Dizia-se, quando era pequena, de mulheres que trabalhavam em casa de outros. Andar aos dias era fazer de tudo um pouco em casa alheia, numa condição de gente de fora. Desse tempo guardo a estranheza da expressão, a fragilidade dos vínculos e do contínuo vaivém. Quando mulher me tornei, resolvi essa estranheza dentro de mim. Compreendi que na vida andamos todos aos dias, ensaiando entradas e saídas, agarrando por dentro e por fora aquilo que podemos, sabemos e sonhamos.
domingo, 5 de dezembro de 2021
Convite de natal
sábado, 23 de outubro de 2021
Ponto de luz
Gostavas de praias desertas e de mergulhar no mar, deixando o sal e a areia colar-se ao corpo, compondo formas, como filigrana esculpida. Dizias sempre que não irias tomar banho, porque, eu gosto disto e gosto assim, levo o mar comigo não vês? E eu, que me queria logo enxuta e limpa, discordava e teimava... ora levares o mar contigo...mas levavas. Como sinal de liberdade e antídoto para os dias tristes do inverno.
Porque gostavas do sol, das ruas com gente, da esplanada e do café, dos livros e da companhia dos amigos. Porque esgrimias ideias como quem joga a última carta do baralho, porque a toda a hora era hora de perguntar, pensar, responder, discordar. Porque não obedecias por condição imposta, escolhendo a luta ao descanso morno do sofá.
Empenhaste-te até aos ossos em muitas causas, projetos e iniciativas, fazendo a tua parte, para se mudar de rumo. Social e politicamente. Sempre desafiadora da ordem e moral vigente. Lembras-te? muda de rumo, muda de rumo já lá vem outro carreiro...Já não te lembras, eu sei. Só não sei o que fazer com o que sinto, quando te vejo assim ausente e perdida. Tu que eras tão determinada e decidida. E autónoma e independente. E amiga. Profundamente amiga.
Porque perdias tempo, sem tirar dividendos, porque acolhias como ninguém, um bom almoço ou a maça e o copo com água na mesa de cabeceira, porque podem ter sede de noite, quando a tua casa foi porto de abrigo de outros. Ou quando cuidaste dos meus filhos e lhes fizeste o jantar, cá em casa, com a generosidade que sempre tiveste. Sem fazer alarido.
Agora, já não podes ler este meu texto e discutir comigo as ideias principais, como sempre fazíamos entre concordâncias e desacertos. Partiste para outro lugar e ainda que te veja, já não estás cá. Não sei como preencher esta ausência e sobretudo, não sei como zelar pela continuidade da tua inteireza como pessoa e da dignidade que a tua vida agora exige.
Não sei o que fazer e tenho saudades tuas. E medo do que virá depois. Não podes ficar só mais um bocadinho? E dar-nos um ponto de luz, para iluminar o caminho?
Se tanto me dói que as coisas passem
Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem
(Sophia Breyner)
segunda-feira, 26 de julho de 2021
Tréguas e propósitos
Iremos para o mar ou para o campo, levando uma mala cheia de perguntas e perplexidades. Convocaremos o tempo longo, livre, esse que nos falta desde o ano passado e tem interrompido abraços e risos fraternos, em presença. Pegaremos num livro, nos óculos de sol e na preguiça e partiremos. Queremos outro sol e outro lugar. Os que temos agora estão ainda submersos em aflições.
Ficaremos à beira-mar a ouvir o bater das ondas e as conversas das crianças, entre corridas e mergulhos. Apreciaremos a sua determinação e brincadeiras ruidosas. Isso nos dará uma tranquilidade imensa. Perto da infância, os dias cumprem-se, desafiantes e amenos. Assim parece, ainda que saibamos que há muitas infâncias, nem todas alinhadas em vidas felizes.
Conversaremos muito, matando saudades e ausências. Pegaremos nas palavras e comporemos ideias, partilhando histórias e propósitos. Isso será um ganho para continuar a pensar com os nossos botões e os dos outros.
Mas cuidaremos sobretudo do silêncio, ainda que acompanhado, para ouvir o que temos cá dentro, sem distrações enganosas. Convocaremos quem nos deixou, imortalizando memórias justas. E interrogaremos, sem pressa, o que perdemos e ganhámos, das condições que o mundo nos ofereceu.
Teremos feito o nosso melhor, sem sucumbir aos devaneios da ignorância, mesquinhez e indiferença? Teremos resistido o suficiente para contrariar o caminho das formigas no carreiro? Teremos mantido a lucidez e a vigilância? Teremos cumprido a nossa humanidade?
Em descanso, junto ao mar, tudo ficará mais claro. Assim o esperamos, para ajustar ideias e redefinir estratégias. Para poder continuar, sim. Mais convictos e refeitos.
sábado, 26 de junho de 2021
Teimosia
Queria sossegar o coração e dizer-lhe que está tudo bem. Uma conversa franca e clara, por exemplo, que há um sol luminoso que abraça o céu azul e que as árvores estão verdes e bonitas e que no jardim, as flores estão viçosas, a cumprirem a sua função. Que o dia já vai andando para o seu fim, mas que a noite vai chegar, serena e igual a si própria, vestida de silêncio e lençóis frescos a embalar o sono. Dizer-lhe que amanha é sábado, o dia a seguir à sexta-feira, podemos ler o jornal e tomar o café, deixando despontar a preguiça, com tempo.
Mas o meu coração não houve, não se aquieta, faz orelhas moucas, espanta-se com incoerências, pequenos nadas, nega evidências, sonda anacronismos e revezes. E de nada vale chamá-lo à razão, porque se aninha no seu poiso, afirmativo, independente e teimoso.
E não pára de me contrariar, incómodo e imprudente, a roubar-me o sossego e a serenidade. Cheio de si e das razões que lhe assiste, mede risos e olhares, atenta nas palavras, pesa-lhes o alcance e os incómodos, vigia gestos incautos. E regateia, numa dissimulada guerra fria. Não me dá descanso, o insensato, quer ter razão. Não lhe a dou, assim à primeira.
Quem manda aqui? ele ou eu? Vai ter que me ouvir e deixar-se das suas minudências.
(...)
Que estranha forma de vida
Tem este meu coração
Vive de vida perdida
Quem lhe daria o condão
Que estranha forma de vida
Coração independente
Coração que não comando
Vives perdido entre a gente
Teimosamente sangrando
Coração independente
sábado, 22 de maio de 2021
Trocar de lugar
Mãe
Hoje faço anos e sabes, já não vou para nova. Não estás cá para ver, mas já tenho rugas, o corpo a mudar, assim meio à socapa, umas dores que aparecem, às vezes, irritantes e tristes. Olho-me ao espelho e juro que te vejo. Recordo-te o rosto e o silêncio apaziguador. E gostava que cá estivesses, para conversarmos sobre a vida. Esta agora que tenho, passado doze anos da tua partida.
É que não sei muito bem a quem falar de tudo isto que me acontece, em alguns dias. Não, fica descansada, não é sempre, porque de resto, mãe, e isso é maravilhoso, ainda olho pela janela à procura do voo de um pássaro, ainda saboreio um bom livro com paixão, ainda faço projetos (vou escrever um livro, lembras-te?) ainda acalento sonhos e devaneios. Mas não há como negar, olho muitas vezes para trás, procuro a jovem e a menina que fui, tento compor sentidos e feitos. E espanto-me, juro que me espanto. Como é que cheguei aqui? Com todos estes anos?
Não, não me sinto velha, mas estou. E como é que podemos estar velhos, sem nos sentirmos, não é? Lembro-me de ti, eu nova e tu da idade que agora tenho, e eu, ocupada com a vida, sem atender às penas do teu coração. Porque eras juvenil, apesar da idade e das perdas, porque eras a mãe, porque sorrias e parecias uma menina, porque recusavas ter a condição que te davam. E lá comprávamos o creme e a blusa nova e tu a querer que tudo assentasse bem. E nós, e eu, a pensar, mas está tão bem, não é? Não devia estar, porque o que tu querias era que te assentasse outro tempo e outra idade. E nós, e eu, sem lucidez para ver a exata dimensão desse desejo.Agora já sei. Também procuro o creme e o perfume, o lenço no pescoço e o sorriso pela manhã e, devo dizer-te, que nem sempre assentam muito bem. E quando procuro anuência ou discordância, dizem-me, os rapazes cá de casa, deixa-te disso, então, está muito bem... e devolvem-me à minha condição, a que tenho e nem sempre sinto. Porque a empatia é um lugar estranho, moldado pela realidade do que somos no momento. Não é insensibilidade, é dificuldade de tomarmos o ponto de vista dos outros.
Acho que agora, se cá estivesses, podíamos conversar sobre este assunto, que é o de termos muitos anos e de ficarmos aflitos, com medo do tempo que escassa para o que (ainda) falta fazer. Creio que irias dizer que estou muito nova, mas abanarias a cabeça, e darias tempo para desfiarmos os nossos rosários. E juntarias a tua à minha voz.
E era isso que eu precisava, hoje. E mais o bolo de anos, o café quente, os parabéns, risos e flores. Por isso e na tua ausência, já fiz a jarra da sala. Está linda. Obrigada, mãe.
quarta-feira, 31 de março de 2021
Amizade e memória
E lá fomos ao médico, tudo organizado no saco, medicamentos e perguntas no papel que a memória, desde há um tempo, anda escassa e atrevida, a brincar ao toca e foge. Por via das dúvidas, tudo escrito e anotado, não vá o diabo tecê-las. No consultório, quis que entrasse, e ali fiquei, primeiro em silêncio, depois numa partilha amigável, sinalizando aspetos e relembrando outros. À pergunta "e como anda a memória?", rimo-nos, sabendo que é mais leve e fácil que seja assim, sem ignorar o facto e a circunstâncias
Depois viemos embora, sem antes verificarmos se nada ficara esquecido e compondo no saco todas as coisas, uma e outra vez. Num contínuo movimento, as mãos a compensarem o que a mente não retém.
Pela rua, muitas paragens, conversas soltas de amigas de sempre, por entre preocupações e perguntas recorrentes. Alguns risos e um café ao postigo, bebido no banco do jardim, que o ar se quer leve e amplo. E o espaço e o tempo, esse escultor da nossa vida, que agora se confunde e se perde, tonto e inquieto. Para o contrariar revertemos-lhe o sentido e convocamos feitos e histórias: férias em conjunto, o trabalho voluntário no bairro, episódios burlescos, discussões acesas, noitadas de amigos, cartas e postais trocados. E os dias e as noites de estudo em conjunto no sótão. E os miúdos a crescerem, por entre graus académicos e amigos solidários.
Depois de novo, os sacos, os escritos, as perguntas habituais, a vida toda como agora é. Esqueci-me de alguma coisa? não, está tudo.
E está. Tudo é a amizade que perdura e os laços que nos unem, sabendo que nos temos e que isso é uma arma para arredar o medo e a solidão. Um antídoto seguro e eficaz conta o esquecimento. Por agora. E para sempre, assim espero. Saibamos nós, cuidar e atualizar, com sensibilidade e afeto, este património comum. Rico, longo, construído e reconstruído pelos anos. É assim a amizade. E podia ser de outra forma? não, não podia.
terça-feira, 16 de fevereiro de 2021
Uma pausa
Uma pausa. Preciso de uma pausa, abrandar o correr dos dias, apreciar o sol ao fim da tarde, sentir os cheiros da primavera que tarda, demorar-me, com tempo, no desenho de uma criança. E alcançar um pouco de serenidade, esse estado que talvez nos falte, por agora.
Desenho da Maria Rita - 3 anos e meio |
Porque estamos pesados e sem rumo. E falamos sem pensar e pensamos sem falar. E inundamos as redes sociais com ideias e desabafos e senso comum. E discutimos e impomos e esgrimimos. E corremos à procura de mais, da última ideia certa para este tempo que não sabemos qualificar. Mas qualificamos, às vezes levianamente. Queremos entender e nessa ânsia desmedida, lançamo-nos a tudo e apontamos em todas as direções. Estamos cansados e sem filtros.
Preciso de uma pausa. Para esquecer a vida que nos cerca? não, para a olhar com mais rigor, humildade e pesquisa. Para esquecer os erros e disfarçar? Não, para compreender e atuar, com intencionalidade e cuidado ético. Para nos tornarmos mais úteis e mais competentes. Mais serenos, resilientes e guerreiros. Mas com as armas certas e pensamento robusto.
Preciso de uma pausa, para reorganizar, em silêncio, razão e emoção, combate e resistência, amor e rebeldia, liberdade e direitos. E esperança. E futuro.
Preciso de uma pausa para aprender a lidar melhor com o que sinto, ouço e vejo. Silêncio, por favor.
sábado, 23 de janeiro de 2021
Dias aflitos
Precisamos de palavras e de coragem. E um café quente, para sossegar, porque estamos suspensos da vida, com frio e medo. Precisamos de calor, para nós e para o mundo, que se move em rota livre, indiferente às nossas preces. Porque rezamos, mesmo que sem terço e ladainhas. À falta de melhor, trauteamos uma canção ou lemos poesia, para amenizar a aflição dos dias. Porque estamos aflitos, entre o caos e a redenção. Não há luz ao fundo do túnel nós que ansiamos pela definitiva claridade dos dias.
Precisamos de silêncio e paz, porque o tempo é de contenção e recato. Em movimentos e poupança de palavras, que às vezes ficam tolas e frívolas, desnecessárias. Porque a realidade é fria e cruel e não sabemos o que fazer com os números e a dor dos que ficam e dos que partem. Sentimo-nos à deriva e inundamos tudo com o nosso lado insensato e ruidoso.
Precisamos de ficar em casa, mas sabemos que amanhã é dia de sair e ir votar. Não queremos nem podemos juntar mais aflição aos nossos dias, aumentando a nossa perplexidade e inquietação. Precisamos de manter a nossa democracia e a defesa dos direitos humanos para todos os homens e mulheres da nossa terra. Portanto, munidos de proteção da cabeça aos pés, vençamos o medo e saiamos para exercer o nosso direito de escolher a liberdade, a decência, a hospitalidade, a proteção, o trabalho, a saúde. Para todos.
E depois continuemos em casa, menos aflitos e mais crentes na nossa capacidade para decidir e contribuir para um bom futuro e uma vida melhor. E apesar de não afastarmos dos dias o peso da aflição, participemos de corpo inteiro na alvorada de um novo dia. Isto nos compete e a isto temos direito.
Tudo o resto vai passar. Com danos e perdas, mas vai passar.