domingo, 27 de agosto de 2017

História de amor

O rapaz chegou, em passos de dança, ainda que tímidos e encostou-se ao poste da luz, mesmo em frente à janela da casa. A rapariga pressentiu-lhe a presença e apreciou, por entre a cortina, o corpo pequeno e aconchegante e o rosto com olhos mornos, talvez um pouco assustados, mas capazes de um amor maior. Admirou-se de tamanha ousadia e enterneceu-se com a leveza e a alegria das decisões claras. 

https://catracalivre.com.br/wp-content/uploads/2014/01/amor.jpgA mulher mais velha, que também vivia na casa, percebeu o rebuliço inquietante da liberdade, leu-lhe os sinais e o alcance e pestanejou de pasmo. Temeu o romper das tradições, ensaiando umas frases breves, zangadas, que se perderam nos recantos da casa, construída por renuncias permanentes.   

A rapariga saiu de casa, direita e recatada, contendo por instantes, o riso e a vontade de ser feliz. Olhou de frente para  o rapaz e sorriram de encantamento. Deram as mãos e andaram pela estrada de alcatrão, olhos em frente, corações ao alto, sonhos aos tropeções, mas não interrogados. Sabiam da sua inevitabilidade e urgência, naquela terra de brandos costumes.

Aqueles que os viram, perderam-lhes os passos e o riso, quando a noite veio e o sol se escondeu. Alguns garantem que deixaram um rasto de luz à sua passagem, e que andaram muitas léguas comprometidos com o amor, misturando cheiro de amoras e voos de gaivotas. Outros reclamam a brevidade dos seu gestos, denunciando ter sido sol de pouca dura. 
Uns e outros asseguram, no entanto, que foram muito felizes e para sempre. Confirmam que em alguns dias, o vento norte vem carregado de risos livres e promessas de rebeldia, ouvindo-se vozes frescas de verdes anos e juras de amor eterno. 

  

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Mulheres com poesia dentro

Há mulheres que têm poesia dentro delas. Vemo-las deslizar em finais de tarde, no meio das acácias, sem deixarem vestígios de si, denunciadas apenas por algumas gotas de perfume, que se confundem com o cheiro fresco do amanhecer. Repetem estas viagens vezes sem conta, indiferentes à rotina do caminho e do desejo, porque as persegue um gosto estranho por uma vida eterna. Procuram, com teimosia inquieta, o sentido preciso da sua existência. 

https://i.pinimg.com/236x/70/f6/4a/70f64a69d53b690cbeba56e1e27f92ab.jpgSão mulheres suaves, deixam ver a tremura dos lábios quando se emocionam, perfiladas que ficam frente à nostalgia. Refrescam-se com palavras novas, guardam-nas como relíquias puras e semeiam o seu brilho no calor da noite, junto ao portão dos sonhos, lugar onde pernoitam muitas vezes.
Esperam missivas de outros lugares, uma gruta embutida nas rochas, salpicos perdidos de uma cascata, o cantar de um rouxinol, o voo rasante de uma gaivota. Inquietam-se com o fulgor dos dias e das relações dos homens entre si, refugiando-se em pedaços de historias inventadas.

Criaram-se entre beijos e pedras do deserto e por isso sabem ler nas estrelas e nos corações aflitos. Traduzem, com elevada perícia, o sentido do amor e da rebeldia, em doses nem sempre consentidas.

São mulheres raras, nomeadas pela sua fragilidade, meia triste e no entanto, quase sempre inaugural. Reclamam, em dialetos sussurrados, outra ordem no mundo, o amor sem prazo de validade, a alegria como esteira no chão, a liberdade para tecer cravos à janela, em cidades justas. Recusam o medo e a prisão dos dias, servindo-se da poesia que as habita. Com isso se defendem e se escudam, aninhadas em palavras que são pão, vinho e abraços. Isso lhes chega para sustento. São mulheres raras, conheço algumas.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Reservas

Penso nas reservas que tenho dentro de mim e agradeço. Permitem-me, em muitos dias, descansar no mundo, aconchegada e atenta. Porque as reservas nos protegem do desconsolo e da estranheza da solidão. Com elas, somos quem somos e somos muito(s).

Tenho reservas de amor dentro de mim, quem as não tem? existem no fundo de nós, quase sempre prontas para momentos de aflição e nostalgia. Os dias virados do avesso, compridos e com tédio, ou rápidos que nem uma gazela, incapazes de reterem a preciosidade da vida. Os dias inúteis, com desperdícios a mais e essência a menos. 

https://naiveartgallery.files.wordpress.com/2012/01/nutra1.jpgTemos reservas dentro de nós. Pequenas coleções de alegrias, beijos doces, palavras mestras que nos norteiam, afagos leves e ainda assim, fundadores. Dias de chuva e de sol, cheiros de infância, risos e histórias, saudades e memórias, segredos e convicções. Tudo numa amálgama própria e certa. As reservas nunca se acabam e permitem retomar o fio da meada, quando as linhas se emaranham e sufocam os pontos principais da nossa geografia.

As reservas foram-nos dadas e depois construídas. Não há reservas sem um trabalho de nós, por nós. Cultivar o que foi luz e revelação, guardar abraços quentes, entender gestos delicados, percecionar a cultura de que fomos feitos. O pão, o vinho, o amor e as palavras com que nos banharam ao nascer  e ainda moram em nós. 

As reservas, para nos alimentarem, precisam de um trabalho miudinho...e paciente. Retirar, com minúcia, as ervas daninhas e eleger o que de melhor podemos ter nas reservas do que somos: um campo imenso de liberdade, um olhar de amor para o mundo, a crença na insustentável leveza do nosso ser. E também na sua determinação e inteireza. 

Temos reservas dentro de nós. Vamos cultivá-las?

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Acertar o passo

Passaram na praia, com passo acertado, seis pernas em cadência regular e certa. De um lado, a mãe, do outro, o pai, e no meio, o filho, a abraçar os dois. Reparei na cadência, na energia e na regularidade, apesar da diferença de tamanhos. E sorri, admirada por tanto acerto, com alegria, conversa(s) e afeto. Via-se a olho nu.
Dei por mim a discorrer sobre o assunto, porque passadas certas são aquilo que mais desejamos, quer tomemos a dianteira, quer sejam outros a tomá-la.

Pensei como é difícil imprimir uma cadência regular, em caminhos pouco firmes, pelos buracos, troncos velhos de árvores, bichos pequenos, mas inquietos, raízes, pedras e pântanos. Coisas pelas quais estamos de sobreaviso, mas nem por isso mais capazes, porque nos embrenhamos no percurso, distraídos e incautos. Encostamo-nos ao saber acumulado e descuidamos os obstáculos mais pequenos, que às vezes viram ondas gigantes, impedindo o acertar dos passos.

http://i01.i.aliimg.com/wsphoto/v0/1736963909/Akkadian-hildebrand-kaka-font-b-naive-b-font-font-b-art-b-font-handmade-color-block.jpgCoisas que desconhecemos e que irrompem, imprudentes, no caminho. Aquelas que nem nos medos mais secretos atrevemos a agendar na possibilidade dos dias. Coisas repentinas, inimagináveis, tiram o chão e o céu, abafam o futuro, cobrem-no de nevoeiro e curto prazo. Gelados e confusos, petrificamos de susto, deslaçamo-nos, sem conseguir amparar quem caminha ao nosso lado. Atordoados, não impedimos a queda no precipício ou a partida para a Antártida, terra que nunca imaginámos vir a desacertar os passos. 

Coisas que alimentamos e vigiamos como relíquias. Ideias, conceções, teses. As que comandam os nossos dias e irrompem imprudentes na relação com os outros, levantando muros e prisões abertas, que desacertam os passos e o amor. Convictos do que somos e pensamos, não abrandamos a força das diferenças, agitando a bandeira do que sentimos como a única possível a ser usada. Centrados nas razões que nos assistem, desvalorizamos as dos outros, aniquilando outras ideias e sonhos. Os passos em roda, sem pontos de intercessão, sem ritmo comum.

Foi isto que pensei esta manha, a propósito do acerto e desacerto de nós, com os outros. Pais, filhos, companheiros, amigos, família. Todos os que amamos e nos amam e com os quais necessitamos acertar o passo, tal como aqueles pais e filho que hoje andavam, com cadência bonita e acertada, à beira-mar. 

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Renovar votos, em tempo de férias

Imponho-me a tarefa primeira: cuidar das rosas, sem esquecer os espinhos. Apresento-me no ponto de partida, enunciando razões para este propósito. A estrada é longa e mais de metade do caminho já foi mapeado. Invisto na beleza das rosas, outrora pequenas e agora frondosas, espécie em desuso na ornamentação do mundo. Mas são elas que me inovam os trilhos.

Identifico a tarefa segunda: permanecer viva junto de pedras raras. Não ignorar a luminosidade dos mistérios, acolhê-los contra o pensamento lógico, dar-lhes espaço e lugar de sol, contrariando o principio da realidade e dos destinos traçados, antes de ser. 

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Equaciono a tarefa terceira: continuar no chão e almejar a lua, voltar a vida do avesso, remendando dores de parto, essas que nos beliscam e confirmam o (re)nascimento. Ter uma candeia acesa para anunciar a vida, em noites escuras de breu. Esperar pelo amanhecer, emocionada.

Inquieto-me com a quarta tarefa: impedir golpes drásticos de desilusão, afogamentos em mar alto, sem alcançar a linha da praia e as conchas brilhantes. Não ignorar os avisos sobre as tempestades, nem a função principal das rosa dos ventos e de cordas fortes para segurar choros.  

Concordo com a quinta tarefa: atentar nas coisas e no seu significado, rodear-me das mais belas e capazes, instruir-me no entendimento do mundo, recolher as suas ideias mais audazes, permanecer virgem do conformismo e da renúncia. Inaugurar a beleza das rosas em dias de sol e mar por perto.
 

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

De novo, o mar. Sempre o mar

Já falei tantas vezes do mar. E vou continuar a falar. E nunca me cansarei. Porque o mar me pacifica e liberta o que em mim é emoção, segredo e liberdade.

O mar da minha infância. As mulheres vestidas de escuro, a levantar as saias para molhar os pés, os risos pelas ondas ousadas, a merenda nos sacos, pão e queijo, ir de manha e voltar à noite, o peixe a saltar das redes, fresco e vivo. As crianças por perto, bibes com laços e olhos de ver o mundo.

O mar da minha juventude. Dunas com areia macia, alisada por ventos do norte em dias de nevoeiro, temperaturas frescas a impor abraços, palavras sussurradas para a eternidade, assim julgadas, por tanto se querer. Corridas de mãos dadas, com chuva miúda, o barulho das ondas a serenar o medo e a embalar o amor.

http://www.fondox.net/wallpapers/resoluciones/13/estrella-de-mar-y-conchas_1440x900_1190.jpgO mar da minha adultidade, os rapazes na água em gritos alegres, brinquedos e gomas ao cair da noite, passeios ao luar e areia nos lençóis, saídas à noite com primeiros amores. Banhos, conversas, almoços e jantares, com amigos e filhos por dentro.O mar para nós, a banhar os afetos de ser família e amizade.

E hoje, o mar. O mar do meu por do sol, dos sessenta anos, que às vezes não queremos, mas por aqui moram, expressos no corpo mas não no coração, que bate ainda desalmado, por cada voo de gaivota ao amanhecer. O mar dos sonhos inquietos, que serenam ao som manso da água nas pedras. O mar da secreta alegria, encantos escondidos e nunca revelados, por pudor e integridade. 

O mar. Cartão de visita da nossa vida, em lenta passagem para lugar incerto. O mar  a molhar o corpo e a libertar a alma para novas marés. 

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

(Sophia de Mello Breyner)