sábado, 17 de junho de 2017

Identidade(s)

O sol inunda esta paisagem clara, a água da ria espelha uma luz viva, os milhos cobrem de verde a cor da terra, há uma claridade forte junto ao azul do céu. Um espaço longo alonga-nos a alegria e convoca a memória, para celebrar o dia. Pequenas partículas de mim espalham-se por entre os muros e as flores, ando de bicicleta junto à ribeira, as silvas prometem as amoras que vão ficar vermelhas no verão, quando as cigarras cantarem ao entardecer.

Vejo a menina a brincar junto ao muro, faz comidas com ervas carnudas, carapaus e pão de broa, comida doce e simples de casa. A menina pondera todos os ingredientes e mistura-os em porções certas, conversa com outras meninas e mudam a ementa, brincam de faz de conta e tudo é possível. Sobretudo que a terra seja sal e a água seja vinho, de boa uva.

https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/736x/69/a4/35/69a4354e0c9d2b6a671fc2230f388a24.jpgVejo os homens em cima do carro dos bois, as mulheres nas bicicletas com as crianças, levam-nas para as terras e dão-lhes pão, que esfregam e mastigam devagar, enquanto se ajeitam debaixo da sombra da árvore. E adormecem depois num sono morno, a olhar para borboletas e formigas danadas.

Sinto o fresco das manhas, as alvoradas com o cantar dos galos, a festa no largo da igreja, os vestidos para estrear e os sapatos de verniz, pagos com o dinheiro das jornadas na eira. Ouço os risos das moças, esperam o par à saída da missa, entre olhares austeros de mães e avós vigilantes e contudo coniventes.

Pressinto-me em cada lugar, junto do lavadouro e da fonte, ora mais menina ora mulher, em noites de novenas e dias de trabalho, a costura na salinha, o ferro de brasas e as freguesas, remendar e fazer de novo, calças. blusas, corpetes e saiotes. Os estudos e os comboios, ir para a escola e regressar, o candeeiro antes da luz, Piaget e Bruner, o sonho de ser educadora tenazmente perseguido e alcançado. 

Olho para o braço da ria e a água espelha-me. Olho e vejo-me entre partículas de mim, bocados leves e pesados, fios de memória, em recantos de vida tida, amada e reconhecida. Assim sou neste lugar, cheio de identidades, espalhadas um pouco por todo o lado, ente a terra, o sol e o mar. 
Na casa, na eira, na rua, junto ao moliço da ria. Com cheiros de maresia e limbos de prender as pernas e o coração, esse que bate tão forte e atento, neste lugar. Porque é o meu, de verdade. E para sempre.