quinta-feira, 28 de junho de 2018

Mistério

Percorro algumas lembranças do teu nome e fico alerta com a força da memória. Inauguro o dia a declinar pecados, espantada com a rasteira do tempo, que sendo longo, se afigura curto. Parece que foi ontem que as vagas do mar se desfizeram em espuma e que as rochas, lisas e molhadas, pediam afagos de mãos. Confirmo, para não me desacreditar, que já passaram muitas luas e poentes e que o futuro habilmente projetado é hoje apenas este presente. Ainda assim debato-me contra a inevitabilidade e o destino, rompendo o círculo das rotinas consentidas.

Imagem relacionadaApareces de corpo inteiro e voz absoluta, lançando mão da tua alegria e sedução. Induzes pequenas graças e fios de seda, tecidos com a paciência dos sagazes. Estás em qualquer sítio, porque és para além de tudo, o fim e o principio. Dos poemas, dos dias de luz, da liberdade sem dono, do musgo e da eira, do verão e do inverno. Podemos ver-te em todas as estações, resgatando causas e afetos, com mãos de embalo e uma pequena voz trémula. Não é visível a olho nu, a tua força e a tua vantagem.  

Por isso, viver sem ti é viver pobre e combalido. É viver pela metade e por empréstimo, porque tu tens todas as formas de ser e ainda muitas outras.  Foges quando te chamam, permaneces de pedra e cal quando te expulsam, vives em morte, morres em vida. Queremos explicar o teu mistério e não há forma, nem palavras, nem circunstâncias, que o saúdem e justifiquem. Apenas que és e existes. Sem mais razões e premissas. 

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Monólogo noturno

Que noite longa. Uma aragem fresca, a luz doce da lua, folhas sopradas pelo vento, um pássaro assustado e uma estrela cadente. Uma noite longa.

Onde está o dia, louco de alegria? e o colo para nos segurar? onde está a doçura feita abraço, o aconchego do riso, as palavras quentes e soletradas? onde está a boneca de trapos, o campo de trigo e o cantar das cigarras, o calor húmido contra a pele? onde está a água fria da fonte, o musgo verde para o presépio, os poemas escritos em dor corrente, o portão aberto junto ao caminho?

Imagem relacionadaOnde estão os sonhos e os seus arautos, os anjos de fé e a romaria, os vestidos e laços de domingo, o arroz doce com canela, a mesa posta para quem chegar? onde estão as flores do jardim, os gatos pardos à janela, a casa da mestra dos meninos, o cheiro da terra molhada, ao fim do dia?

Onde está a nossa sede e a nossa dor, as pérolas do cansaço da luta dos dias, a raiva amena para se ser gente, as sombras esguias do nosso ser? onde está o futuro radioso de luz e os diários escritos com rebeldia, as montanhas a perder de vista, as escadas da casa para ver o dia? onde está a liberdade e a nostalgia, as ruas estreitas e a respiração contida, os segredos guardados no pó da gaveta, as fotos amarelas e o pano bordado?  

Onde estamos nós, afogados de tudo, ausentes de outros e de amor presente, cativos do mundo e das suas loucuras, perenes de fome e de certezas? Onde estamos aqui de frente, com terra à volta e ideias cansadas, sem vislumbrar o fim do caminho, enseada grande depois das giestas. 

Onde está a lonjura, os cheiros frescos e os lençóis lavados, a cama macia e a companhia?  Onde está quem somos e o que prometemos, quando incautos, aqui chegámos, limpos de desanimo e plenos de alegria. 

Onde está?