sábado, 28 de fevereiro de 2015

De novo o diário: avanços e recuos

Sábado.
Um sol que espreita de mansinho para retemperar forças. Como diz o poeta fim-de-semana é para ganhar coragem. E coragem é coisa que necessitamos. Coragem e alegria para espalharmos pelos dias que nos são oferecidos, assim, como uma bênção, dizem alguns. Mas não é gratuito, tem custos e preceitos, dão-nos o tempo e nós temos que o esculpir. Arte difícil, não vem com manual de instruções nem ferramentas úteis para a produção da obra, a que faz da vida uma condição boa para se viver. 

Lá pela nossa sala, conversamos muito destas coisas, sem metáforas, já se vê. Indo diretas ao assunto, que não chega passar ao lado e ignorar. Não ignoramos porque é tudo muito real, não ignoramos porque vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar. Somos requisitadas vezes sem conta para resolver problemas, a conquista de autonomia é um caminho longo, que exige atitudes concertadas e consistentes. Quando não existem, porque a educação é obra de muitos, demora-se mais a saber o nosso lugar, os nossos direitos e o sentido da participação. Andamos para trás e para a frente, ora com avanços ora com retrocessos. No fim, quero acreditar que o saldo será positivo. Assim espero, por isso nos debatemos e não largamos mão desta forma de fazer. Com ambivalências e impaciência. Queremos fazer depressa e bem e nisso há pouco quem.

http://nice-cool-pics.com/data/media/30/ropework.jpgNesta semana o diário ficou novamente cheio. Cheiinho de problemas. Muitas escritas e muitas letras, a fugir da coluna certa, a encavalitarem-se umas nas outras, tal e qual os conflitos que têm. Tantos, que na sexta-feira, dia de conselho, foi difícil relatarem o vivido e lembrarem-se do que tinha acontecido. Rapidamente diziam não, não, eu não fiz, não fui eu, tornando (quase) irrealizável a discussão e a resolução.
 Salvou-nos a memória dos mais velhos que tinham estado por perto dos acontecimentos e que ajudaram a estruturar os diálogos.
Os adultos falaram muito, para apoiar as ideias, fazer sínteses e pôr de pé o conselho. Os mais novos queriam de novo escrever, porque se lembravam de novas aventuras, atropelando o tempo e as ocasiões. São novos sim, têm 3 e 4 anos. Cheios de gestos rápidos conhecem de cor as reações a quente, levantam o braço e batem, estão a aprender a pensar antes de bater. Leva tempo, muito tempo.

Quando terminámos uma ponta de mau estar invadia-me. As ideias a perseguirem-me, a inquietação de um tempo mais nosso que deles, a certeza do possível, a fragilidade do(s) modelo(s) de mediação e contenção, em contraponto com a facilidade da resolução aqui e agora. Olho por olho dente por dente, pois, é mais fácil.
Sexta-feira terminou com a cabeça e a mochila cheia de perguntas. E um gosto amargo na boca e na pedagogia, que tentamos constuir todos os dias.
Por isso, obrigada ao sol que hoje veio, ainda que tímido. É bom para ganhar coragem. Assim a tenha.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Amizade e partilha(s)

Precisamos de conversar. Dizer e falar da vida que nos acontece todos os dias para a tornar mais consciente e menos madrasta. Desfiar as contas do nosso rosário, proclamar as vitórias do nosso coração, amaciar medos e descobrir descansos. Descobrir descansos faz bem à alma e é urgente. Por isso fui ter com a minha amiga, sentei-me no sofá, ela serviu-me um colo e um sorriso, um chá de gengibre e canela, tempo e lugar no tempo dela.

http://modaetica.com.br/wp-content/uploads/2014/08/a20noiva20-2070x5020.jpgNão pedi licença para abrir a boca, desatei a falar, meninos e mais meninos, estratégias e sustos de quem tem medo de fazer mal, porque fazer bem é difícil e leva tempo. Sobretudo requer a presença de outros, equipas fortes e solidárias que entrem em ação quando o corpo fica trémulo e esgotado. Porque nos podemos esgotar no tanto que queremos fazer. Foi isso que disse e foi a promessa que fiz. Poupar-me um pouco mais, reservar-me na minha lida, intentar outros devaneios, procurar o mar, ler um bom livro, redescobrir a poesia no castanho forte dos olhos das crianças. E deixar de lado, em dias mais azuis, o trabalho curricular como preocupação permanentemente.

A minha amiga também falou, formatação pedagógica, liberdade e meninos de rua, danças e canções de roda, famílias e expectativas. Depois bebemos o chá e falámos também de outras coisas. Sempre da nossa vida, sem medo, porque a amizade é uma estrada larga, com muitos sentidos e sem sinais de proibição. 
 
 Depois vim para casa, mais leve e amparada. O amparo é fundamental para irmos sendo, em modo pessoa, que é o modo que temos de ser gente com os outros. Principalmente os amigos, aqueles que têm tempo para nos dar e fazem-no generosamente. A sorte que eu tenho por ter alguns ainda assim. Já são raros nos tempos que correm.



segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Construir o sentido do diário


Quem acompanha os meus escritos semanais, sabe que aqui pela sala, o bater é uma linguagem quotidiana, quase universal, muito popular e de utilização fácil. Difícil de controlar e suprimir, o bater resiste a todas as estratégias pensadas para o erradicar, histórias, conversas, dramatizações, zangas, falas mansas, outras falas. E reuniões de emergência, onde os adultos discursam, com tons de impotência e cansaço. Os meninos e as meninas olham e ouvem e dizem que sim, claro, temos que partilhar e não devemos bater, temos que ser amigos… recitando todas as coisas que queremos ouvir. Inteligentes e atentos, oferecem-nos o que integram em forma de reza ou tabuada aprendida de cor. Depois, a propósito de tudo e de nada, batem, empurram, choram, protestam. E nós desesperamos. Mas não desistimos. 

Por isso, colocámos no início do ano, o diário bem à vista e à mão de todos, pronto a receber em palavras as ideias e expressão de sentimentos, como forma de controlo da impetuosidade e oportunidade de registo para discussão futura, à sexta-feira. Grande e silencioso, ali esteve quase esquecido entre setembro e dezembro, com exceção para algumas das crianças mais velhas que nos pediam ajuda-me a escrever no diário. Os mais novos, de 4 e muitos de 3 anos, ignoravam-no, a não ser quando vinha para a mesa e era objeto de olhares rápidos, meio distraídos, por entre conversas com os meninos do lado, fugas para baixo da mesa, brincadeiras paralelas, outras impaciências difíceis de gerir. E braços no ar, com vontade de falar e opinar, ainda que sem dia, hora e lugar marcado, atropelando-se e atropelando os outros, numa alegria agitada para participar. De pouco valia dizer para discutir tem que estar escrito. Conheciam apenas o sentido de si e a urgência em tomar a palavra, experimentando-se como autores do seu quotidiano. 

1 E foi como autores (e atores) que começaram, há cerca de um mês, a fazer muitas escritas no diário, numa explosão desorganizada de letras e formas tipo letras, preenchendo todas as colunas, com traços destemidos e ideias precisas, traduzidas nas falas que nos devolviam quando os questionávamos o que escreveste? Olha, aqui… não gotei… o A. bateu a mim… foi, foi… Sem perderem tempo, às vezes em corridas para ver quem chega primeiro, os meninos e meninas, de 3 e 4 anos, pegam nas canetas, em liberdade e afirmação, para dizerem de sua justiça, escrevem e leem para nós o que escreveram, sem medo e sem consciência das convenções da escrita, numa liberdade anárquica, mostrando que já compreenderam que em vez de bater, vou escrever o que não gostei

Está a reduzir o bater na nossa sala, aumentam as escritas nas colunas do diário, com letras e formas tipo letras, pelos meninos e meninas mais novos, que descobriram o poder das palavras em vez do poder das mãos e da força no corpo dos amigos. Tudo está resolvido? Não, longe disso, temos ainda muito por resolver. Sem saber bem como. Olhamos para o diário e rimo-nos, tal é a expansão dos grafismos e dos sentimentos colocados por todo o lado, sem ordem e sem respeito pela função de cada coluna.

Mas esse é um trabalho posterior. Como será também o discutir o que está escrito, para ser colo e esteira das interações entre todos. Lembram-se pouco à sexta-feira, são tantos os registos e os testemunhos. Temos meia batalha ganha, faltam ainda muitas outras. 
Sejamos pacientes e persistentes no caminho da construção da democracia e da tolerância. E das convenções. Cada coisa a seu tempo, sem esquecer a idade das crianças, a(s) sua(s) realidade(s)

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Meninos guerreiros

Deixamos de escrever e as palavras começam a fugir dentro de nós. Deixamos de escrever por muitas razões, saúde fragilizada, dias frios e mãos geladas, perplexidades assombradas que nos deixam de boca aberta e sorriso triste. Esforçamo-nos por continuar a acreditar na beleza e na liberdade de ser pessoa em relação com outros, mas o mundo obriga-nos a fazer silêncios contidos, para não gritar de espanto. Temos pudor de escancarar a porta e dizer que o rei vai nu. Mas vai.    

http://4.bp.blogspot.com/-6kUlLquSCjY/TzBcgDsZvtI/AAAAAAAAy3o/U9jhCfQmH7s/s640/Meninos.jpgTem estado frio, nos dias e no corpo, meu, da equipa e das crianças. Tentamos aquecer a sala com a nossa alegria, mas o tempo não está de feição para inverter a ordem das coisas. Porque a ordem das coisas é fria e crua, difícil e permanente. Os pés gelam, as mãos tremem, os casacos não chegam, os gorros escasseiam, o frio é muito. Corremos no recreio, brincamos ao lobo, o vento leva-nos as falas para longe, depois rimos e aquecemo-nos, juntos uns dos outros. Muito juntos, juntinhos. E assim vamos fazendo a pedagogia, que é uma forma de nos fazermos, uns com os outros, naquele sitio, onde desagua toda a nossa história. Tão pequenos e com tanta história. Ficamos estarrecidas com as conversas que têm, três anos e tanta vida, três ano e quatro e cinco e tanta informação.

Abrem a boca e desenrolam histórias, pegam em palavras e carregam-nas com sentidos, a propósito e a despropósito, que é outra forma de ter propósito e conseguir obter respostas. Estão cheios de dúvidas, porque os encheram do que não necessitam. Carregados de vida de adultos, feridos na sua intimidade de meninos e meninas a crescer, buscam em nós confirmações e descanso. Porque estão cansados do que sabem e não lhes faz falta. Por isso, intranquilizam-se vezes sem conta durante o dia, batem, pulam, demoram tempo a concentrar-se, não há calma para lidar com essa parte da vida, desvendada, sem cuidado. Não sabem o que fazer do que viram e ouviram. Estão suspensos de si, em modo de respiração alterada. Ás vezes para aguentar, riem-se nervosos, por tudo e por nada.

Continuam meninos e meninas, ainda que sonhem talvez um pouco menos, parece. Há pouco espaço para sonhar quando a cabeça está cheia de coisas difíceis. Tentamos não ceder a leituras breves e evitar zangas com o mundo que não cuida da infância. Já assim também viveram. Tentamos apoiar tudo o que há de positivo, responder ao que nos dizem, lutando para não ficar sem fala. Tentamos controlar falsos moralismos. Mas a vida é muito dura e estes meninos muito pequenos. São guerreiros do seu tempo e dos seus modos.

Podemos começar tudo de novo? vamos lá nascer e aprender a ser meninos e meninas em mundos mais suaves. E quentes. E feitos para a infância. Vá.