Num fim de tarde da semana que passou, disse a um amigo que há diferenças entre olhar uma criança pequena que vai de mão dada na rua com a mãe e olhar a mesma criança na sala. Silencioso ficou a olhar para mim e fui obrigada a explicitar o meu raciocínio, que me tinha assaltado de repente, mas que andava a marinar a algum tempo dentro de mim.
- Sabes, é que a criança quando entra numa escola torna-se um aluno e olhar para um aluno muda muitas vezes o sentido do olhar sobre a criança...a um aluno exigimos coisas e comportamentos que eventualmente a uma criança, com a mesma idade, noutro contexto, não exigiríamos. Maior maturidade...silêncio para ouvir a história...saber estar numa fila para fazer a higiene...entender a metodologia de trabalho...ser simpático e cordial para os amigos....acenámos os dois com a cabeça, parecendo entender o que estava em causa...
Quando saí, pensei que apenas eu e os que lidam com crianças, sabemos do que falo. Apesar da individualização dos cuidados, da educação e do currículo, que tentamos todos os dias praticar, uma espécie de jogo de empurra institucional faz prevalecer as regras, a norma e o funcionamento coletivo sobre a identidade e a pessoa de cada criança. E nós, e eu, desatamos a querer que se todos se comportem como achamos que se devem comportar. Exigimos silêncio, interiorização rápida de rotinas, compreensão dos instrumentos de trabalho, interação positiva com os pares, partilha, amizades fortes. E participação.
Como se tudo isto não demorasse uma porção de tempo a construir e não fosse, para muitas crianças, uma novidade e uma outra forma de se sentirem tratadas. Até ver e porque são inteligentes, as crianças, muitas crianças, desconfiam, necessitando de contestar para confirmar o que é realmente verdadeiro. E sério. E para sempre adotado naquele espaço que agora frequentam. Sem dias de folga e sem ambivalências.
Tudo isto vem a propósito da última reunião de conselho e de, sendo a segunda do ano, com tantos meninos pequenos e novos, não ter corrido de feição. Conversas cruzadas, que a amizade já é mais alegre e boa de se sentir, distrações e espreitadelas por baixo da mesa, vários papéis para escrita porque muitos querem ser secretários, pouca atenção à fala dos amigos. E eu a desesperar, e eu a exigir e eu a ficar triste com as dificuldades, ou melhor, com o tempo que será necessário para que aprendamos o sentido de fazer uma reunião. E eu a esquecer-me das minhas decisões de dar tempo para a aprendizagem. E eu a querer que o modelo funcione com um estalar de dedos. E eu a vê-los como aluno, já crescidos, pois, e eles com três (e são seis com esta idade) quatro e cinco anos.
Não querendo ser simplista nem dogmática, devo colocar cada coisa no seu lugar. Ser aluno não faz mal, é condição necessária e importante no correr da vida, para muitas destas crianças é um direito e uma condição de cidadania. Ser aluno não faz mal, desde que nós, os adultos, consigamos manter em alerta permanente, o que sabemos e sentimos sobre as crianças, os seus trajetos de vida, as suas características e necessidades, ritmos e modos de aprendizagem. Ser aluno é coisa boa se as nossas representações e práticas não entrarem em fuga para a frente, para alcançar a(s) meta(s) que predefinimos na cabeça e nos projetos curriculares. Para serem abandonadas? não, claro, para serem doseadas, comedidas e adequadas. Com bom senso e muita sabedoria. E calma. E com as crianças no meio delas. As nossas. As reais. As que estão connosco. Não as que imaginamos, para que tudo corra sem imprevistos, que é coisa pouco provável em educação.
E eu a pensar neste domingo, que escrever é uma forma de manter compromissos e alertar a minha consciência. Para melhorar a minha prática. Para dosear a minha tendência para queimar etapas...
As minhas crianças, que são também os meus alunos, bem o merecem. E eu também.