfarçar, brincar, correr e cantar muito. Dançar e escrever. Pensar sobre as crianças e o nosso trabalho, ir ao teatro e ao cinema, conversar com as nossas amigas do peito. 
Podemos fazer tudo isso  e fazemos porque a vida assim se faz. Mas nunca se desfaz a saudade que nos acompanha de mansinho quase todos os dias.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Carta ao meu filho

Faz hoje 23 anos que nasceste. 
Estou sem sono e recordo a noite e a madrugada em que, com o mano ao lado, aguardava o nascer do dia para ir para o hospital. Já estavas atrasado e a tensão alta obrigava a que não facilitássemos. Depois tu, menino doce e tranquilo, amigo da mãe, facilitaste tudo e o parto foi bom. E poético, já escrevi sobre isso. E continuo a escrever-te, como tenho feito nos últimos anos, uma prenda que não custa dinheiro e perdura para sempre. É bom que algumas prendas possam ser duradouras como o amor que sentimos.  Nos tempos que correm, eu sei que sabes que esse é um bem a não perder e a preservar. Tranquiliza-me sentir que valorizas este património de afetos e dedicação que fomos construindo uns com os outros, em família e com os amigos. Foi sempre assim e desde muito cedo.  

Relembro as nossas vindas da escola e as conversas sobre o mundo. Pois, era sobre a escola, os amigos, os professores, mas logo se espraiava para outros lugares e pessoas, para outros mundos, tu a fazeres perguntas, a pensares alto, a confirmar e a confrontar. Relembro o teu rosto. Bonito e pensativo, às vezes zangado, que nunca disfarçaste fúrias ou ideias próprias, marcando a tua posição, autonomia e liberdade. Muito cedo as senti, creio que em alguns dias me assustei, tão pequeno e tão grande, eu ainda a dar-te a mão e tu já a fugires para o outro lado da rua. Tão perto e tão longe, sempre assim andei de volta de ti, tu a dizeres para eu não ter medo porque se te tinha ensinado assim, assim estava certo e nada havia de acontecer de errado. Em alguns dias o meu coração de mãe inquieta perguntava-se se tinha dado o melhor rumo aos teus dias, nos dias em que assim o pude fazer.
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Foste sempre palavroso, pegavas nas palavras e compunhas teses e ideias, vigorosamente, a marcar o teu sentido e a tua visão. Descobri aos poucos que sonhavas o mundo muito para além do que te tinha mostrado, marcando a tua individualidade e a tua autonomia. És hoje absolutamente defensor da liberdade, da verdade, da coerência, da honestidade. Igual a ti próprio, sem dó nem piedade. E eu sorrio de alegria e de respeito por seres quem és. Mas sabes, às vezes ainda me espanto e fico em silêncio, estarrecida, com se diz lá na terra. 

Sabes filho, ser mãe é tão bom, mas muito complexo. Demora-se muito tempo a deixar de sentir os filhos  no colo. Custa largar os cheiros, o calor da pele e a necessidade de abraços. Creio que custa a separação, o cortar do cordão umbilical, que há 23 anos foi rápido, mas depois demora anos para ficar completo, sarado, diria.
É também neste dia que me lembro sempre da avó. Pela alegria que sentia contigo. Por a teres feito uma pessoa mais feliz, ela que dizia que o teu riso era tão alto e descarado que é um disparate.  Não sei a quem o rapaz sai!... Nem eu mãe, mas acho que sai a ele, respondia eu, a encolher os ombros, ainda que dando-lhe um bocado de razão.

Passados que são 23 anos de vires ao mundo, desejo que continues forte, audacioso e lutador, como no primeiro dia da tua vida. O choro de então foi um hino de amor. Que o seja sempre assim pela tua vida fora.

Parabéns, filho.

domingo, 26 de outubro de 2014

Para a Gi

Não vou poder lá estar para a ver e ouvir. Mas sei que vai ser capaz de defender o que observou, pensou e escreveu. Como não?! É educadora de profissão e agora presta-se a apresentar provas de doutoramento, caminho que fez a par e passo, depois de ter trabalhado com crianças e de ter sido professora de futuras educadoras, profissão que ainda mantém e da qual fui colega e companheira durante dez anos. 

Com ela experimentei o sentido verdadeiro do trabalho em equipa, partilhando saberes, dúvidas, entusiasmos e desafios. Lembro-me bem da planificação de aulas, da troca de documentos, da ida e da vinda de livros e textos, da parceria em aulas e de como isso era bom e poderoso. Porque nos completávamos, respeitávamos e apoiávamos com clareza e liberdade de opiniões e perspetivas. Porque demorávamos horas em conversas sobre a infância, resgatando os sonhos e as práticas de uma educação ao serviço de todas as crianças e das equipas pedagógicas. Porque nos perseguia o sonho e a utopia de apoiar a construção de uma profissão que amamos e para a qual, juntas, tentávamos o melhor e o (im)possivel. Lembro-me da simpatia, dos risos, da transparência, da alegria, da dedicação, do otimismo. E da amizade.
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Amanhã sei que estará pronta a discutir tudo o que aprendeu. Com energia, sentido de si e dos outros. Dando como testemunho o trabalho das educadoras e crianças com as quais privou para escrever e pensar a sua tese. Não podendo estar presente, ficarei com os meus meninos e meninas a pensar na enorme sorte que tive em poder ser sua colega e amiga e ter melhorado e aumentado o meu conhecimento e sensibilidade sobre as crianças e a minha profissão, nos anos que com ela convivi.

Boa sorte, Gi. Arrasa!...  

sábado, 25 de outubro de 2014

Sábado pedagógico

Sábado de formação. Hoje os jornais foram comprados a seguir ao almoço e aguardam para serem lidos à noite. Por agora, aproxima-se o fim de tarde e o sol está cor de laranja, dourado, como diz uma canção do outono, que os meninos e meninos lá da escola, às vezes, cantam. Não, não é para fixar ou aprender as estações do ano, sabemos que os meninos não aprendem assim. E como aprendem os meninos e as meninas? Se pensar no que aconteceu esta semana, e ouvindo as falas das crianças no conselho as bonecas não são para os meninos, são para as meninas, direi que as crianças aprendem o que vivem. Quando ouvi, briguei com esta ideia e confrontei-os, problematizei e não deixei cair a conversa, as razões e as opiniões, disse as minhas, alguns surpreenderam-se, outros continuaram a conversar entre si, plenamente convictos da divisão entre masculino e feminino. Confirmei de novo que os meninos e meninas aprendem com as ideias que têm e lhes são transmitidas e vividas no seu espaço familiar e comunitário, no caso, o seu bairro, que tem casas e ruas e fica junto ao rio, mas que se insere no mundo e que no dizer de um menino foi expresso como este é o meu mundo, apontando o lugar, as árvores e as casas. E os meninos e as meninas aprendem no seu mundo e no seu mundo há uma escola. Aprendem também na escola.

Na formação, hoje, ainda que conversássemos sobre os adultos e os processos de aprendizagem, fizemos o necessário isomorfismo para o trabalho com as crianças, sabendo que importa manter a capacidade de nos interrogarmos sobre o modelo utilizado, as práticas desenvolvidas, com a coragem de não ter medo de ainda não saber o que é suposto já estar dominado, partilhando com outros, dúvidas e anseios. Discutimos que aprendemos a ser professores em coletivo, com os desafios e confrontos que nos fazem, em comunidades de aprendizagem, para as quais mobilizamos os nossos saberes e a liberdade para  exprimir e dizer o que nos inquieta. A ideia de que em cooperação, podemos enriquecer o nosso património de convicções, encontrando caminhos alternativos para ensinar e aprender. Olhar de outra maneira o lugar dos alunos e dos professores na construção dos saberes. Ser capaz de os pensar com honestidade, ética e compromisso. E iluminar com racionalidade, inteligência e coragem a nossa tarefa na construção da escola.  

https://peregrinacultural.files.wordpress.com/2011/10/ricardo-ferraribrincadeiras-de-crianc3a7a-ost120-x-190.jpgE então, o que têm as leituras estereotipadas das crianças a ver com a formação da manhã? Têm tudo, quanto a mim. De regresso a casa, pensava em como é bom ter gente que nos desafia a ver para além do instituído, nós que apesar de tudo, estamos certas de que as escolas são um lugar instituinte, construídas pelas pessoas que nelas vivem e sobretudo, sem ideias gueto ou preconcebidas do que é ensinar e aprender. Mas esta perceção que temos sobre nós, enquanto inovadores, é abalada muitos dias pelas caracteristicas dos contextos e pelas representações sobre os mesmos. Sobretudo quando os contextos encerram em si problemáticas ou certas denominações. Os territórios TEIP, por exemplo, que para além da(s) sua(s) realidade(s), produzem um conjunto de representações profundamente enraizadas nas pessoas, professores, alunos, comunidade. Olhamos para os TEIP e fechamo-nos neles, submersos pelas dificuldades e pelos problemas. E à força de tanto partir de diagnósticos negativos, baixamos as expectativas, aumentamos o zoom sobre as feridas e não há maneira de ver o corpo saudável. Guiamo-nos pelo que falta, por referência a uma tabela padrão, nos saberes, atitudes e competências dos nossos meninos e meninas. Coisa perigosa esta, de nos abandonarmos às nossas representações mais profundas. E às dos outros, que à força de tanto as proclamar, quase as tornam verdadeiras.

Imunes a isto? Nem sempre, o poder dos contextos é fortíssimo. Tal como a ideia de algumas das crianças da sala de que as bonecas não são para os meninos são para as meninas, também nós temos ideias assim, preconcebidas, estranhamente preconceituosas, que nos fazem tomar por certo e determinante, o que deve ser relativo, temporário e transformador. Como dizia o meu professor Rui Canário, passar dos problemas às soluções.

Para mudar? Persistência e sentidos alerta. E um grupo de companheiros de profissão que nos faça pensar e construir as alternativas contra o sistema vigente e as ideias imobilistas. E a manter-nos vigilantes e ativos. Com as crianças? Persistência e sentidos alerta. E um grupo de pares e uma equipa capaz de fomentar pensamentos divergentes, práticas diferenciadas, propostas onde carrinhos e bonecas se misturem e desafiem as crianças a fazerem diferente e assim poderem baralhar o destino traçado de serem homens e mulheres confinados a papéis  socialmente determinados.

Eu disse que isto tinha tudo a ver umas coisas com as outras. Só não sei se fui suficientemente clara. O meu obrigada a quem dinamizou hoje a formação pela manhã (regional do MEM de Lisboa) e permitiu que eu escrevesse este texto, ainda que eventualmente confuso...a escrita tem destas coisas, porque mobiliza o que ouvimos, pensamos e ligamos entre si. E esta semana vi muita gente a olhar sem olhos de ver as minhas crianças...

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Inquietações

Alma carregada nesta sexta-feira. Um cansaço lento, um desconforto leve, mas sentido. Um não sei quê de inquietação, como se fosse necessário passar um apagador pelo quadro e começar de novo as intenções e as certezas. Escrever com maiúsculas, letras grandes, capazes de nos levarem, só pelo seu tamanho a espantos bons e a promessas credíveis, porque o futuro se joga todos os dias e os dias não se deitam fora. Os dias requerem almas confiantes e corpos ousados, capazes de correr nas estradas mais íngremes do tempo, esse elemento preciso que ligado ao espaço constitui o nosso chão e a nossa esteira para caminhos e descansos.  Senti-lo como aliado, ele que tantas vezes joga às escondidas, ora perto ora distante e nós sem jeito de compor as horas umas a seguir às outras. Não temos esse jeito, mas facilmente criamos noites longas e estranhas, foge o sono e começamos a contar ovelhas, os pensamentos à frente da realidade, à procura de outras paragens e desafios. Os sonhos. Os que trazemos na nossa mochila de gente crescida, cheia de coisas de gente pequena. Da nossa infância e da(s) infância(s) dos nossos meninos. Os sonhos assim baralham-se, ficam apertados e confundidos, já não sabem como vir à luz do dia e tornarem-se uma certeza boa. 

http://rlv.zcache.com/rainbow_question_marks_print-re608b0fd336b482892ad32f9fcb18f5c_wvm_8byvr_512.jpgEstamos assim nesta sexta-feira, dia por excelência de viver preguiças, que hoje fugiram para dar lugar a pequenas inquietações. E dúvidas.

E o que tem isto a ver com pedagogia? Tudo e nada, pois, que as palavras quando nos assolam, são furtivas e mesteriosas, nós a querer contê-las e a enredá-las em molduras simples e elas, matreiras a escapulirem-se para terrenos movediços. Sem pedirem licença. E desnudam-nos sem pudor e lá ficamos nós frente às nossas fraquezas. 

E por isso é que hoje a pedagogia se escondeu e veio mascarada destas ideias. Hoje estou incapaz de escrever sobre pedagogia. Deixei tudo de mim na escola e mais não quero dizer. Nem sei, que nos ultimos dois dias houve muito ruído, pedidos de colo, choro e meninos a baterem-se. Também a gostarem-se e a interagir, mas isso por agora, não me consola. Estou cheia de meias palavras, porque me faltam as palavras certas para acertar nos processos vividos. 

Vou descansar e desculpabilizar-me de não ter feito melhor. Porque é que sonhamos repetidamente com grupos de crianças atentas, felizes, cordatas, amigas e tudo assim, bonito e gradual e quase perfeito? porque não somos mais pacientes, resistentes e realmente compreensiveis com os caminhos e os atalhos do crescimento na infância?   

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Equipa(s) e...cantigas

Estava na sala e ouvi a voz da T. cantar uma música suave, linda, conhecida. Parei e vim cá fora e os meninos estavam todos sentados, a T. com um ao colo, rostos calmos e olhos abertos, a trautear os sons, a tentar acompanhar e aprender a letra. As palavras e a música saíam serenas e longínquas, assim as senti, assim ecoaram no meu coração. 
Sentei-me, pus a mão por cima dos ombros da T. e comecei também a cantar. Senti-me pequena e contente, senti o cheiro do mar, as ondas da praia da Torreira, as vozes da minha infância, as mulheres no lavadouro a bater as mantas na pedra, com as suas mãos de cuidar da vida e do mundo. Um mundo de trabalho entre a casa e o campo, um mundo de quintais e árvores e milho e uvas neste tempo de outono. 

Juro que fiquei tão contente e agradecida, que cantámos várias vezes a canção e os meninos e meninas gostaram e sorriram com a minha alegria e partilha das memórias. A T. também sorriu pelo meu encanto, ao nos ter dado uma cantiga que eu já quase esquecera. E por me fazer voltar ao meu tempo de meninice. Foi bom.
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Andei com a cantiga todo o dia na boca e a pensar que as equipas, as que assim podem ser consideradas, se reforçam e se alimentam pela  complementaridade de saberes, que muitas vezes são um bálsamo para os dias mais difíceis de ser educadora e auxiliar. 
E isso é muito importante para um trabalho partilhado. Creio que se chama sensibilidade e sintonia. E os meninos e meninas sentem isso. 

E aqui fica a cantiga, com cheiro a mar, a amor e a liberdade.

Já o vento me leva ao ar
Coradinha da cor da romã
Pé aqui..pé ali...pé além
Dá-me um abraço meu lindo bem

Oh que praias tão lindas tão belas
Onde eu ia passear
Sentadinha na areia sózinha
Apanhar conchinhas do mar

domingo, 12 de outubro de 2014

Tomar a palavra e um lugar

A M. entrou na sala, despediu-se da mãe e deixou-se ficar de pé, em silêncio, a olhar à sua volta. Já tínhamos começado a sentarmo-nos ao redor da mesa grande, com os mais novos ainda de pé, a falar ou dar abraços, alguns de chupeta na boca, os mais velhos impacientes por falarem, outros a aguardar para mostrar objetos trazidos de casa. Como sempre, havia um burburinho no ar, conversas paralelas, bibes por vestir. Chamei-a várias vezes para a mesa e ela continuou de pé, em silêncio. Quando enfim serenámos e me sentei à mesa para ouvir o que tinham para dizer, virei-me para ela e perguntei-lhe se não se queria sentar, tendo ela dito que não podia, porque me falta o mimo. Sem entender a que se referia perguntei-lhe o que era o mimo, se era um boneco, se se tinha esquecido dele em casa, se...
Ficou a olhar para mim muita séria e depois respondeu, pausadamente
- Então, é aquilo que me faz falta e que tenho que ter...que me deixa bem e feliz...é o mimo...
Surpreendida, entendi do que falava e perguntei-lhe
- E achas que isso se resolve com um bocadinho do meu colo,  aí em dois minutos?
- Sim, Manela, dois ou três...
Sentou-se na minha perna, abracei-a com um dos braços e com o outro iniciei a escrita de uma novidade de um menino. Quando terminei, perguntei-lhe se já estava bem e feliz, ela respondeu que sim e bem-disposta, foi sentar-se. E assim ficou até ao fim da reunião.

Da parte da tarde, na leitura da coluna do não gostámos (que nesta semana ficou completamente cheia de escritos dos meninos e meninas, confirmando que o grupo está saudável e cresce a olhos vistos, ainda que nem sempre da forma mais pacifica...) o S. disse eu  escrevi não gostei que o C. me tivesse batido. Depois de explicar o que aconteceu, foi dada a palavra ao C., que confirmou que tinha batido, porque me chamaram mama go(r)da e eu fiquei zangado. Sem entender a expressão, pedi que clarificasse o que era isso e ele apontou para o seu corpo, encolhendo os ombros. De imediato percebi a alusão ao seu aspeto mais gordinho e como isso o tinha incomodado. As duas crianças falaram e depois outras também, tendo eu ainda tomado a palavra para falar um pouco sobre as diferenças das pessoas e o respeito a ter por cada uma delas. Tenho a certeza que fui relativamente assertiva, talvez um pouco até intrusiva, mas não consegui deixar de o fazer, atendendo ao sentimento de tristeza e incómodo que vi na cara e no corpo do C.  No fim de toda a discussão e troca de ideias, o C., o menino que tinha batido, pediu a palavra e disse que ainda queria dizer mais uma coisa. E falou

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjTog9OxBhSwBVNnB1hXIR-pZWbWqYTavkI0Tkp5raXOrcIyGsbPP1RsRK-dM806lT2Leb8CFzkjOEMOg5U9mq45KDXuVuCtmz-8LVQ8Sst4KIR2oaUYI3mZJeO3hDg2sApJohtYTzB608/s1600/roda.png- Eu quero brincar com eles e eles afastam-se. Eu chamo por eles, eu tento entrar na brincadeira e eles não deixam. E eu ainda preciso de os conhecer. E preciso de ter tempo para os conhecer. Se não, não consigo ser amigo deles e eu quero.

Pouco depois terminámos a nossa reunião, todos muito cansados, que as discussões tinham sido abundantes, prolongadas e um tanto ou quanto agitadas. Em mim, um sentimento de estar cheia e profundamente surpreendida pela capacidade de exposição do C. e da sua consciência quanto à necessidade de ter tempo para fazer amizade(s). E da sua impaciência pelas tentativas de aproximação e a recusa dos outros, que estando pelo segundo ano na escola, já se entendem, conhecem-se e interagem.
O que o C. reclamou foi por uma oportunidade para mostrar-se e interagir. O que o C. já sabe é que sem tempo e lugar não pode integrar-se e estabelecer laços de afeto com outros.

E foi assim nesta sexta-feira, um dia grande com bom início e bom final. Em conselho, duas crianças que sabem expressar as suas necessidades e reivindicar os seus direitos. A ter colo e mimo no caso da M., a ser incluído e a fazer novas amizades, no caso do Cris. E a afirmar que se não lhe dão tempo e oportunidade, o conhecimento não vai acontecer e a amizade também não. E esse é um desejo que sente e uma necessidade que tem.

Quando estou cansada e quase desistente de promover estes espaços e formas de discussão e construção da democracia - pela imensidão de meninos e meninas, as dificuldades de atenção e envolvimento, a morosidade das aprendizagens, a estranheza de outros perante as nossas práticas - estas situações confirmam a importância de as manter, persistindo no caminho que sendo menos fácil, é todavia o mais frutuoso e poderoso no que respeita à relação das crianças consigo próprias, com os outros e com o mundo que as rodeia. Para apoio à construção da identidade de cada um, de espaços de cidadania, tolerância e inclusão. Desde o inicio, com ou sem chupeta.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Redação: eu e o meu irmão

O meu irmão é mais velho do que eu e faz hoje anos. O meu irmão sempre foi mais velho do que eu e isso dava-me muita alegria e às vezes algumas zangas, porque ele podia fazer coisas que eu não podia. Ainda por cima era rapaz, o que complicava um pouco mais esta questão de ele sim e eu não. O meu irmão ensinava-me muitas coisas e se não as dizia, eu que era curisosa e atenta, descobria. Por isso o meu irmão ensinava-me a ver mais longe, a querer as estrelas, os rios e as paisagens mais distantes, quando eu ainda e apenas podia andar na rua e no quintal. Ele vinha ter comigo, com olhos de sonhar mundos e eu ficava a saber que se podiam ter sonhos e que os homens e as mulheres eram fortes e corajosos também por isso.  

O meu irmão não falava muito, mas tinha uns olhos serenos e amigos que me ajudavam a adormecer nas noites de inverno, ainda que ele não acordasse com trovoadas fortes ou um tremor de terra mesmo a sério. Mesmo assim, o meu irmão dava-me calma ao coração e ajudava-me a acreditar no poder do amor, esse laço invisível que se constrói dentro da barriga da mesma  mãe e se fortalece cá fora, na mesma casa, na mesma familia e com os mesmos avós. O meu irmão fazia comigo o presépio no natal e procurava com cuidado os patinhos de barro para pôr no espelho que era um lago. Quando acabava de me ajudar, era logo natal, mesmo que eu não visse o menino jesus nem tivesse muitas predas no sapatinho. 

http://www.xiaoqingxinba.com/wp-content/uploads/2014/09/12822089774298.jpgO meu irmão, como era mais velho, tinha livros de gente crescida, proibidos, que eu lia às escondidas e foi assim que muito cedo amei a liberdade, a democracia, conheci os erros mais feios dos homens e as as suas maiores dádivas. O meu irmão lia-me textos em francês e ensinava-me algumas palavras dessa lingua, na salinha da nossa casa. Foi nesse espaço pequeno que comecei a querer rasgar as cortinas das janelas para correr o mundo, viver em Paris e se possivel, escrever livros.

Hoje o meu irmão ensina-me menos coisas, porque já somos os dois crescidos e agora já não interessa tanto a diferença de idades. Eu já posso fazer quase todas as coisas e ser mulher ou homem já não tem assim tanta importância. Mas o meu irmão continua a serenar-me o coração, porque o meu irmão é um homem de afetos grandes e coração de menino, apesar de ser já não ser pequeno. Tem muitas coisas que tenho pena que já não façamos os dois, mas ganhámos uma relação de igualdade e fraternidade que tem o tempo e o sabor da idade que temos. 
É por isso é que o meu irmão é muito importante para mim e que eu gosto muito dele. E ele gosta muito de mim. Não dizemos isto muitas vezes, mas é uma grande verdade. No dia em que faz anos, decidi dar-lhe esta redação. Hoje não estou capaz de escrever uma prosa poética.
Parabéns, mano.  
           

domingo, 5 de outubro de 2014

Dia do professor

Andar com eles ao colo, procurar-lhes as razões e os medos, dar-lhes o leite e a bolacha, planearmos projetos e pinturas, cantarmos canções e lenga-lengas, rebolar no chão e no jardim, brincar ao lobo mau no recreio, limpar lágrimas e acolher risos, fazermos silêncio e ouvirmos o vento, descobrir letras e palavras doces, dizermos não e talvez, espera agora que ainda não é tempo, ensinar-lhes as cores e o azul do céu. E o sonho. E a liberdade. E a alegria. E a democracia. E o sentido de ser unico e importante e urgente. Mas não só, em conjunto com outros, em grupos de muitos meninos e meninas que inventam os dias na escola.

Tudo isto fazemos e mais mil coisas, num quotidiano de compromisso e entrega, cansaço e entusiamo, ponderação e sussuro(s). E vozes altas. Com equipas que falam e se desdobram, com famílias que opinam e observam, participam e recusam, estão presentes e ausentes.

http://www.piuma.es.gov.br/upload/img/%7BDEBEAAD2-82EA-6ABD-6D81-3EEBA571BCAA%7D_700X448.jpgTudo isto fazemos em muitos sítios, espalhados pelo mundo, rodeados de cultura(s), hábitos, riscos, encantos e desencantos. Tudo isto fazemos e muito alvejamos, certos de estarmos no centro da vida a crescer no presente e para o futuro. Que queremos melhor para nós e para cada um dos meninos e meninas que connosco aprendem e amam e desejam.

Neste dia do professor, aqui estamos a dizer que vale a pena. E que é tempo de dar a dignidade justa e certa à profissão de semeadores de terras virgens e férteis de saber(es), ser(es) e saber(es) fazer (es). Convoquemos pois os atores desta missão para tomarem a vez e a voz e por ela anunciarem os seus propósitos e os seus direitos.

Bom dia do professor.
  

sábado, 4 de outubro de 2014

Vale a pena...apesar do cansaço

Sábado cheio. De manha zanguei-me com o compromisso firmado há já algum tempo e com esta facilidade com que aceito os desafios, pensando que tudo se faz. E não nem tudo se faz, porque somos finitos, como dizia o meu filho quando era pequeno, querendo dizer que estava terminado, fechado. Ou faz-se mas com custos e esforço, coisa que já não vai de bem com a nossa idade. Há quem diga que não, que estamos ainda jovens, mas sabemos todos que essa coisa da juventude há muito que passou. Estamos seniores. O que não é propriamente a mesma coisa. 
Assim ía eu a ruminar cansaços enquanto me dirigia a Setúbal onde me esperava um grupo de 26 auxiliares para um dia de formação. Lá nos acomodámos na sala, lá montámos o estaminé, lá nos preparámos para ouvir e falar. Ao princípio a medir-nos mutuamente, que esta coisa da formação e da interação não é pera doce, nem jogo ganho à partida. É comunicação, investimento e adesão, trilogia incompleta, mas ainda assim forte, para um suposto dia de descanso. E refletir é tudo menos descansar. É mobilizar para o meio da mesa, para partilha, as nossas práticas, as nossas representações, as nossas experiências. Expormo-nos, coisa que leva tempo e exige confiança, 

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjPUth891ZZ_4EjgA5o4wgv9cq2_Ry9_EUcVrZsIRu4lZ9D3fjXanIj3wSbWJCDqojqwy44yYwcJRg_KwnQw6oeGNkHQ2EW9y_3EHASQYU7lULbwQrC1-KOXtmvD3Kaq4aCFvPyRD9_zrnx/s400/ciranda.jpgE foi isto que fizemos, passado a primeira meia hora de audição atenta e um jogo de apresentação. Dissemos o que gostávamos mais e menos na profissão, resistindo à ideia preconcebida de que gostamos de tudo. E de todas as crianças da mesma forma. Não é verdade, sabemos todos disso e se nos consciencializarmos do que apreciamos menos, podemos, com mais verdade, apetrecharmo-nos dos instrumentos necessários para reduzir o lado menos positivo da nossa intervenção. Libertamos culpas e falamos de possiveis e de gente de carne e osso.

Depois...depois foi bom convocar a minha experiência, a de quem estava presente, e também de outros que pensam e estudam o estado da arte. Com parcimónia, que a maior fatia de autores deve ser a de quem se forma, para tomar a palavra e falar. Dando voz e vez à sua experiência, em confronto com a dos outros. E conversámos sobre funções e competências dos auxiliares, problemas e dificuldades com as crianças, as equipas e as famílias, da brincadeira como a atividade mais séria da infância, de conflitos e resolução dos mesmos e do outono e do pouco tempo para se ouvir as crianças. E muito mais e muito menos. E gargalhadas, que também é preciso.

De regresso a casa, já não ruminei zangas. Apenas sentia o cansaço profundo dos diálogos, da gestão do tempo e das falas, da mobilização dos exemplos, da tentativa de explicitação do que me devolviam.  De regresso a casa, revia o espanto dos rostos, quando por qualquer motivo, abria a porta da pedagogia e escancarava os problemas. As práticas e as suas rasteirinhas, chamando as coisas pelos nomes, sem medo, envolvendo-me como educadora, expondo-me com tudo o que tinha e sei. E sou.

De regresso a casa pensei que ser sénior ainda não me retirou a energia para me entusiasmar, pensar e projetar. Nem o prazer de fazer isso com outros, descobrindo o que em cada um é sol e sonho e rebeldia. É por isso que aceito estes desafios, ainda que comece a manha a ruminar zangas comigo própria e termine a tarde cheia de um cansaço profundo, mas gostoso. 
Espero que tenha sido assim também para os que comigo estiveram. O único senão é amanha ser domingo e o fim-de-semana ficar bem mais curto. Não é coisa pouca, nomeadamente para uma sénior.

domingo, 28 de setembro de 2014

Entre dizer e fazer

Num fim de tarde da semana que passou, disse a um amigo que há diferenças entre olhar uma criança pequena que vai de mão dada na rua com a mãe e olhar a mesma criança na sala. Silencioso ficou a olhar para mim e fui obrigada a explicitar o meu raciocínio, que me tinha assaltado de repente, mas que andava a marinar a algum tempo dentro de mim.  

- Sabes, é que a criança quando entra numa escola torna-se um aluno e olhar para um aluno muda muitas vezes o sentido do olhar sobre a criança...a um aluno exigimos coisas e comportamentos que eventualmente a uma criança, com a mesma idade, noutro contexto, não exigiríamos. Maior maturidade...silêncio para ouvir a história...saber estar numa fila para fazer a higiene...entender a metodologia de trabalho...ser simpático e cordial para os amigos....acenámos os dois com a cabeça, parecendo entender o que estava em causa...

Quando saí, pensei que apenas eu e os que lidam com crianças, sabemos do que falo. Apesar da individualização dos cuidados, da educação e do currículo, que tentamos todos os dias praticar, uma espécie de jogo de empurra institucional faz prevalecer as regras, a norma e o funcionamento coletivo sobre a identidade e a pessoa de cada criança. E nós, e eu, desatamos a querer que se todos se comportem como achamos que se devem comportar. Exigimos silêncio, interiorização rápida de rotinas, compreensão dos instrumentos de trabalho, interação positiva com os pares, partilha, amizades fortes. E participação. 

Como se tudo isto não demorasse uma porção de tempo a construir e não fosse, para muitas crianças, uma novidade e uma outra forma de se sentirem tratadas. Até ver e porque são inteligentes, as crianças, muitas crianças, desconfiam, necessitando de contestar para confirmar o que é realmente verdadeiro. E sério. E para sempre adotado naquele espaço que agora frequentam. Sem dias de folga e sem ambivalências.

Tudo isto vem a propósito da última reunião de conselho e de, sendo a segunda do ano, com tantos meninos pequenos e novos, não ter corrido de feição. Conversas cruzadas, que a amizade já é mais alegre e boa de se sentir, distrações e espreitadelas por baixo da mesa, vários papéis para escrita porque muitos querem ser secretários, pouca atenção à fala dos amigos. E eu a desesperar, e eu a exigir e eu a ficar triste com as dificuldades, ou melhor, com o tempo que será necessário para que aprendamos o sentido de fazer uma reunião. E eu a esquecer-me das minhas decisões de dar tempo para a aprendizagem. E eu a querer que o modelo funcione com um estalar de dedos. E eu a vê-los como aluno, já crescidos, pois, e eles com três (e são seis com esta idade) quatro e cinco anos.

Não querendo ser simplista nem dogmática, devo colocar cada coisa no seu  lugar. Ser aluno não faz mal, é condição necessária e importante no correr da vida, para muitas destas crianças é um direito e uma condição de cidadania. Ser aluno não faz mal, desde que nós, os adultos, consigamos  manter em alerta permanente, o que sabemos e sentimos sobre as crianças, os seus trajetos de vida, as suas características e necessidades, ritmos e modos de aprendizagem.  Ser aluno é coisa boa se as nossas representações e práticas não entrarem em fuga para a frente, para alcançar a(s) meta(s) que predefinimos na cabeça e nos projetos curriculares. Para serem abandonadas? não, claro, para serem doseadas, comedidas e adequadas. Com bom senso e muita sabedoria. E calma. E com as crianças no meio delas. As nossas. As reais. As que estão connosco. Não as que imaginamos, para que tudo corra sem imprevistos, que  é coisa pouco provável em educação. 

E eu a pensar neste domingo, que escrever é uma forma de manter compromissos e alertar a minha consciência. Para melhorar a minha prática. Para dosear a minha tendência para queimar etapas...
As minhas crianças, que são também os meus  alunos, bem o merecem. E eu também.