terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Votos para o novo ano

Último dia do ano.
Silêncio absoluto na minha casa, nesta manhã chuvosa. As gotas de chuva decoram a janela do meu sótão, escorreguem lentamente pelo vidro, parecem pérolas. Lá fora o vento agita a folhagem verde das árvores. O dia está melancólico mas suave.  

Antes que os ruídos se instalem neste quotidiano, procuro as palavras com que posso fechar este ano. Não vou fazer balanços ou prognósticos, os textos que já fiz retratam algumas situações vividas, o futuro vai apresentar-se como bem puder. Deixemos ficar tudo como está, não há forma de antecipar o que está para vir e em muitos casos, nem sequer convém. Vivamos um dia de cada vez.

Mas posso expressar desejos e vontades, para o ano que se aproxima. Logo à noite é o que farei, quando der a meia-noite e comer as passas. Repetirei o ritual, pedindo, emocionada, o que sempre peço e se vai cumprindo. Ou não. Para além do que queremos que nunca nos abandone - saúde, paz, amor - às vezes invisto noutras solicitações, desejos menos comuns, que vêm o ano passar sem serem realizados. Mas não podemos querer tudo, dizia a minha avó, mestra da vida e dos sonhos. Tinha razão.

A vida é imensa, cheia de surpresas e imprevistos e nós, quais mágicos de um circo antigo, compomos truques com maior ou menor competência. Nem sempre acertamos, porque não temos reportório nem perícia suficiente para todas as situações com que nos deparamos. Aceitemos a nossa finitude, sabendo que, nos aspetos fundamentais da vida, as respostas dependem de nós.  

Mesmo assim, peço força, criatividade, resiliência, alegria, coragem. Para mim e para os meus. Peço que os meus amigos se mantenham por perto, atentos, lúcidos e sempre generosos. Que os meus filhos continuem a serem homens do seu tempo, sensíveis, capazes e abertos ao mundo. Que o mundo possa ser mundo em oportunidades e igualdade para os que vivem escondidos na sombra e destituídos da sua dignidade. Que os dias sejam de luz e claridade, que saibamos ter golpes de asa para as noites de escuridão, que nos possamos rever e acreditar nos eventos que soubermos realizar, individual e coletivamente.

Para isto e muito mais, peço saúde, paz e amor. Para mim e  para todos aqueles que se mantêm nos seus postos, homens e mulheres ao comando de barcos lançados ao futuro e que fazem as viagens necessárias para que se cumpra o destino.

E porque não temos toda a decisão nas mãos, peço ainda sorte. Muita sorte.
Para todos vós também.    

domingo, 29 de dezembro de 2013

A minha mochila

Domingo cheio de sol. Uma luz forte e quente bate no mar e dá-lhe um brilho azul magnifico. Esta é a sua cor. Eterna. É assim que pensamos no mar, quando dele temos saudade. A paisagem que vejo, da varanda, parece um postal ilustrado.  Quase perfeita. Respiro. Vou precisar deste mar e deste sossego em muitos dias dos próximos meses que se aproximam. Vou tentar levar um pouco desta luz e deste brilho dentro da minha mochila

Tenho uma mochila que carrego comigo, há muito tempo. É transparente e invisivel, ninguém a vê, mas pesa que se farta e nem sempre é comoda de transportar. Tem bolsos e pequenas divisórias onde arrumo, como posso, diferentes assuntos e matérias de vida, tentando não misturar pessoas, acontecimentos e memórias. 

Quando caio, porque me falta o chão ou o céu, não  consigo proteger a mochila e tudo se mistura dentro dela. Aí, sim, não consigo impedir a confusão, coisas que passam de um lado para outro, ficam baralhadas e difíceis de colocar no seu lugar. Nessas alturas, necessito de fazer uma paragem, conferir todos os compartimentos e respetivo espólio, reagrupar e voltar a arrumar cada coisa no seu lugar. Para que possa seguir viagem.

A minha mochila é uma peça fundamental para as viagens que faço, todos os dias, rumo ao futuro. Por isso necessita de zelo e atenção. Não em demasia, porque há bolsas e espaços mais escondidos, sobrepostos e encaixados que raramente se abrem e mesmo nos tombos não dão sinal de si. Merecem uma atitude de  bom senso, não vale a pena mexer no mais profundo da mochila que carregamos.

http://data.whicdn.com/images/49366814/backpack-bag-fashion-leggings-legs-favim-com-435749_large.jpgA minha mochila, apesar de pesada, é forte e insubstituível.  Tempos houve, de adolescência e juventude, em que julguei podê-la trocar, mudando a sua marca, forma e volume. Achava eu que, mudando por fora, o seu interior se alteraria, ficando mais leve e ligeiro o seu conteúdo. Esta ilusão durou pouco tempo. Desde que alguns laivos de maturidade me invadiram a vida, que sei que as mochilas que carregamos connosco são o nosso património e o nosso ADN. Têm o nosso cheiro, bocados de pele e rugas, desalentos, sonhos, vitórias e derrotas. Albergam os que amamos e ainda estão connosco e  os que partiram. Têm brinquedos de infância, as ameixas da casa da avó, o primeiro namorado, amigas do peito, o nascimento dos filhos, a aventura da profissão, os risos e lágrimas das crianças que educámos. 

Têm isto e muito mais, numa hierarquia de assuntos e matérias que não é possivel reproduzir. Por isso a minha mochila é pesada e pesa que se farta. Ainda bem. De que outra forma poderia guardar esta minha vida que me corre nas veias, desde que nasci, e me faz ser quem sou? 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Dias de pausa

Da janela da varanda posso ver o mar. Sereno e grande, largo, em tons de cinzento, porque hoje o sol está envergonhado. O mar ao longe parece uma esteira grande onde nos podemos deitar e descansar, a céu aberto.
Percorro a manhã lentamente. Detenho-me em coisas de nada, tenho o coração um pouco vazio, trémulo, meio perdido. Mastigo a noticia triste que uma amiga deu, a vida nem sempre se aceita. A vida tem surpresas que doem e a amizade faz com que sejam nossas as dores de outros. Fico quieta no sofá, olho vezes sem conta a meia lua da água ao longe, quero convocá-la para uma manhã mais fácil e menos introspetiva. Está quase a chegar o fim do ano, mas ainda é cedo para rever as contas, conferir ganhos e perdas,  acertar o crédito para o futuro. Deixemos a contabilização do stock para mais tarde. Não faltarão oportunidades.

Agora, aqui, é tempo de descanso. Não se ouvem as vozes das crianças nem os seus pedidos constantes, não saimos de nós para entrar no mundo dos meninos e meninas que nos foram confiados. Podemos enfim pensar neles, demoradamente, sem que tenhamos de enfrentar a interação diária, condição imprescindivel da pedagogia e arte de educar.

Libertos dessa exigente competência, de que fazemos uso todos os dias com maior ou menor sucesso, podemos, nestes dias finais de dezembro, rever a nossa intervenção, avaliá-la e projetar o que sonhamos e queremos fazer com as crianças e para elas. Ideias gerais a partilhar em janeiro, para que as crianças possam dar contibutos para a definição do agir diário. A pedagogia da participação é isto, o direito a ter voz no quotidiano. Nada fácil, uma lição ainda a aprender por parte da escola e da(s) comunidade(s).

Por isso, tenho o computador ligado e o tempo disponivel. Hoje ensaia-se a análise do tempo de ser educadora, nesta nova comunidade. Um desafio imenso, surpreendente, apesar de 34 anos de serviço. Registo, por escrito o que observei e vivi, confirmando na primeira pessoa do singular, o que li e aprendi nos livros e nos processos de auto e hetero formação em que me envolvi ao longo dos anos. Nesta comunidade a educação de infância produz e reproduz muitas das fragilidades que estão descritas e estudadas na literatura da especialidade e nas experiências que muitos profissionais conhecem, em diferentes contextos. Descobrir e devolver aos atores mais diretos, familias e colegas, as suas potencialidades é o meu desafio. Tarefa de monta, que não se faz individualmente, mas com equipas coesas e linguagens comuns. Outro desafio, não menos importante. Por isso não gosto de trabalhar sózinha, sem o apoio de outras educadoras e é assim que estou. Pobre, de alguma forma, sem visões diferenciadas que ajudem a fazer adequadamente o diagnóstico e a definir estratégias mobilizadoras de mudança. Porque é urgente mudar a conceção de escola, educação, aprendizagem e desenvolvimento das crianças. E já agora dos adultos, profissionais e famílias.

Por isso, tenho o computador ligado, mas adio a tarefa. É exigente. Apesar de não ter as vozes dos meninos e meninas, sinto-as dentro de mim. Lembro-me deles e tenho saudades, em alguns casos, preocupação. Como estarão? como terá sido o natal em casa? como irão chegar? 

Por isso, tenho o computador ligado e comecei pela escrita no blog.  E sem dar conta vim ter às crianças e à minha profissão, depois de começar pelo mar e pela tristeza da noticia que recebi, ontem à noite. Não podemos facilmente fugir de quem somos e do que fazemos. Relembro o meu professor António Nóvoa "a pessoa é o profissional e em cada pofissional há uma pessoa".  

Já comecei a minha reflexão. Vou continuar a fazê-la nos meus documentos.     


quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Noite de natal

Já passou a consoada e o dia de natal. 
Aqui em casa, ontem, estivemos sem luz até às 11 horas da noite. Estávamos lindos à luz das velas dos castiçais, com a toalha vermelha e os enfeites de natal. A logística não foi fácil, mas foi tudo original e  muito tateado. 
A troca de presentes já foi iluminada, tornando tudo mais fácil e visível, ainda que menos belo, diria, porque as sombras que vi projetadas durante a ausência de luz nos transportaram para outros lugares e outros mundos, que partilhámos, entre risos, conversas soltas e afetos renovados.  

O meu filho Miguel ofereceu-me a reedição da poesia da Sophia de Mello  e adormeci muito tarde a reler as suas palavras. Uma escrita límpida, entre o mar, o dia e a noite, jardins e musas, amor e solidão, partidas e chegadas.

Bonita forma de acolher a madrugada, neste dia 25 de dezembro. Com poesia.

Aqui fica um poema que me apanhou de surpresa e me espantou, por ser tão verdade. Adotei-o logo. Diz assim

Apesar das ruínas e da morte.
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias

in Poesia de Sofhia de Mello Breyner Poesia 

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Visita

A minha amiga veio ver-me. 
Telefonou, estava perto e combinámos um café, desde logo, não fosse o tempo e a oportunidade fugirem. Vi-a ao fundo da rua e estava igual a ela mesmo: riso pronto, abraço quente, olhos com brilho. Quando nos sentámos, as palavras começaram a fluir, de imediato, análises criticas e sentimentos partilhados, que a amizade é um campo aberto de papoilas vermelhas em qualquer altura do ano. Mesmo em Dezembro. E fomos de conversa em conversa, rindo e devolvendo mutuamente o lugar que sempre ocupámos no coração uma da outra. Sem mais quê ou para quê. 

E confirmei o que sempre soube: a minha amiga, que se ausenta vezes sem conta sem deixar rasto, mantém na voz e no olhar o desafio e a coragem de ser mulher combativa, decidida e lúcida. Atenta ao mundo e aos outros, inunda-os quase sempre com a sua humanidade e afeto caloroso, que gere sem poupar, numa generosidade desmedida. 

Quando a vida não é amiga ou se revela paradoxal, a minha amiga enrola-se numa espécie de limbo e adormece devagar, sem dizer porque vai e não fica. Mas nunca esquece os amigos e a fidelidade que lhes é devida, característica que lhe cobre a pele e a identidade de mulher adulta.

Todos os que a amam sabem disso, ainda que muitos não ousem dizer. Eu digo. Isso e muito mais. A minha amiga voltou, ainda que por um tempo curto, mostrando que a amizade é intemporal, resistente e pertença de gente bonita.  

Ontem foi natal. E foi muito bom.   

domingo, 22 de dezembro de 2013

Fim de tarde

Domingo.
Uma réstia de sol a banhar a tarde, poucos dias antes do natal. Um horizonte com tons de laranja, uns farrapos de neblina cinzenta, um tempo frio a ficar no corpo. É natal. Sim, ainda persistem umas tarefas da escola, mas agora não quero pensar nelas, ignoro-as. Quero o tempo todo livre, preciso. Um  tempo solto, cheio de outras coisas, embrulhos de prendas, a árvore e o presépio, a sala quente com a lareira, os filhos por perto, gente que telefona, amigos que se encontram, rabanadas e sonhos. De natal e de vida. 

Tempo livre para pensar nos que partiram e já não estão aqui. Apenas a memória, algumas fotografias, imagens e recordações, alegria e saudade. Tempo para parar na doçura de algumas presenças, ausentes, mas que ficam no coração para sempre. E por isso, estão cá. Dentro e fora de nós, em objetos, lembranças e escritas. A saudade hoje não dói, é terra plena de frutos silvestres. Vermelhos, roxos, a fazer bem à alma e ao corpo. 

Tempo livre para encostar o rosto à janela e procurar o futuro. Pesquisar o que aí vem, sabendo que fazemos muito do que nos cerca. Fazemos porque somos homens e mulheres de vontade e decisões. Sim é certo, às vezes temos pouco poder nas mãos, mas a maior parte das vezes, somos os ardinas das noticias que nos chegam. Recebemos o que anunciamos.

Tempo livre para olhar para a natureza, a terra e o mar, as árvores. Reter dentro de nós a beleza da vida, enchermos-nos dos seus cheiros e cores, deitar fora a imensa escuridão que nos rodeia em alguns dias da nossa vida. Vestirmos-nos de vermelho e luz, sem dar tréguas ao cinzento da derrota. 

Tempo livre para ler e escrever. Pegar em algumas palavras e torná-las réis e rainhas do quotidiano. Sem pedir licença, que somos donos do nosso destino e não vale tecer um muro de lamentações. Não ajuda, não convence, não liberta.

E nós somos gente de liberdade, somos "seres da briga", como dizia o Paulo Freire. Briguemos então pelo nosso direito a tomar o tempo, as palavras, a terra, a beleza, a vida. No natal e em todos os dias. De domingo a domingo.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Confissão

No natal, invade-me sempre uma ligeira nostalgia e uma pequena saudade que escurece os dias de luz. Fico -me entre a alegria do brilho das estrelas, a memória dos sinos da igreja e a melodia doce dos cânticos. 

Ando e penso, penso e ando, distendo-me no tempo que é de preguiça e cheiro a canela com açúcar.  E se isso me aquece e consola, não elimina a nesga de frio que espreita no coração. Uma pequena tremura, apenas minha, que não digo a ninguém, porque nada há para dizer. O que é muito nosso, assim deve ficar, na ausência de palavras para partilhar o que em nós parece pronunciar-se. Talvez a isto se chame solidão ou individualidade, talvez até identidade, aquela que tem a nossa pele por lastro, caldeada com a respiração e a vida que nos deram. 

Porque nos deram uma vida um dia e nome e casa e colo e nos soubemos gente a partir de então, ainda que só muito mais tarde disso tenhamos consciência. De quem somos, o que queremos, o que negamos e entendemos. E durante os anos em que nos fomos tornando pessoa, em muitas parcelas de tempo estamos apenas connosco, ainda que rodeados de todos os que nos amam. 

Assim estou. Comigo e em mim, a esperar este natal com uma pontinha de nostalgia e saudade. É coisa pouca, não incomoda por aí além, mas está cá. 

Aceitemos os seus motivos e razões e rendamos-nos a quem somos. 
Não há mal em ter saudade não é obrigatório um estado permanente de felicidade. Apenas porque é natal. 


sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Nelson Mandela

Lutou pela liberdade e pela igualdade. Recusou um país e um mundo de donos e senhores e escravos submissos. Tinha um rosto sereno e uns olhos de amor. Iluminou multidões pela luz da crença e a força do combate. 

Esteve preso e resistiu. Continuou sempre a acreditar e a lutar. 
Até ao fim dos seus dias.

Partiu ontem. 

Fica a sua memória para nos lembrar, todos os dias, o respeito pela dignidade e pelos direitos humanos. 

Em todos os cantos do mundo e no nosso mundo, mesmo à frente dos nossos olhos. Não vale disfarçar. 

"A educação é a ferramenta mais poderosa que podemos usar para mudar o mundo" (Nelson Mandela)

Sexta-feira

Sexta-feira. Vem aí o fim de semana. Não, não está completamente livre de trabalho, amanha temos ocupação, mas é por uma boa causa. Não protestemos.

Sexta-feira, dia de lançar a mala das coisas da escola para perto da secretária, no sótão, ainda que seja por pouco tempo. Fica tudo um pouco esquecido, meio de molho, para libertarmos o corpo e o coração dos imenso(s) cansaço(s) de trabalhar e viver com pessoas, crianças e adultos. Sempre no mesmo espaço. Precisamos de restaurar o pensamento e as ideias e desligar. Se for possível. Ler um jornal, ver televisão, fazer uma caminhada, ver o mar, escrever. Pensar em nós, ficar em primeiro lugar. É por pouco tempo, mas é necessário e vital para começar de novo, como diz a canção.

Eu sei, de novo nunca se começa. Já fizemos história e enredos, já tatuámos impressões e imagens, já dissemos palavras e ideias, já estabelecemos propósitos, já errámos, já fomos e viemos, já nos enternecemos e zangámos. Já nos comprometemos com vinte e cinco crianças e suas famílias. Já não há retorno para o que somos e fazemos.

Mas precisamos de parar, para oxigenar a emoção e o combate diário. Um combate sim, contra a exclusão, a desconfiança, o medo, os ataques primários de quem sendo muito novo, andou na escola e não lhe esqueceu a dureza e a agressão. Falo de famílias, que reproduzem a sua história de infância na história dos filhos. E desconfiam de mimos e palavras doces. E de educadoras que não conhecem. 

Criar laços de confiança, em algumas comunidades, exige um posicionamento lúcido, atento e disponível dos profissionais. Exige capacidade para acreditar que só o tempo transforma relações de distância e desconfiança em laços de comunicação e parceria. Até lá, o nosso olhar tem que ser perspicaz, competente nas suas leituras e ilações, sereno e persistente. E humilde, porque apesar de tudo o que sabemos a realidade é sempre um dado a escutar e a compreender. Com toda a informação e formação de que formos capazes. Uma leitura quase sociológica do que nos envolve, para podermos ficar livres das rasteirinhas do senso comum. Ser profissional é outra coisa, é saber identificar para atuar, propondo espaços de desenvolvimento, numa perpetiva ecológica. 

Apesar destas competências, se as tivermos, saibamos lidar com o imprevisível. E saibamos fazer-lhe face, com o máximo de serenidade e convicção. Hoje, sexta-feira foi assim. Ganhámos uma luta e uma causa. Não será definitiva, mas aceitemos a lonjura do caminho.

Por isto tudo, o cansaço é muito. Dói o corpo de tanta emoção, controle e desocultação de alguns sentidos. Por isso é preciso desligar e ir ler o jornal. E por creme na cara e dar um jeito ao cabelo. Há quanto tempo não cuidamos de nós?

P.S. - Tenho inveja do meu filho mais novo, está em Paris. Era lá que queria estar. Andar pelas ruas, ver o Sena, ir a Montparnasse, sentir-me uma Simone de Beauvoir com as devidas diferenças. Mas fico-me por cá. Em descanso. Pelo menos por esta noite.       

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Doce natal

A cidade inunda-se de sons e cheiros, de noite as luzes brilham, há um pouco de musica no ar, alguma cor e um frio gelado que faz gostar do calor tépido das casas que são as nossas, onde moram os nossos afetos e quase toda a nossa vida. 

É natal e ainda que neste ano, tudo pareça um pouco mais triste, não conseguimos deixar de gostar da luz das estrelas que não são cadentes, mas que anunciam, como na história, as boas vindas ao menino. 
E o menino somos nós, cheios de sonhos e alegrias, a lembrar a infância e a avó que deixava na meia pendurada na chaminé, umas panelinhas de alumínio, para que pudéssemos brincar e acreditar no natal. E no menino Jesus. 
Quem dava as prendas no tempo das meias na chaminé, era o menino Jesus. E era pequeno e nosso amigo. Não o víamos, mas era assim. Doce como o mel, quente como os abraços da avó, feliz como a nossa alegria. E a nossa emoção. 
Juro que sei de cor o cheiro dessa manha do dia vinte e cinco de dezembro. E o sentido da alegria. Coisa boa. Depois os risos e as panelinhas que na manha seguinte íamos mostrar às amigas, no carreiro junto à casa. E ficávamos lá a fazer as comidas, com areia, pedras e flores. A inventar o tempo de ser criança, com um menino que se lembrava de nós. Por milagre. 

E a infância tinha o tamanho da surpresa, do calor do colo do avô, do sabor dos bilharecos, do frio dos caminhos e da água do poço. E das vozes dos adultos por perto, que a tratar da sua vida, não muito folgada, tratavam de nós, com amor e lucidez.  
Sem grandes riquezas e ostentações, apenas com pequenos gestos, apenas os necessários para fazerem o natal que perdura, até hoje, intacto e perfeito dentro do coração. Para sempre. 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Pensamento(s) à solta

O fim de semana esteve cheio de sol e eu a correr, a correr. Apenas um intervalo no domingo à tarde. De resto, muitas coisas por fazer, entre a casa e a escola. Uma correria que nem sempre nos devolve os benefícios esperados, já se vê. Porque em quase tudo na vida, a calma e a serenidade são passaportes mais seguros para alcançar metas e portos de abrigo. Eu sei. Mas mesmo sabendo isto, eu corro. Correr quer dizer fazer coisas, quase sempre tarefas, às vezes um pouco soltas, com sentido imediato ou longo alcance. Quase todas integradas no caminho que vamos trilhando. Assim o sinto e assim o espero. 

Entre corridas e tarefas - de casa e da escola - o meu pensamento a mil à hora. Vai e vem, pára e continua, surpreende-se com o que vê, imagina e projeta. Sempre fui uma rapariga de muitos pensamentos, agora ainda mais, porque já não sendo rapariga, redobrou a necessidade de compreender mais profundamente o que junto a mim, acontece. Neste fim de semana andei às voltas com os meus meninos e meninas, cheia dos seus comentários e afazeres, a tentar apaziguar alguma ansiedade, num grupo que demora a encontrar a sua(s) identidade(s). Não, não é assim, demora a encontrar a(s) identidade(s) que eu gostaria de ver. Porque este é um dilema profundo, a ambivalência entre o que eles são e mostram ser e aquilo que esperamos que sejam. E desejamos que sejam atentos, calmos, autónomos, sensíveis aos outros, capazes de estar e ser em grupo e na comunidade da sala e da escola. Quase perfeitos, se olharmos bem para dentro de nós.

E eles? são o que são, corpos pequenos e palavras à solta, lágrimas fáceis e mãos de repentes, como dizia a minha avó. São o que são e poderão vir a ser muito mais, caso  vida e a sorte os envolva com gente atenta e mente aberta. E coração renovado de alegria e serenidade. Também com persistência e inovação. Gente com luz, para iluminar o que ainda são trevas e lusco-fusco. Gente com horizontes, em casa e na escola.   

Sei que nem sempre os tenho. Ás vezes (muitas vezes?) fico comprimida na engrenagem dos dias, embrulho-me nas rodas dentadas da máquina e não alcanço mais lonjura que aquela que se encontra na sala e no meio circundante. Tudo ali, muito perto dos olhos e do coração, com vistas curtas, o que não abona em favor do sonho e do projeto. Quando estou assim perco a lucidez, canso-me e zango-me. Comigo, claro, por ir tão ao sabor da maré... e do que tem que ser feito. Às vezes sem sentido... Plano anual de atividades, dias festivos, semana de ...   

Com o pensamento a mil à hora, neste fim de semana, detive-me nisto tudo e em muito mais. Detive-me no tempo que concedo a cada menino e menina e estremeci. Nas escolas, numa engrenagem nem sempre lúcida, gastamos muito do nosso tempo na gestão do grupo, entidade que leva uma eternidade para ser construída. E pensei na falta que me faz cultivar mais a preceito tempo individualizado com cada criança,  para que não seja mais uma, mas seja ela. E possa falar de si, do que pensa, sente e gosta. E não gosta. Como ser único, e não apenas como elemento de um grupo.
Sei que é urgente e sei que vale a pena. Para uma educação de vínculos e laços. E só se vincula quem encontra lugar no tempo de um outro. Para além da planificação, das atividades e do tem que ser   

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Há dias assim

O fim de tarde esteve lindo, apesar do frio. Avermelhado e laranja a prometer sol para o dia seguinte. Vai ser quinta-feira, mais um dia na semana e o corpo a pedir sábado. Para libertar o tempo de tanta tarefa, deixá-lo de molho na calda do sossego, um bem a não perder. Nós que andamos cheios de nada e ausentes de quase tudo. Sem espaço para a liberdade e a criação. 

Andei esmorecida, hoje. Sem alma, sem magia, apenas a fazer. A solidão prendeu-me o riso e a saudade inundou o dia. Uma certa melancolia, que veio de longe e se instalou. O frio não ajudou, digo eu, para nada dizer. 

Na escola, o dia correu bem. Vi mais risos, menos zangas e mais partilha. Houve propostas e festa de anos. Falámos de meninos e meninas felizes e conversámos sobre a importância de ajudarmos quem mais precisa. Quem chora. E houve a hora do mimo, que agora criámos e que todos gostam. Mimam-se uns aos outros, depois do almoço, quase em silêncio. É um momento em que estamos a aprender a tocar nos amigos com afeto. Para que as mãos possam inverter a fúria e a impulsividade. Foi bom.

Mas a melancolia não passou, nem a saudade. Qualquer coisa indefinida e meia triste. Qualquer pena, qualquer dor. Julgo que não afetou muito os meninos e se assim fosse, também não fazia muito mal. Os educadores são pessoas e as crianças precisam de as ter em todas as dimensões. Com bom senso, claro e em doses justas, diria eu. Para dizer que os adultos, por serem verdadeiros, não devem ser imprudentes ou imaturos. Sei que não fui.  

Agora fui reler  Sophia de Melllo Breyner  

As minhas mãos...

As minhas mãos mantém as estrelas 
Seguro a minha alma para que não se quebre
A melodia que vai de flor em flor
Arranco o mar do mar e ponho-o em mim
E o bater do meu coração sustenta o ritmo das coisas 

domingo, 24 de novembro de 2013

Partilha pedagógica, ao domingo

Domingo. Já cheira a natal, embora eu ainda não sinta.
O sol veio de visita, morno e amigo, nesta manha fria. Ainda bem. Ajuda a espantar o nevoeiro das ideias e a escuridão dos medos. Inunda tudo de claridade, o que é uma bem para o corpo e a alma. Apesar disso, não liberta as palavras que trago encolhidas no coração.  Estão compactadas, sinto, e não há espaço para as distender. Aguardemos que o tempo ajude a construir uma composição mais percetivel e transparente: as palavras bem alinhadas, umas a seguir às outras, com os múltiplos sentidos a descoberto.

Enquanto isto, persigo ideias e sons, junto sentimentos e emoções e olho-me ao espelho dos dias. Penso nas crianças da sala. Vejo-lhes os risos e a zangas, permaneço um pouco naqueles que ainda procuram um lugar no grupo. Zangam-se e protestam, numa ladainha decorada pela presença de sofrimento. Sei que é isso, quem bate quer abraços, ainda que também segurança e apoio. Quem se zanga com muita regularidade, grita por adultos que os ajudem a serenar. Se não, ficam invadidos pelo medo dos seus impulsos, que não conseguem gerir. Lá na sala, ainda existem muitos meninos e meninas assim. 

Personalised Colour In Advent PosterE existem outros, que já se libertaram das amarras das suas dores e que iniciam um tempo e um processo de lugar no grupo, na rotina e nos projetos. Aprenderam o sentido de estar em conjunto, decidir, investir e avaliar. Não são muitos, mas estão lá, realizam os nossos desejos mais profundos de uma pedagogia estruturada e democrática. Confirmam a nossa necessidade profunda de sucesso como profissionais. Apesar de não o confessarmos, devolvem-nos uma imagem de competência. Mas são muitas vezes os menos apoiados, porque os deixamos entregues à sua autonomia, na impossibilidade de responder a todos. Descubro, muitas vezes, os seus olhos a pedirem colo. E corro para o dar, mas está sempre muito ocupado e cheio das histórias e dos corpos dos meninos e meninas mais inquietos. E sinto a minha limitação como pessoa e educadora. Não chego para tanta vida e tantos desafios. 

Nesta(s) dualidade(s) diária vou fazendo o melhor que sei, sentindo que não me chega a experiência, o saber e a emoção que me caracteriza. Nem as estratégias que procuro, regularmente. Mas não há como desistir. nem como não alimentar a vontade de continuar, com verdade, a tentar  dar o melhor de mim. A isso estou eticamente obrigada, porque a educação é um compromisso ético. 

Aconchego-me então em alguns ditos de quem pensou a educação das crianças no mundo

"  A criança precisa de ser frustrada para sentir que não pode possuir tudo e para poder pensar em vez de fazer; de ser contrariada para sentir que há outros interesses para além do seus; de sentir agressividade e também de a manifestar; de ter pais e educadores reais e não seres convencionais, frios, dogmáticos, daqueles que fazem educação pelo manual. Precisa de desobedecer para aprender o que é a desobediência; precisa de fazer experiências dolorosas para aprender a conhecer e compreender a dor; a criança precisa de ser educada com verdade”  (João dos Santos, 1991) 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Os Direitos da Criança

Termina o dia e as palavras todas ainda estão dentro de nós, os risos e os abraços, os desenhos e as pinturas, colagens e canções, pequenas birras, negociações e empréstimos, amizades e conflitos, tudo em catadupa, tudo em remoinho, que as infâncias algumas, são velozes e cheias de pressa, sujeitas a ventos do norte e chuvas de verão. As crianças crescem, mas muitas coisas estão ao contrário e permanecem assim por muitos anos da vida. Procuramos pedaços de sol e a brisa suave da primavera, abrimos janelas para alargar os horizontes, que as nesgas que nos dão para espreitar o mundo, são de curto alcance e escondem as promessas do futuro.

Compete-nos essa função e essa esperança. Essa luta, teimosia e persistência para com a infância. E porque se comemorou hoje a ratificação por Portugal da Convenção dos Direitos da Criança, trouxemos o assunto para a sala e lá estivemos a conversar e a pensar, a propósito do livro "Gabriel, o direitinho" sobre as crianças, os seus direitos, necessidades e desejos. 

Os meninos e meninos da sala ouviram a história com interesse e silêncio, para meu espanto. E depois falaram e disseram de sua justiça, deixando-me perplexa e contente..pela forma como os rostos e os olhos mostravam saber que o assunto era sério e a eles dizia respeito. E pudemos falar dos bebés, como pessoas importantes, contrariando o que na sala serve para agredir os outros quando estão zangados és um bebé... uma questão cultural, que muitos adultos dizem, bem o sabemos...

Quando fomos à escola do 1º ciclo oferecer uma cópia dos direitos das crianças, mostraram-se à altura dos acontecimentos...todos de igual forma? não, nem isso se pretendia, têm entre três e seis anos de idade, são vinte e cinco, todos diferentes e todos iguais, como diz o slogan...

O que foi bom ver e sentir, é que vale a pena não desistir, nem dar crédito aos nossos preconceitos escondidos, inconfessáveis, mas enraizados de que são pequenos, são difíceis, são desatentos, não entendem.

Também são, fácil a tarefa não é, mas impõe-se, para a construção de uma cultura democrática onde as crianças sejam pessoas de corpo inteiro. Onde possam aprender a pensar-se a a pensar o mundo e o lugar que nele ocupam.  

Volto a repetir, de mim para mim, para me lembrar quando o desalento me invadir: não é tarefa fácil, mas é urgente e o único caminho que conheço para respeitar as crianças e educar (n)a escola. 

sábado, 16 de novembro de 2013

Os teus olhos

Sábado. Dia de escrita.
Mas este é um sábado especial, faz seis anos que foste embora. Não consigo pegar nas palavras de qualquer maneira, nem elas deslizam livres como as folhas secas de mais um outono, melancólico e bonito 
Hoje, as palavras estão pesadas e atrapalham-se com o bater do coração, levemente descompassado. Quando partiste, alteraste o ritmo de muitas coisas. Muitas delas mudaram de sitio e significado e ficaram confusamente dispersas. Apenas o passar do tempo as recompôs, ainda que sem a mesma harmonia e afeto. As mães têm esse condão, colocam quase tudo no sitio certo, para que possamos ser gente no meio do mundo. Quando partem, olhamos para trás e já não há ninguém. Desamparados, ficamos sem encosto e com frio nas costas. Em muitos dias, não há cobertor ou manta de lã que nos valha. E gelamos. 

Assim estou. Mulher feita, ainda à procura dos muitos sentidos da vida, com saudade dos teus olhos. Acordei a lembrar-me deles, grandes e castanhos, menineiros e sorridentes. Curiosos e quentes. Às vezes ficavam tristes e deitavam muitas lágrimas, fui testemunha disso. Julgo que nem sempre os entendi como tu necessitavas e nem sempre o meu regaço e as minhas palavras foram um porto seguro de acolhimento. Quando somos jovens, encetamos com facilidade a fuga para a frente como se não houvesse mais amanhã para cumprir os nossos desígnios. Temos pressa e não temos tempo. Centrados em nós, descuidamos os outros. Desculpa por isso.  Mas aconchega-me saber que em muitos dias, a minha força e atenção contagiaram a tua confiança e as tuas decisões. 

Hoje, queria-te por cá, para ver os teus olhos e sossegar. Já teríamos ido tomar o café, comprado o jornal e tu contente ao meu lado, a falar de coisas comuns e importantes. E faríamos a seguir o almoço. Acho que podia ser arroz de tomate com jaquinzinhos fritos, coisa que nunca mais fiz e não apenas porque os fritos fazem mal. Há coisas que não se repetem quando as ausências doem. 

Hoje, sinto-me mais órfã e sozinha, apesar da casa estar com aqueles que amavas. Mas não chegam para ocupar o teu lugar vazio. Se te sentasses no teu sofá da sala, eu ficaria em frente a olhar para a televisão e não precisava de ir buscar a manta de lã e o saco de água quente. Estou cheia de frio, mãe e faltam-me os teus olhos. Para me dizerem, apenas com o olhar, que tudo está no sitio certo. E que não há porque ter medo do futuro. 

Tenho muitas dúvidas mãe e ninguém me sabe dar as respostas que o teu amor e os teus olhos me dariam. Sem grandes explicações, apenas pela tua presença. Apenas porque sim.
  

domingo, 10 de novembro de 2013

O nosso lugar

Deixei-me arrastar pelo trabalho e perdi o tempo e o silêncio, neste fim de semana. Não cuidei da minha reserva de oxigénio, feito de palavras e lugar para me aninhar em mim. Deslizar suavemente pelas coisas, reconhecer os sons do quotidiano, aguçar a memória e a imaginação, refazer-me dos incómodos da semana. Poder lavar a alma.  

E assim estou neste final de domingo, meia desconsolada e em falta com os meus rituais. Eu, que nesta fase, necessito urgentemente de arranjar um poiso, sereno e solidário, quente e conhecido, para me ajeitar ao mundo. Se tivesse treze anos diria que o mundo é mau, num expressão de recusa assertiva. Com cinquenta e seis anos, direi apenas que é complexo, aceitando as suas formas, desafios e perplexidades. Não dói menos, entender e racionalizar o que à nossa volta nos entra pelos olhos e pela pele. Pelos sentidos. 

A idade não destrói as crenças nem as convicções.Nem as necessidades. Talvez as suavize, mas elas permanecem intactas  e ás vezes redobram de força e energia. Tornam-se coisas prementes. Como o pão para a boca em dias de forme.  E eu preciso do meu lugar. O que sempre tive por debaixo da pele  e me faz ser quem sou. 
O lugar como identidade(s), conjugada no plural porque é assim que deve ser, tal é o tamanho de que somos feitos. Para me reconhecer todos os dias e quando for ao espelho encontrar tudo no sitio certo: as rugas, a alegria, a esperança, o sonho. Sem ser preciso pôr base para disfarçar pequenas expressões de estranheza ou inquietação. 

Rever-me de corpo inteiro no lugar de sempre, é o que quero. Com a força que sempre me inunda e a confiança na vida. Como pessoa e profissional. 
Por agora, distraio-me com os muitos ruídos do quotidiano e a agenda carregada de quem me rodeia. 
Não me refiz neste fim de semana e não cuidei de me tranquilizar no meu lugar.

Apesar de tentar, não o resolvi com este texto. 


segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A força das palavras

Depois de um fim de semana por terras de Aveiro, perto da memória da minha mãe e da infância, regresso à cidade e à escola. Parece que estive muito longe, tal foi a imersão no verde dos campos, no azul da ria e na cor branca das garças que povoavam a terra mesmo à frente da janela da minha casa. Um fim de semana meio tristonho, mas cheio de aconchego(s). Os de sempre, que moram connosco no lugar do coração. 

E agora, mais uma semana. Respirar fundo e reiniciar o que parece ainda  pouco seguro. 

Chegaram pela manhã, com risos, abraços e alguns amuos, que isto de começar o dia é diferente para cada um de nós. Mil conversas entre eles e elas, pulos e saltos, caras paradas à espera que nos juntemos todos para planear o trabalho. Alguma confusão com quem fica ao lado de quem, negoceiam-se empréstimos de brinquedos e idas para as áreas, relembra-se o que ficou decidido na semana anterior, mas não ouvem, porque se instalam, com prazer, nas amizades já construídas e cimentadas ao longo deste pouco tempo de vida conjunta. Olho para eles e sinto-me dispensável, tal é a alegria do reencontro entre pares. 

Fico em silêncio a pensar que já muito cresceram, ali, na sala, palco de tantas vidas, ações, desejos, medos e confortos. Relembro o inicio e as brigas, os choros, a mão e o pé levantados com uma facilidade tremenda. Ainda é assim, mas com muito menos frequência. Agora, já aprenderam a usar as palavras em vez da impetuosidade do corpo sempre pronto para avançar sem olhar. Ainda assim é com alguns, mas aos poucos uma corrente de novas maneiras de ser com os outros vai tomando lugar e a dianteira e ouve-se com frequência: Manela, eu partilhei...eu trabalhei em equipa...e mostram as construções feitas a quatro ou a seis mãos, e pedem desculpa...e abraçam-se e apoiam-se e desenham a pares e pedem ajuda. E conversam.

E eu, olho e emociono-me. Gente pequena a aprender a ser gente, uma educadora a aprender a ser o melhor que puder ser, numa sala que já vai sendo património e lugar de todos. Ainda e sempre com diferentes níveis de inclusão e participação. Porque isto de pertencer a uma comunidade de meninos e meninas com adultos, é coisa muito difícil de alcançar. Pelo menos por estas bandas...mas para inicio de semana, não está nada mal. Eu corrijo. Está até muito bem, porque algumas palavras - mágicas - começam a ganhar terreno e raízes e a dar frutos. partilhar, ajudar, trabalhar em equipa, pedir desculpa...Sem falsos moralismos ou apelos normativos, mas como soluções e estratégias para uma convivência harmoniosa e respeitadora de todos e de cada um. Como alavanca para a construção da democracia na escola. 

Com gente tão pequena? sim, com gente tão pequena e tão capaz. Por isso é que podemos e devemos usar e abusar das palavras que permitem, ainda que lentamente, mudar as atitudes e os comportamentos das crianças. Para que sejam mais felizes e atentas ao mundo e aos outros. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Cheio de mundo(s)

Há 22 anos, este foi o dia em que nasceste. 
Uma terça-feira, também, o dia por ti escolhido. Fui para o hospital, tu estavas preguiçoso para vires conhecer o mundo, mas quando te decidiste, foste rápido. Estava a sala cheia de gente à tua espera e eu, sempre pronta para as palavras, disse uma poesia, quando te prendi no meu corpo. E estavas quente e doce e a chorar. E eu desejei-te uma longa e boa vida. Acho que a tens. Pressinto e espero que assim seja por muitos anos.

Agora, com o curso recente de jornalista, ensaias textos num jornal, aprendendo a ser o que desde cedo foi uma coisa tua: jeito para composições e zangas quando as professoras faziam correções: mãe, porque é que não posso escrever uma menina com lábios cor de sangue? e eu a  responder pode-se dizer essa ideia com outras palavras,  talvez seja isso que a professora quer dizer...e tu a protestar. Sempre foste assim, menino com sentido assertivo, mil razões e réplicas, numa voz forte e destemida. Até quando começaste a jogar andebol, com 8 anos, os árbitros te chamavam a atenção. Paravam o jogo, e tu a retorquir. Ainda assim és. Olho para ti e sinto-te cheio de mundo(s) e de ti.

Em pequeno também, davas gargalhadas por tudo e por nada, tinhas sempre uma personagem no teatro das festa da escola, corrias e saltavas atrás da bola, cercado por amigos. Ainda assim és. Agora o teatro é como espectador, mas aprecias uma boa peça, vais a estreias e escreves sobre o que vês com sensibilidade e sentido critico. Os amigos, esses são do peito e por eles e com eles foges de casa e vais para eventos, noites de jantaradas, conversas até às tantas...

Poderia dizer que é um bom vivant e que da vida queres o seu melhor sabor. Mas o que quero hoje relembrar é a tua cara de menino, os teus braços à volta do meu pescoço e as tuas perguntas constantes, quando te ía buscar ao jardim de infância e descíamos a rua, contigo a comer um gelado.  Ou quando, te deixei na creche, tinhas tu dois anos e sentado num cavalo de pau te perguntei para onde vais, filho? e tu respondeste, sem conseguir ainda dizer o r - vou paa o pojeto, mãe...

Nessa altura, fiquei convencida que apesar de brincalhão davas atenção a muita coisa e que nós, cá em casa, andávamos a falar muito em projetos. Não foi de todo em vão, julgo, porque te lanças e multiplicas em mil ocupações, procurando lá fora, a vida e o mundo. 

Parabéns, filho!

PS - poderias voltar a ser bebé? só por um bocadinho, tenho saudades de ti, morno e doce. 

domingo, 27 de outubro de 2013

Palavras emprestadas: a forma justa

Neste domingo de sol, já espreitei a poesia de outros. Um deslizar por outras palavras, para me aninhar na beleza e confirmar a coragem e a lucidez de quem pensa o mundo de forma justa, como a única possível. Para ficar mais acompanhada neste dia.  

Aqui fica na voz de Sophia de Mello Andresen

A forma justa

Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos  espaços e das fontes
O céu, o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos - se ninguém atraiçoasse - proporia
Cada dia, a cada um, a liberdade e o reino
- Na concha, na flor, no homem e  no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é o meu oficio de poeta para a reconstrução do mundo

in "O nome das coisas"

sábado, 26 de outubro de 2013

Escrita e liberdade

Fim de tarde sereno, depois de dois dias de intensa chuva. É bom. Apesar do silêncio, oiço o ladrar de um cão, ao longe, e espreito a cor laranja do pôr do sol. No meu sótão, tudo parece adormecido ainda que na mesa e no chão permaneçam vestígios de coisas para as crianças. É sempre assim, o trabalho nunca acaba nem a procura de estratégias para dinamizar a vida do grupo e a aprendizagem dos meninos e meninas lá da escola. 

Mas hoje é sábado. Dia de escrever, de pegar nas palavras e salpicar o teclado, a par e passo com os ditos do coração. Porque a escrita é isto, um apanhado de ideias que não obedecem a um menu encomendado. Sentados no nosso canto e cheios de nós, vamos escrevendo as palavras que se libertam e compõem linhas, umas a seguir às outras. No fim,  ficam os textos, expressão de liberdade.

Isto é a escrita. Pelo menos a minha, esta que escrevo aqui e noutros locais, a que ninguém tem acesso, quando os conteúdos se apresentam mais íntimos, lacrimejados ou inconfessáveis. Pequenos segredos, de mim para mim. Uma forma de manutenção e resguardo da identidade e dos sonhos.

O sábado, para a escrita, é um dia de liberdade necessária. Imperiosa. Que anda de braço dado com a disponibilidade, a real e a que está no interior de nós. Para escrever é preciso tempo e desejo. Um bocado do coração aberto e livre, a vontade de dizer, a escuta daquilo que nos percorre o corpo, a cabeça e a alma. Ouvirmo-nos, sem medo dos sons que surjam. Pensarmo-nos, sem receio do que encontrar.  Não ter medo da vida, não ter medo da derrota, não ter medo de sermos quem somos. Peito aberto à feição do tempo e dos adágios, diria a minha avó.

E a minha avó, que não escrevia lá muito, sabia contar histórias como ninguém. Era a sua escrita, que desfiava no tempo do verão, comigo por perto, enquanto fazia pequenas tarefas. Escolher os feijões e as batatas, regar a horta, apanhar as espigas, olhar para o céu.

Coisas poucas, que arreliavam os filhos, inconformados com esta teimosia da sua permanente ocupação. Mãe, para quê? já não tem idade...e a minha avó ofendida, encolhia os ombros e calava-se. Voltava às pequenas tarefas, sentia-se livre assim, a cirandar por entre a vida de sempre e a contar histórias. Pegava nas palavras e desdobrava-as em mil sentidos, rindo, ou fechando o rosto quando o capitulo era mais denso. Ou triste. E eu, fiel ouvinte, aninhava-me na palha seca do milho e seguia deslumbrada todos os enredos. A do lobisomem, a do namoro com o meu avô, a do gato preto, a das mulheres tristes, a do Manuel, a do Joãozinho e da irmã. E outras. Recordo com clareza a voz, os gestos, a graça e a cumplicidade da minha avó a contar histórias, como se as escrevesse.

Creio que foi daí que comecei a inventar histórias, a escrever e a amar a liberdade. Como primeiro requisito para se ser gente de corpo inteiro.
Quando escrevo, ao sábado, isso parece ainda mais verdadeiro. E premente.

sábado, 19 de outubro de 2013

Apenas o (im)possível

Chove. 
Cai a chuva no telhado do meu sótão e embala a tarde boa de descanso. É sábado. 
As folhas molhadas das árvores que vejo pela janela parecem frescas e claras, lembra-me a humidade do musgo do presépio de natal. Sinto uma ligeira nostalgia e saudade. De ser mais nova e ter a minha mãe por perto e confirmar que a vida, em muitos dias, pode ser e é normal. Acordar e ir ao mercado, comprar legumes e peixe e fazer o almoço e rir. E sentir que outros tomam por mim as decisões necessárias. Estou cansada de comandar destinos. Tomar nas mãos o centro do meu mundo, pensá-lo com mil precauções e sentidos, escolher a paisagem certa para os eventos de ser pessoa em conjunto com outros. Cansa. 

Quero apenas do sol o seu calor mais suave nestes dias do outono. Depois, quero apanhar flores secas, fazer um arranjo e colocá-lo no lugar certo da sala. Comer castanhas cozinhas com erva doce e dormir no sofá, com o gato por perto. Apaziguar esta procura excessiva de mudar o que penso não estar certo, tal é a convicção de que a mudança é necessária. Hoje não quero sonhar mundos onde todos tenham um lugar. Não me quero ocupar com tal missão, é difícil e penosa. Sinto-me só neste combate. 

Por isso, tenho saudades da minha mãe. Das suas prioridades matinais, do tempo que queria quente ou chuvoso, da atenção para com o pequeno almoço e do seu afastar das cortinas para olhar para a rua. Dos seus pequenos gestos, das mãos morenas, do afagar da toalha de mesa e do tempo que demorava a olhar para os netos, com os seus olhos de carinho. Como a coisa mais importante. E era. 

Queria-a por cá. De certeza que me iria chamar lá de baixo da cozinha e dizer quando vamos fazer o jantar? e quando eu descesse, assim cansada, ouvi-la dizer mas o que estás tu a fazer? porque trabalhas tanto?... hoje é sábado... e encolhia os ombros e ficava contente de me arrastar para ela. 

Pois é mãe, hoje é sábado. E embora esteja rodeada de gente, fazes-me falta, para me chamares para outro lado, para o lado onde o corpo e a mente descansam, entre uma conversa sobre o tempo, uma chávena de chá quente e o fumegar da panela do jantar ao lume. E o jornal aberto e tu a comentares comigo as noticias frescas do dia. 

Podes vir? 

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Pedagogia

Escuto-os, observo para compreender, converso e deixo conversar e sinto que não chego para tanto que vejo. Os abraços não retiram o choro que surge por coisas de nada, a atenção não evita zangas e empurrões, as estratégias revelam-se relativamente falíveis. O mundo que ali está vem carregado de outros dias e noites, histórias cheias de outras histórias, vidas muito compridas e densas para gente tão nova. E entram a sorrir, mas muitos motivos fazem surgir a impaciência, as dificuldades de partilha, a impossibilidade de dizer por palavras o que o coração sente. São outras linguagens que se habituaram a usar e agora é preciso um tempo largo para aprender, no seio de um grupo que começa a ser uma comunidade de afetos e interações, mesmo que em alguns momentos, conflituosas. 

Assim se reconhecem e se entrelaçam, descobrindo diferenças, semelhanças, afinidades, encantos e alegrias.E tristezas. E amuos. Gostam-se, mas esgrimam vezes sem conta o seu poder, a sua emoção, a sua identidade. Querem-se únicos e exigem toda a atenção do mundo. São muitos e são pequenos. 

E eu, com muitos anos de profissão, fico espantada, ainda que talvez não devesse. Um pouco à nora, vou procurando construir lugares de satisfação, lutando contra o desconforto de me sentir pouco gente para tanto mundo(s). Precisava de ser mais pessoa, maior até, com um colo grande que acolhesse mais meninos. Porque alguns precisam muito de sossego, uma brisa no rosto e mil braços de cuidados e amparos. Para depois, ainda que devagarinho, se fossem libertando dos fios que lhes prendem a serenidade e a alegria. 

Assim estou. A pensar cada dia na melhor maneira de proporcionar um tempo e um espaço de bem estar. Assim estou, às vezes otimista e persistente, outras vezes confusa e impaciente. Sei que o meu tempo não é o deles e sei que me tenho que ajeitar ao seu mundo. Com segurança, afetividade e autoridade. Ora isto é tudo menos fácil, no lugar onde estou. Serei capaz?     

domingo, 13 de outubro de 2013

Gente...e gente

Há pessoas que são felizes em mundos pequenos, com os objetos e projetos todos ordenados, não necessitando de qualquer brisa do mar que agite a cortina da janela e descomponha a colcha da cama, fielmente feita todos os dias à mesma hora. Também não apreciam uma surpreendente lua cheia que ilumine a escuridão de um caminho perdido na serra. São pessoas cautelosas, chega-lhes a harmonia que estabelecem com os ponteiros do relógio e as contas atempadas para a chegada de cada estação. Armários arrumados, roupas quentes para o que der e vier, pantufas colocadas à espera do inverno. Tudo pronto e tudo controlado, que as surpresas assustam o coração e tornam desconfortável a ideia de futuro.Sentem-se sem rei nem roque, não se atrevem a respirar, sentido incómodo e uma dor na alma pelo que não conseguem antecipar. Têm amigos certos, que os ajudam a apanhar as uvas quando ficam maduras, mas nunca ousam dizer ou pensar que até ao lavar dos cestos é vindima. 

Há outras pessoas para quem o mundo é sonhado na imensidão de um tempo por descobrir. Apaixonadas pelos reflexos do nascer do sol nas madrugadas frias, saem de casa vezes sem conta ao cair da noite e procuram curiosas as palavras certas para iniciar os dias. Compõem-nas em companhia, com amigos, aqueles que andam de igual maneira à procura da vida, porque a que têm está velha, gasta e com pouco sentido. Também lhes dói a alma, mas pela razão inversa dos que não desejam ser surpreendidos.

Não se atrevem a respirar quando tudo está irremediavelmente no sitio certo e quando não alcançam os caminhos bons para sonhar os sonhos de olhos abertos.
Gostam de bússolas que lhes indiquem o norte, mas chamam a si a descoberta de outros roteiros para entenderem a imensidão de estarem vivos. Cantam, dançam e falam até tarde, porque as palavras são uma arma para revelar o que de si e dos outros anda escondido. Conhecem da vida o seu sabor agridoce e dizem vezes sem conta não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe...

Conheço gente de um lado e de outro. Entendo melhor os segundos, porque aí me situo, inconformada com mapas que outros fizerem e nos oferecem para poupar medos e mãos feridas de apalpar pedras e urtigas do campo. Rendo-me depressa a estas dores, elas mostram-me a realidade, que procuro enquanto tenho tempo de a tingir com cores de coragem, investimento e encanto. Quando os encontro, em mim e nos outros. 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

O meu irmão

Hoje o meu irmão faz anos. Quando eu nasci acho que me esperou ansioso ao colo do meu avô, a perguntar vezes sem conta quando chegava o bebé. Desse tempo da primeira infância, não me lembro dele, apenas de algumas histórias que a nossa mãe contava e que eram repetidos por outros elementos da família. Quando um dia saiu de casa e rumou à casa da avó materna, uma distância considerável e ele veloz, sem que o apanhassem; quando, sem saber bem como, ateou de labaredas o cabanal, cheio de palha seca para os animais, na eira dos nossos avós paternos e depois foi um susto; quando dormia dez horas seguidas em bebé, o que originava muitas comparações quando eu nasci, cinco anos depois e apenas dormia meia hora. No nosso clã familiar, o meu irmão era um menino doce, lindo e querido por todos, porque era simpático, atento, discreto e bonzinho. E bonito. Mantém ainda hoje alguns destes traços. 

Sendo mais velho, o meu irmão foi desde muito cedo o meu herói e a minha referência. O que não me impediu de ser mestra dele em algumas coisas importantes, que fazíamos por troca: eu ensinava-o a dançar e ele lia-me francês, quando ainda andava na primária. E assim era. Na nossa casa pequena, junto à secretária do meu pai, eu ria-me com os pés dele que eram de chumbo e não acompanhavam o ritmo da musica e ele pronunciava as palavras com uma sonoridade que me encantava e mostrava-me os monumentos de Paris. Sentia-me absolutamente estrangeira e crescida. Na adolescência, ofereceu-me um diário branco, com uma chave, certo que guardar segredos era um investimento fundamental para um crescimento mais intimo e protegido. O meu irmão sempre me protegeu e eu a ele.  

Sem dinheiro para lhe comprar prendas, ajudei-o na colagem das fotografias dos alunos, quando começou a dar aulas. E quando era preciso regar a horta e ele morria de sono de manhã. Deixava-o estar e adiantava-me na tarefa. Como já disse sempre fui uma rapariga de dormir pouco. Também vigiava alguns dos seus horários e obrigações e em alguns dias acordava-o para ele ir fazer, por exemplo, o exame. Aquele, o de matemática, que quase ia chegando atrasado.  E acompanhava o seu atletismo e as suas vitórias. Ficava orgulhosa por tanto talento. Era o meu irmão. 

Que fazia comigo o presépio no natal, que tinha livros de politica que eu lia, que tinha amigos que gostavam de mim, que era meigo, justo e bom. E absolutamente confiável. E honesto. A nossa mãe adorava-o e comigo fazia longas considerações sobre a sua vida. A publica, que o ausentava de si e ela, entre o orgulhosa e o moída de saudades. Do seu menino. A nossa mãe quando olhava para o meu irmão, os olhos sorriam de contentes e o coração dela melhorava da solidão. 

Hoje somos dois adultos, mas acho que continuamos com a mesma proteção e amor. Às vezes eu gostava de o ter mais presente nos meus dias, mas o meu irmão é uma pessoa ocupada. Mas eu sei e sinto que esteja ele onde estiver, está sempre comigo. E eu com ele. São muitos anos de amor, apoio e confidências  Agora parece que já não preciso de o ensinar a dançar e também já não tem exames de matemática para fazer. Mas em todas as suas provas de fundo, estarei sempre a vê-lo, atenta e vigilante, ainda que discreta. Eu sei e o meu irmão sabe que há muitas outras coisas que nos fizeram ser unha e carne. São nossas e são segredo.

Parabéns, mano!

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Paraíso

Fim de tarde sereno. 

O cansaço prende o corpo e a alma requer libelinhas em lagos de nenúfares, um chá quente em cima da mesa, dez dedos de conversa no café junto ao mar. Deixar o tempo correr por breves instantes, apenas o necessário para retomar a cadência do bater do coração em dias felizes. 

Se fosse possível, poderias vir para acertarmos algumas confidências que deixámos a meio e são o fermento do pão que alimentou os sonhos que sonhámos. Mas não virás. No sitio onde estás, as raparigas andam contentes a cuidar da terra e dos filhos, as cigarras cantam ao final da tarde e o sol despede-se todos os dias com uma cor forte e convidativa. 

Dá vontade de aí ficar, eu sei, os dias anunciam-se inteiros e sagrados, templos abertos para celebrar a vida, os amantes vivem em superfícies de azul, com garantia de amor eterno. 
As crianças correm felizes por florestas verdes e crescem desafogadamente, longe de quartéis e casas fechadas à brancura do tempo. Consigo vê-las e também tenho saudades. 

Por isso sei que não virás e apesar da tristeza, juro que compreendo. Como regressar de um tempo limpo, um calor morno e um céu aberto? 


domingo, 6 de outubro de 2013

Longe e perto

Ando com muitos meninos e meninas dentro de mim. Cheia dos seus risos, choros, abraços, zangas, palavras, silêncios. Emersa das suas obras e feitos, das suas conquistas e recuos, num movimento permanente de serem gente todos os dias. Em conjunto e cada um à sua maneira, o que implica sucessivas negociações, trocas de ideias, consensos, discordâncias. E assim ando, contente em certos dias, desconfortável, noutros, à procura da melhor parte de mim, vigiando a minha identidade, numa escola que há muito tempo que é escola. Chegada de novo, apenas estou eu e mais 19 meninos e meninas. Todos os outros já lá andavam, restantes crianças e adultos. Ando cheia deles e estupefacta com o mundo, a vida e a infância, que nunca pode ser conjugada no singular. Infâncias, será mais apropriado. Quando as são.

E estranho a cor do portão, a chave que não roda, os locais que não sei, as pedras da terra do chão, o toque da campainha, as entradas e as saídas. Estranho porque não conheço e vou conhecendo e estranho. São sempre assim os primeiros olhares e seria bom que os segundos e terceiros pudessem ser diferentes. Menos estranhos e mais amigos. Calorosos e enlaçados. Precisamos todos de nos sentirmos em "casa", quer dizer, de bem connosco e com os outros, pacificados e serenos, de pantufas calçadas, como sugeriram um dia, numa outra escola, umas quantas famílias para mostrarem o quanto se sentiam bem nesse espaço. Imagem interessante para revelar um ambiente acolhedor para todos. De resto, sabemos todos, que as escolas são as escolas e as casas são as casas. E é bom que sejam. Com caminhos amplos de relação franca e aberta entre elas, mas espaços diferenciados.

É por isso que sei que ando cheia de meninos e meninas mas que preciso de me libertar um pouco desse açambarcamento. Porque é disto que se trata. Para além das horas com eles, na sala, o pensamento sempre ocupado com as suas vidas, que agora se tornam "matéria" incontornável, largada ali no meio da sala e nós a ter que lhe pegar, sem saber que fio da meada reter na mão para apoiar um desenlace feliz.

E são tantas as meadas e tantas as infâncias, nesta escola de há muito tempo, que preciso de ficar menos cheia de meninos e meninas para construir um olhar mais liberto e novo, confiante e poderoso.

E depois então, já mais distanciada e serena, voltar a olhar de perto, com a distância emocional justa, que parece ser condição para uma relação pedagógica mais promissora da autonomia e desenvolvimento dos meninos e meninas. Só assim me poderei recolocar no lugar certo e redimensionar de novo a minha pessoa e as infâncias que à minha volta por mim reclamam cada dia.