sábado, 30 de dezembro de 2017

As nossas pessoas

As nossas pessoas, são nossas, desde sempre. Moram perto e longe, como calha, mas têm lugar cativo no turbilhão dos dias que acontecem. Sempre à mão de semear, cultivam, em boas jornadas, bocados de terra onde germinam as utopias. Conhecem-nos e vigiam-nos, com olhares disfarçados e discretos, porque não são intrusivos nem esfuziantes. As nossas pessoas estão lá, onde precisamos e nem sempre se mostram, porque conhecem a liberdade como principio de relação. Mas respondem sempre à chamada e nunca mordem a corda do nosso fio de prumo.

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXWYCeUXZkJkib2ocCsq4TrfXdVewM-LEgXfGN2pt7EoI5rRB5E9podwC2G-7K_LrMpA8ms7uh1XanvS3rOkGfqequBXt3ZXI8GNTIpIV8ZuhgMkNOyLar-HKO_VJJ5cQywEC8etYwWz4/s1600/Curso+Pintura+naif.jpgAs nossas pessoas, são nossas, não porque as aprisionamos em nós, em jeito de troféu ou montra, mas porque fundam muito do que aprendemos a amar. Misturam coisas connosco e fazem parte de histórias a que damos vida, que de outra forma não teria sentido. As nossas pessoas conhecem as nossas palavras e propósitos e entendem-lhes o futuro.  Por isso velam por nós e às vezes chamamos-lhe anjos, amigos, pais, filhos ou irmãos. As nossas pessoas são do nosso sangue e do nosso coração, por sorte, escolha e condição.  

As nossas pessoas dão-nos alento, identidade e certezas. Às vezes, de braço dado com o destino, trocam-nos as voltas e deixam-nos sem pé, bebemos as lágrimas e escondemos a dor da sua partida. Teimosos, recompomos os dias e voltamos a convocá-las para a nossa casa e o nosso tempo. Em fotografias, poemas, saudades, memórias. Porque são as nossas pessoas e fazem absolutamente parte de nós. 


A casa

A casa tem a nossa vida
a casa está cheia de nós
de coisas arrumadas e desarrumadas
tapetes sapatos livros
retratos discos
quadros
as naturezas mortas estão todas vivas
alimentam-se de nós
e há móveis que foram de outras casas
e de pessoas que fomos nós antes de nós
a casa tem seus ritos e seus ritmos
canetas de tinta permanente
cadernos e papéis sobre a secretária
madeiras e paredes connosco dentro
a mesa com seus talheres e seus copos
e o nosso pão e o nosso vinho
camas por fazer e camas já vestidas
cadeiras onde nos sentamos
e mesmo sem nós ficam sentadas
a casa com seus passos e seu espaço
de silêncios
a casa com sua fala
a casa com sua alma.

Manuel Alegre "Nada está escrito", 2012


quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Assim me queria

Queria um oficio para trabalhar palavras como essência do mundo. Apresentar-me artesã das coisas principais e saber, na aflição dos dias, escolher as doses certas para o nosso viver. Conseguir, na imensidão do tempo, convocar o melhor de cada um, em doses justas e perfeitas. Caldear, na bruma do que somos, trevas e luz, alegria e choro, cansaço e rebeldia e obter a sua dimensão exata. 

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/9b/Mo%C3%A7a_no_Trigal_-_c.1916.jpgQueria apenas esculpir o trigo apropriado para as sementeiras da terra que nos circundam, misturar cozedura do pão e amor crescente, adubo seguro para os afetos. E apresentá-los como a coisa principal, no palco da nossa vida. Retirar, com minúcia atenta, os desperdícios que nos moem a alma, limpá-la de todas as impurezas, conseguir a obra mais clara de nós. Esculpir apenas e só o essencial.

Queria sacudir de mim os restos de tudo que nos consome, libertar o corpo e o pensamento de ideias inúteis, pequenos delírios das nossas certezas e vaidades, coisas breves e no entanto, tão empolgadas na hierarquia do que vivemos.

Queria esculpir as palavras certas e necessárias deste oficio que me persegue e de que não dou conta. Fazer um glossário novo, pequeno e essencial, acertar os seus sinónimos, perseguir os contrários, enunciar outros sentidos. 

Queria um oficio de trabalhar palavras como essência do mundo, mas sei que é tarefa de monta e coisa improvável. Não impede que me persiga, a cada dia e hoje também, nesta espera pelo ano novo.


domingo, 17 de dezembro de 2017

Natal. Outra vez.

Vai ser natal. Outra vez.

Nas escolas, a semana foi de festa, correrias e agitação. Esperemos que de bem com a pedagogia, porque o stress imposto e adultizado, não casa com o menino ao colo da sua mãe e o ar sossegado do burro na manjedoura. Nem com as prendas do pai natal, esse velhinho amigo, que dizemos lembrar-se de todos, mas sabemos não ser verdade, porque o mundo é infinito e infinitas são também as condições dos meninos e meninas, algumas escandalosamente injustas, que não há como fazer milagres lá do céu. A fazer, seria aqui da terra, com a exigência de uma vida certa e justa a que todos têm direito. Mas andamos tão ocupados e concentrados em nós, quase sempre distraídos e resignados, face à estranha ordem das coisas. E queremos? Sim, pois, queremos...então, temos que fazer acontecer, porque a única coisa que cai do céu é a chuva...

http://www.obrasdarte.com/wp-content/uploads/2015/01/Waldomiro_de_Deus_Casal_Feliz.jpgVai ser natal. Outra vez. E rendemo-nos de novo à ceia e ao amor dos nossos junto à mesa, a agradecer estarmos vivos, com saúde e em família. Que diminui e aumenta, porque a vida é um rio que não pára, misturam-se as partidas e as chegadas, provando que estamos todos no cais, a acolher e a largar quem nos fez e quem fizemos, neste lugar que é a terra. Do cuidado com que nos criaram, do cuidado que soubemos e pudemos dar a quem, do nosso coração e da nossa barriga, lançámos para o mundo.

Vai ser natal. Outra vez. E aceitamos os risos e as boas festas, lembramos os amigos e agradecemos a sua presença na nossa vida. Pelas rabanadas e pelas azevias, mas sobretudo pelo tempo que nos concedem, que roubam ao seu destino, para connosco construírem dias novos e ousados. Que são uma luz e um desafio para o nosso viver e a nossa procura de sermos pessoas.

Vai ser natal. Outra vez. E apesar de podermos estar mais sós e menos contentes, vamos acertar o dia e a noite com a nossa sorte, banindo o desconforto do que não pode ser. Da pobreza que existe, dos atropelos à dignidade, das vidas maltratadas, dos amores que já partiram, dos sonhos não cumpridos. E se rezarmos, saibamos que podemos e devemos, para além disso, renovar os nossos compromissos de cuidado ético e convictamente atento para com o mundo, na vida dos que nos cercam.

Porque vai ser natal. Outra vez.  

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Intenção natalícia

Da persistente chuva a cair no dia, retirou algumas gotas de água para alisar a manhã, afastando de si o desconsolo e a melancolia. Queria-se outra, mantendo-se inteira, neste dia cinzento de dezembro. As árvores em solidão, na rua, segredavam outras histórias, mas recusou sentar-se no colo de saudades antigas. 

http://www.tempoagora.com.br/wp-content/uploads/2017/01/Chuva-fraca_3.jpgInundou a sala de estrelas, postais de amigos e imagens do menino na manjedoura, algumas fitas e bolas cintilantes, compondo com a máxima serenidade, as cores e as palavras do natal. Impôs, a si mesma, destronar pequenas dores de outrora, convocando para casa todas as presenças, que em si, foram revelação, amor e amparo. E elas vieram e ficaram, ocupando os lugares de sempre.

E assim foi ficando cheia de natal, com laivos de esperança e remoção de tristezas. Depois, e porque faltavam as palavras, inebriou-se nelas, sentada junto às decisões do dia, em dezembro, num dia de chuva. 
 
NATAL

Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.

Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.

Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.

Manuel Alegre  
 

domingo, 26 de novembro de 2017

Recordar a Infância

Tinha-se esquecido de tudo, mas não das pedrinhas lisas que guardava no fundo da gruta. Nem do cheiro da brincadeira no fim do verão, a arrastar mil risos e demoras, em lugares cheios como os da rua, por entre carros de bois, bicicletas distraídas e portões fechados ao cair da noite. 
Tinha-se esquecido de tudo, mas não das festas breves em gatos pardos, picos de roseiras bravas em cômoros de amoras, salpicos do mar bravo aos domingos, o jeito da areia a arranhar a pele. E a pele morena de tanto sol. Vem para dentro, ficas trigueira! Ser menina e ser recatada, branca e pura, branca e leve, ter destino e desconhecer.

https://i.pinimg.com/736x/59/79/38/5979387a5be42cf93e3699a083956178.jpgTinha-se esquecido de tudo, mas não do quente do café à lareira da casa, da broa a fumegar em forno de lenha, da languidez das histórias contadas ao luar, por entre sustos bons e protegidos. Um arrepio na barriga e a alegria de escutar os uivos do lobo no cimo do monte. E fazem mal? fazem, pois, mas não vêm cá, descansa.

Tinha-se esquecido de tudo, mas não da casa da mestra, meninos para um lado, meninas para outros, então, que de pequenino é que se torce o pepino, e assim é que se quer e assim é que está bem. As canções de roda e o faz de conta, missas e batizados, água fresca do poço em pucarinhos de alumínio, o terço no final do dia, por entre segredos e distrações consentidas. 

Tinha-se esquecido de tudo, mas não das rodelas de batata com azeite sobre a barriga, nos dias mal- humorados da vida a acontecer. Nem das palavras doces para amparar desgostos e revelar mistérios, aquele das barrigas a crescerem, sem medo e aviso prévio, e com bebés lá dentro. Nem das idas à igreja, por entre silêncio e rezas, nem da feira, da venda e das conversas amigáveis dos crescidos.     

Tinha-se esquecido de tudo, agora que o tempo era mais curto e menos brincado. Mas mantinha dentro de si, as pedrinhas lisas, os gatos pardos, as gotas de mar, os uivos dos lobos, a casa da mestra, as canções de roda, o silêncio da igreja, a faina da venda, a elucidação da vida. E sobretudo a imensa presença do tempo longo em fins de tarde, a arrastar mil risos e demoras e muito brincar.
Talvez afinal se lembrasse de quase tudo... 

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Se cá estivesses...

Ontem fez dez anos que partiste. Lembro-me de levar os rapazes à escola e ao chegar à minha, ter tido essa noticia, de forma abrupta e violenta, incompreensível. Que outra forma existe para saber que ficámos sem chão e sem colo? 

http://2.citynews-leccotoday.stgy.ovh/~media/original-hi/50228517844170/varenna-mostra-naif-2.jpegSe cá estivesses, verias como as minhas rugas se multiplicaram, os cabelos estão cada vez mais brancos, e as mãos, as minhas mãos, parecem-se cada vez mais com as tuas. Notarias também que algumas das coisas que digo fazem rir os teus netos, entre o divertido e o (in)conformado, comentando então, isso nem parece teu! Mas é. Porque a vida passa e todos vamos para lá, como dizias a rematar a conversa, quando tentávamos que brigasses com os medos e silêncios do teu corpo cansado.  

Se cá estivesses, talvez discutíssemos as noticias do dia, no meio das perguntas que fazias para te inteirares do desenvolvimento do mundo e das pessoas, recusando as novelas e os programas de entretenimento. Se cá estivesses, fazíamos a sopa em conjunto, contigo a gabar os brócolos e os grelos e a querer batatas em vez de arroz. Se cá estivesses, hoje, verias os teus netos e juntas, teceríamos palavras a retocar o amor que sentimos por eles.  Se cá estivesses pegarias na tua bisneta ao colo e os teus olhos ficariam cheios de alegria à mistura com uma lágrima contente.

Se cá estivesses...mas não estás. E eu escrevo estas palavras para que a saudade saia de mim e tu continues viva e inteira junto de nós. É assim que te quero e te queremos, hoje e sempre, mãe.  

sábado, 11 de novembro de 2017

Venha o natal

Logo pela manha enredámo-nos na pedagogia, como coisa nossa e dos dias, educadores que somos em jornadas de muito amor e cansaço. A lei dos contrários, a confirmar que a vida não é um mar de rosas e que temos que permanecer lúcidos para retirar os espinhos das flores que acolhemos no regaço. Com muito cuidado e afinco, para não desistir deste cuidado permanente de que somos autoras. 

https://i.pinimg.com/236x/17/89/df/1789df32a69854cf8cdb94d2f90bb26c.jpgEnredámo-nos na pedagogia, primeiro em forma lenta, que a manha ainda estava com sono e o nosso corpo adormecido, depois de maneira ativa, barulhenta, partilhando, contrapondo, discutindo e apresentando as nossas razões das profissionais que somos e queremos ser. 
Continuamos ligadas ao sonho de que se a educação não pode tudo, alguma coisa a educação pode e nós podemos. Em grupos de aprendizagem e parceria, sem medo de falar dos erros, certas de que muitas cabeças pensam melhor que apenas uma, e que se eu ainda não sei, posso aprender. Com colegas, com as crianças, com as famílias. 
Com autores de referência e sobretudo com a reflexão sobre as práticas. Com sentido ético e vigilância critica, para questionar as nossas representações e as rasteirinhas do quotidiano, que nos fazem dar o dito pelo não dito e sermos menos gentis, sensíveis e disponíveis para os meninos e as meninas lá da escola.

Enredámo-nos na pedagogia e falámos de planeamento, ação, plano do dia, escuta da criança, participação, envolvimento, instrumentos, projetos, currículo emergente...tanta coisa, tanta coisa, tendo por mote quem somos, o que fazemos e o que queremos mudar para uma educação cuidadosa e promissora de um melhor presente e um futuro amigo.

Depois regressámos a casa, que temos gente à nossa espera e vida para além da escola, com ela sempre em redor. E fiquei a ver o cai da noite, a apreciar o frio que cheira a natal, a respirar silêncio, a dar descanso às palavras, emoções, significados...que nos tinham enredado pela manha.

E desejei que fosse quase natal, que o menino estivesse pronto para ir para o presépio, que a lareira queimasse a lenha e que a mesa, linda e vermelha, nos reunisse a todos à sua volta, com beijos, arroz doce e rabanadas.  Porque a pedagogia assim pensada, vasculhada e refletida, desgasta e consome energia, perdurando em nós, como o eco num vale. A manha foi de luz, diálogos a muitas vozes e interação permanente, agora quero e procuro o silêncio e o natal. 

domingo, 29 de outubro de 2017

Para o Miguel

Nasceste há 26 anos e és o mais novo cá de casa. Já não moras connosco, porque quiseste um dia viver sozinho e hoje partilhas o teu tempo com a tua namorada, construindo todos os dias uma vida a dois, misturada com outras vidas e muitos sonhos. 

Quando nasceste, numa terça-feira, disse-te palavras doces de acolhimento e tu poisaste no meu peito, quente e a chorar fora de mim e no entanto, tão colado ao meu coração. Assim ficámos até hoje, mesmo nos dias em que ser mãe e filho nem sempre foi uma condição suave. Mas porque teria que ser? sabemos que crescer e tomar nas mãos o mundo é sempre uma tarefa de atar e desatar nós e isso envolve perícias várias, desde logo tomar o lugar do outro, com sensibilidade para respeitar, abdicar e compreender. Só com o tempo aprendemos a ser melhores mães e melhores filhos. 

https://c2.staticflickr.com/6/5267/5678121041_be602aaefe_z.jpgGuardo da tua infância, as tuas gargalhadas destemidas que ainda hoje soltas, numa espécie de desafio explicito, a confirmar que não pedes licença para seres quem és. Dou conta que sempre foste assim, aberto à vida e à sua mutação, recusando o mofo dos preconceitos e do instituído. Procuras desde menino, o teu lugar ao sol, sem medo, mas também sem atropelar quem contigo se cruza nos caminhos que percorres. Tranquilizo-me, por teres aprendido, na nossa casa, esse principio de vida. 

Guardo da tua infância o olhar do mano sobre ti, a sua proteção e admiração. Guardo o olhar de amor da avó, a sua alegria e a sua tranquilidade por te saber sangue do nosso sangue. Guardo o movimento da bengala do avô, tentando apanhar-te e tu a fugires, com risos malandros. Guardo o tempo do pai a contar-te a história do peixinho, em noites de sono que não vinha. Guardo dias de escola, danças na sala, jogos de andebol, textos em cadernos, conversas a dois, abraços e beijos. Guardo o teu cheiro e o calor da tua pele dentro de mim, para sempre.

E hoje, quando chegares para cantarmos os parabéns, vou de novo admirar-me pela rapidez do tempo que já passou e por estares assim, já tão grande e fora de mim. E vou de novo sentir que ter um filho e ajudá-lo a crescer é um desafio, um mistério e uma sorte. 
Amo-te. Parabéns.

domingo, 22 de outubro de 2017

Neste outono

Ainda não escrevi sobre o outono e a sua doce magia. Ainda não me entrou na alma e no entanto é outubro, os dias já são mais curtos e o sol, ainda que continue forte, já estremece com o ar fresco da manha. Sente-lhe a presença e inibe-se na sua luz cintilante. Assim seja, porque nos é devido a paz dos dias tranquilos e a promessa da quietude das chamas altas, para acabar de vez com os campos queimados e o negro do coração de quem tudo perdeu.

Convoquemos o outono para que nos traga o reflexo do sol deitado em cima das terras e das árvores altas. Para que a vida se renove em lentidão, sem surpresas aflitas de um tempo às avessas. Porque às avessas só queremos a má sorte, a virar em sorte boa e para sempre. Nos lugares que temos e no corpo que habitamos.

http://www.fubiz.net/wp-content/uploads/2016/03/Autumnal-and-Colorful-Oil-Paintings15.jpgConvoquemos o outono e os dias justos. Convoquemos o que somos, gostamos, temos e desejamos. Neste outono que tarda, a mim fazem-me falta os cestos de fruta madura, as descobertas alegres na escola, as pinturas da árvore da vida de Klimt, a salada de fruta e as bocas lambuzadas, os risos e as birras, os abraços e as perguntas quantos somos cá na sala? queres brincar ao lobo mau, no recreio? que dia é hoje? vamos fazer doce de abóbora?

Vamos, pois, fazer doce de abóbora e pintar o céu de azul claro, desenhar árvores verdes e castanhas, morder os bagos das romãs, brincar com paus e pedrinhas do chão, compor, misturar, separar e projetar. Em tons de laranja, castanho, verde e lilás. Com esperança e rebeldia, traços fortes ou tímidos, mas sempre autónomos e livres, porque capazes e competentes.

Assim eu queria este outono. Em tempo ameno e dias doces, com bocados de frio, vento e cheiro de castanhas assadas e frascos de marmelada para barrar o pão.
Nas escolas e nas casas, em todos os lugares, neste outono. Com paisagens bonitas, sem desastres tristes de fogos por apagar, que pintam a terra de escuro e sugam a fé no futuro.

domingo, 15 de outubro de 2017

A menina

Fez seis meses, na semana passada, a menina. Os pais, que a celebram todos os dias num amor apaixonado, marcaram um encontro ao final do dia, num espaço verde, com bolos, champanhe e colos por perto. Na tarde quente de outono, com mantas no chão e um céu azul, muitos responderam à chamada, contentes de poder ver e abraçar a menina. 

E a menina estava linda, de macacão azul e olhos grandes, atenta aos risos e às conversas, que circulavam lentas, tranquilas e cheias de amor. Os pais faziam as honras do dia, entre copos de sumo e bolos caseiros, discretos, mas atentos a cada um dos que vieram e plenos da sua condição de jovens pais. Roupas informais e rostos bonitos, rodeavam a sua gente e os seus afetos, oferecendo à sua menina, os colos que os fizerem crescer como pessoas. Uma dádiva imensa, uma identidade que transportam e sabem ser o chão mais certo para os passos e os sonhos da menina. Porque é assim que a querem, num quotidiano de cuidado, cheia de futuros longos e promissores, aninhada em passados quentes, balizados pelos laços familiares, que tecem a segurança, a autoestima, o conforto e a alegria.

E como jovens pais, estão apaixonados pela sua filha e isso é uma sorte para a menina. Rodeiam-na de palavras doces e desafiadoras, enternecem-se com o seu riso, espantam-se com a sua competência e interação, com as suas graças e feitos.

http://www.artnaiffestiwal.pl/uploads/4281f6a5c96f82459cf2e76aad32afb2dd7e0054.jpgE acordam de noite com o choro, aconchegam-lhe o corpo e o leite, mudam fraldas e oferecem mimos, protegem, amparam, desafiam. Preocupam-se e distendem-se e confirmam o seu projeto maior, porque a menina cresce todos os dias e todos os dias prova que aprender a ser pessoa é uma procura constante entre conhecimento, descoberta, aceitação, conquista. E resiliência e persistência. E resistência à frustração.

Tanta coisa? sim, muita coisa, e os pais, que sabem disso, convocam para esta aventura, as suas melhores competências e os seus melhores e maiores amparos. E os avós aí estão, em jeito de segunda viagem, a distribuir os bolos, a adoçar a boca, a pegar ao colo, a mimar e a dar descanso, num misto de saudade, reconhecimento e apoio.

E eu, que estive presente na festa da menina, olho tudo e enterneço-me. Com a menina e a sua meiguice, com os pais, com este começo e esta lonjura. Enterneço-me com os seus olhos, o seu rosto, as suas fitas e laços, com o cheiro de bebé pequena e meiga. Enterneço-me com o zelo com que a cuidam, a convicção com que a permeiam numa família alargada e amorosa. E penso para com os meus botões, que sorte tem esta menina! Por nascer em berço de amor, por ser embalada e deitada em lençóis quentes, por ter uma casa, uns pais e avós presentes, por ter quem cuide dos dias, das noites, dos sonhos e do futuro. 

Que assim seja hoje e todos os dias. E que nos mantenhamos por perto a comemorar muitos anos e a soprar muitas velas, em espaços verdes, com a menina a correr, linda e feliz. Para sempre.

sábado, 23 de setembro de 2017

Outono, ainda assim.

Desengonçada e sem prumo, assim se sentia nesse amanhecer, cheio de silêncio e sons, com vogais e consoantes inaudíveis. Dispersa, transparente, gota de água trémula e frágil, no meio de um monte de folhas secas. Desengonçada, sem unidade para sorrir, inteira e plena.  

Uma parte ausente. Talvez a mais relevante, fora de si e da terra cultivada dos sonhos. Uma dor melancólica, um frio ligeiro, persistente, com ecos de saudade, compostos pela atenção vigilante dos sentidos. Um foco de luz sobre imagens debotadas.  

gercken AUTUMN OIL PAINTING commissioned fall by GerckenGallery, $158.00Uma parte ausente e outra presente, sem tréguas à vista. O correr dos dias, a força do real, as redes quebradas para apanhar boas novas, com gosto a maresia. O tempo, o duro peso do relógio, caminhos estreitos para andar, rotas inevitáveis e constantes. O tem que ser. E se não for?

Desengonçada, entre  reter e largar. Abandonar-se aos sons infindáveis da alegria, do recomeço com história, da afirmação possível do amor. Redefini-lo  no chão largo do outono, misturar folhas e restos de sol, conhecer os mistérios do tempo, permitir a captação da luz, na infindável renovação da natureza. Acompanhar as suas transformações. Ano após ano e agora também. Sentir que de novo será e por isso, atentar, contra a repetição dos dias.

Desengonçada, num equilíbrio instável e à mercê. Sacudir esta predestinação, equacionar outros fins e meios. Não desistir de ser, reunir com afinco bocados belos de folhas quentes, pedaços de cores mescladas de castanho e dourado. Apreciar o poente, reunir de novo a poesia, adormecer com as palavras ao colo. Aproveitar o tempero do outono para acolher memórias e procurar futuros. Amenamente, mas com fio de prumo.


Quando, Lídia, vier o nosso outono 
com o inverno que há nele, reservemos
um pensamento, não para a futura 
primavera, que é de outrem,
nem para o estio de quem somos mortos,
senão para o que fica do que passa 
o amarelo atual que as folhas vivem
e que as torna diferentes

Fernando Pessoa/Ricardo Reis "Odes"

domingo, 10 de setembro de 2017

Largar as férias e recomeçar...

Domingo. Setembro.
Gosto deste mês, meio nostálgico e sempre desafiador. Arrumamos a trouxa das férias, sacudimos os últimos grãos de areia, despimos a preguiça e preparamos a mala para a escola. Agenda, relógio, caderno, livros, tudo bem arrumadinho. Estamos prontos para abrir o coração e renovar a pedagogia com os meninos e as meninas que vão chegar, com mil risos e mil lágrimas e mil desejos. Cheios de vida e de emoções, iguais e diferentes, a exigirem o melhor de nós. E nós, que disso sabemos, com borboletas na barriga, a fazer figas para que tudo dê certo, entre a confiança e a inquietação. Porque sabemos da enorme responsabilidade de ser modelo e figura de referência para quem, sendo pequeno, se encontra diariamente a construir um projeto de ser pessoa.
Com a mala pronta, aprontamos também as nossas convicções e crenças, o chão e o céu que vai ditar o que vamos ser e fazer com as crianças. Revemos as nossas ideias e preocupações para educar, atualizando, entre leituras e conversas de equipa, o que queremos e almejamos para este ano letivo.

http://www.emcantosfotograficos.com.br/wp-content/uploads/2015/12/O-que-levar-na-mala-de-viagem-100.jpg?3d8e67Revisitamos conceitos e práticas e detemo-nos no cuidar, esse verbo humano, que condensa e integra a nossa preocupação com os outros e que está presente em todos os dias da nossa vida, no domínio publico e privado. Na escola, principalmente, como expressão de afeto, atenção, sensibilidade, disponibilidade e apoio incondicional a quem cresce connosco, meninos, meninas, equipas e famílias. Para que eles possam ser desafiados e a cuidar de si e dos outros, numa cultura democrática, que envolva todos, sem deixar ninguém para trás, na construção de um currículo cuidadoso, diverso, inclusivo, capaz de lutar contra todas as formas de exclusão. A pedagogia e a escola não podem esquecer o seu compromisso com a igualdade e o reconhecimento da diversidade, como premissas para a mudança e a construção de um outro mundo.

Assim seguros e com a revisão da matéria dada, mobilizamos depois instrumentos, materiais e equipamentos que possam alimentar projetos de envolvimento dos meninos e meninas, para uma aprendizagem sustentada em significados culturais e sociais autênticos. Aprender com a vida e na vida, aprender de corpo inteiro, aprender com prazer e dedicação, aprender com inteligência, com liberdade, com sentido dos outros e do mundo que nos rodeia. Aprender em comunidade, escutando, propondo, realizando, avaliando. Aprender em projeto, de forma lúdica e interativa.

E assim estamos neste setembro, depois das férias. Com a mala pronta, matéria revista, prontos para recomeçar a paixão de (re)fazer os dias e as horas do nosso viver em comum. Invade-nos uma secreta alegria e alguns sobressaltos do coração, que atento, prevê, que nem tudo será um mar de rosas. Também disso já sabemos e estamos avisadas. Por isso, no fundo da mala arrumámos, em caixas de abertura fácil, o carinho, a persistência, a atenção, a escuta, a delicadeza, o apoio, a convicção e a não desistência. Guardámos também, um pouco da nossa infância, (risos soltos, desenhos no chão, tardes longas, manhas frescas e tempo para brincar...) que partilhamos com as crianças, contrariando o formato académico do currículo.

E assim estamos, neste domingo, em setembro. Gosto deste mês. As férias já lá vão, mas aguarda-nos um tempo caloroso, de descobertas e aprendizagens, com colos, conversas longas e cuidados atentos a todos. Temos a certeza que para além dos dias chuvosos, muito sol e muita luz vão encher as nossas salas.
Preparados?

domingo, 27 de agosto de 2017

História de amor

O rapaz chegou, em passos de dança, ainda que tímidos e encostou-se ao poste da luz, mesmo em frente à janela da casa. A rapariga pressentiu-lhe a presença e apreciou, por entre a cortina, o corpo pequeno e aconchegante e o rosto com olhos mornos, talvez um pouco assustados, mas capazes de um amor maior. Admirou-se de tamanha ousadia e enterneceu-se com a leveza e a alegria das decisões claras. 

https://catracalivre.com.br/wp-content/uploads/2014/01/amor.jpgA mulher mais velha, que também vivia na casa, percebeu o rebuliço inquietante da liberdade, leu-lhe os sinais e o alcance e pestanejou de pasmo. Temeu o romper das tradições, ensaiando umas frases breves, zangadas, que se perderam nos recantos da casa, construída por renuncias permanentes.   

A rapariga saiu de casa, direita e recatada, contendo por instantes, o riso e a vontade de ser feliz. Olhou de frente para  o rapaz e sorriram de encantamento. Deram as mãos e andaram pela estrada de alcatrão, olhos em frente, corações ao alto, sonhos aos tropeções, mas não interrogados. Sabiam da sua inevitabilidade e urgência, naquela terra de brandos costumes.

Aqueles que os viram, perderam-lhes os passos e o riso, quando a noite veio e o sol se escondeu. Alguns garantem que deixaram um rasto de luz à sua passagem, e que andaram muitas léguas comprometidos com o amor, misturando cheiro de amoras e voos de gaivotas. Outros reclamam a brevidade dos seu gestos, denunciando ter sido sol de pouca dura. 
Uns e outros asseguram, no entanto, que foram muito felizes e para sempre. Confirmam que em alguns dias, o vento norte vem carregado de risos livres e promessas de rebeldia, ouvindo-se vozes frescas de verdes anos e juras de amor eterno. 

  

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Mulheres com poesia dentro

Há mulheres que têm poesia dentro delas. Vemo-las deslizar em finais de tarde, no meio das acácias, sem deixarem vestígios de si, denunciadas apenas por algumas gotas de perfume, que se confundem com o cheiro fresco do amanhecer. Repetem estas viagens vezes sem conta, indiferentes à rotina do caminho e do desejo, porque as persegue um gosto estranho por uma vida eterna. Procuram, com teimosia inquieta, o sentido preciso da sua existência. 

https://i.pinimg.com/236x/70/f6/4a/70f64a69d53b690cbeba56e1e27f92ab.jpgSão mulheres suaves, deixam ver a tremura dos lábios quando se emocionam, perfiladas que ficam frente à nostalgia. Refrescam-se com palavras novas, guardam-nas como relíquias puras e semeiam o seu brilho no calor da noite, junto ao portão dos sonhos, lugar onde pernoitam muitas vezes.
Esperam missivas de outros lugares, uma gruta embutida nas rochas, salpicos perdidos de uma cascata, o cantar de um rouxinol, o voo rasante de uma gaivota. Inquietam-se com o fulgor dos dias e das relações dos homens entre si, refugiando-se em pedaços de historias inventadas.

Criaram-se entre beijos e pedras do deserto e por isso sabem ler nas estrelas e nos corações aflitos. Traduzem, com elevada perícia, o sentido do amor e da rebeldia, em doses nem sempre consentidas.

São mulheres raras, nomeadas pela sua fragilidade, meia triste e no entanto, quase sempre inaugural. Reclamam, em dialetos sussurrados, outra ordem no mundo, o amor sem prazo de validade, a alegria como esteira no chão, a liberdade para tecer cravos à janela, em cidades justas. Recusam o medo e a prisão dos dias, servindo-se da poesia que as habita. Com isso se defendem e se escudam, aninhadas em palavras que são pão, vinho e abraços. Isso lhes chega para sustento. São mulheres raras, conheço algumas.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Reservas

Penso nas reservas que tenho dentro de mim e agradeço. Permitem-me, em muitos dias, descansar no mundo, aconchegada e atenta. Porque as reservas nos protegem do desconsolo e da estranheza da solidão. Com elas, somos quem somos e somos muito(s).

Tenho reservas de amor dentro de mim, quem as não tem? existem no fundo de nós, quase sempre prontas para momentos de aflição e nostalgia. Os dias virados do avesso, compridos e com tédio, ou rápidos que nem uma gazela, incapazes de reterem a preciosidade da vida. Os dias inúteis, com desperdícios a mais e essência a menos. 

https://naiveartgallery.files.wordpress.com/2012/01/nutra1.jpgTemos reservas dentro de nós. Pequenas coleções de alegrias, beijos doces, palavras mestras que nos norteiam, afagos leves e ainda assim, fundadores. Dias de chuva e de sol, cheiros de infância, risos e histórias, saudades e memórias, segredos e convicções. Tudo numa amálgama própria e certa. As reservas nunca se acabam e permitem retomar o fio da meada, quando as linhas se emaranham e sufocam os pontos principais da nossa geografia.

As reservas foram-nos dadas e depois construídas. Não há reservas sem um trabalho de nós, por nós. Cultivar o que foi luz e revelação, guardar abraços quentes, entender gestos delicados, percecionar a cultura de que fomos feitos. O pão, o vinho, o amor e as palavras com que nos banharam ao nascer  e ainda moram em nós. 

As reservas, para nos alimentarem, precisam de um trabalho miudinho...e paciente. Retirar, com minúcia, as ervas daninhas e eleger o que de melhor podemos ter nas reservas do que somos: um campo imenso de liberdade, um olhar de amor para o mundo, a crença na insustentável leveza do nosso ser. E também na sua determinação e inteireza. 

Temos reservas dentro de nós. Vamos cultivá-las?

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Acertar o passo

Passaram na praia, com passo acertado, seis pernas em cadência regular e certa. De um lado, a mãe, do outro, o pai, e no meio, o filho, a abraçar os dois. Reparei na cadência, na energia e na regularidade, apesar da diferença de tamanhos. E sorri, admirada por tanto acerto, com alegria, conversa(s) e afeto. Via-se a olho nu.
Dei por mim a discorrer sobre o assunto, porque passadas certas são aquilo que mais desejamos, quer tomemos a dianteira, quer sejam outros a tomá-la.

Pensei como é difícil imprimir uma cadência regular, em caminhos pouco firmes, pelos buracos, troncos velhos de árvores, bichos pequenos, mas inquietos, raízes, pedras e pântanos. Coisas pelas quais estamos de sobreaviso, mas nem por isso mais capazes, porque nos embrenhamos no percurso, distraídos e incautos. Encostamo-nos ao saber acumulado e descuidamos os obstáculos mais pequenos, que às vezes viram ondas gigantes, impedindo o acertar dos passos.

http://i01.i.aliimg.com/wsphoto/v0/1736963909/Akkadian-hildebrand-kaka-font-b-naive-b-font-font-b-art-b-font-handmade-color-block.jpgCoisas que desconhecemos e que irrompem, imprudentes, no caminho. Aquelas que nem nos medos mais secretos atrevemos a agendar na possibilidade dos dias. Coisas repentinas, inimagináveis, tiram o chão e o céu, abafam o futuro, cobrem-no de nevoeiro e curto prazo. Gelados e confusos, petrificamos de susto, deslaçamo-nos, sem conseguir amparar quem caminha ao nosso lado. Atordoados, não impedimos a queda no precipício ou a partida para a Antártida, terra que nunca imaginámos vir a desacertar os passos. 

Coisas que alimentamos e vigiamos como relíquias. Ideias, conceções, teses. As que comandam os nossos dias e irrompem imprudentes na relação com os outros, levantando muros e prisões abertas, que desacertam os passos e o amor. Convictos do que somos e pensamos, não abrandamos a força das diferenças, agitando a bandeira do que sentimos como a única possível a ser usada. Centrados nas razões que nos assistem, desvalorizamos as dos outros, aniquilando outras ideias e sonhos. Os passos em roda, sem pontos de intercessão, sem ritmo comum.

Foi isto que pensei esta manha, a propósito do acerto e desacerto de nós, com os outros. Pais, filhos, companheiros, amigos, família. Todos os que amamos e nos amam e com os quais necessitamos acertar o passo, tal como aqueles pais e filho que hoje andavam, com cadência bonita e acertada, à beira-mar. 

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Renovar votos, em tempo de férias

Imponho-me a tarefa primeira: cuidar das rosas, sem esquecer os espinhos. Apresento-me no ponto de partida, enunciando razões para este propósito. A estrada é longa e mais de metade do caminho já foi mapeado. Invisto na beleza das rosas, outrora pequenas e agora frondosas, espécie em desuso na ornamentação do mundo. Mas são elas que me inovam os trilhos.

Identifico a tarefa segunda: permanecer viva junto de pedras raras. Não ignorar a luminosidade dos mistérios, acolhê-los contra o pensamento lógico, dar-lhes espaço e lugar de sol, contrariando o principio da realidade e dos destinos traçados, antes de ser. 

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Equaciono a tarefa terceira: continuar no chão e almejar a lua, voltar a vida do avesso, remendando dores de parto, essas que nos beliscam e confirmam o (re)nascimento. Ter uma candeia acesa para anunciar a vida, em noites escuras de breu. Esperar pelo amanhecer, emocionada.

Inquieto-me com a quarta tarefa: impedir golpes drásticos de desilusão, afogamentos em mar alto, sem alcançar a linha da praia e as conchas brilhantes. Não ignorar os avisos sobre as tempestades, nem a função principal das rosa dos ventos e de cordas fortes para segurar choros.  

Concordo com a quinta tarefa: atentar nas coisas e no seu significado, rodear-me das mais belas e capazes, instruir-me no entendimento do mundo, recolher as suas ideias mais audazes, permanecer virgem do conformismo e da renúncia. Inaugurar a beleza das rosas em dias de sol e mar por perto.
 

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

De novo, o mar. Sempre o mar

Já falei tantas vezes do mar. E vou continuar a falar. E nunca me cansarei. Porque o mar me pacifica e liberta o que em mim é emoção, segredo e liberdade.

O mar da minha infância. As mulheres vestidas de escuro, a levantar as saias para molhar os pés, os risos pelas ondas ousadas, a merenda nos sacos, pão e queijo, ir de manha e voltar à noite, o peixe a saltar das redes, fresco e vivo. As crianças por perto, bibes com laços e olhos de ver o mundo.

O mar da minha juventude. Dunas com areia macia, alisada por ventos do norte em dias de nevoeiro, temperaturas frescas a impor abraços, palavras sussurradas para a eternidade, assim julgadas, por tanto se querer. Corridas de mãos dadas, com chuva miúda, o barulho das ondas a serenar o medo e a embalar o amor.

http://www.fondox.net/wallpapers/resoluciones/13/estrella-de-mar-y-conchas_1440x900_1190.jpgO mar da minha adultidade, os rapazes na água em gritos alegres, brinquedos e gomas ao cair da noite, passeios ao luar e areia nos lençóis, saídas à noite com primeiros amores. Banhos, conversas, almoços e jantares, com amigos e filhos por dentro.O mar para nós, a banhar os afetos de ser família e amizade.

E hoje, o mar. O mar do meu por do sol, dos sessenta anos, que às vezes não queremos, mas por aqui moram, expressos no corpo mas não no coração, que bate ainda desalmado, por cada voo de gaivota ao amanhecer. O mar dos sonhos inquietos, que serenam ao som manso da água nas pedras. O mar da secreta alegria, encantos escondidos e nunca revelados, por pudor e integridade. 

O mar. Cartão de visita da nossa vida, em lenta passagem para lugar incerto. O mar  a molhar o corpo e a libertar a alma para novas marés. 

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

(Sophia de Mello Breyner)

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Coisas belas

Quase em férias. Restam ainda uns dias de trabalho, que parecem muitos e cansam ainda mais. Quase a chegar ao tempo de sentir o tempo a deslizar, sem pressa. Tempo para olhar para as coisas e sentir a sua beleza. A sua originalidade, o seu oficio no mundo.

Quase a chegar às férias, como se fosse um lugar, uma imensa casa soalheira, com alpendre e cestos com fruta. Como se fosse um rio, por entre montes, com o verde a perder de vista. Como se fosse uma rede para descansar, com um livro caído no chão e um sumo fresco. Como se fosse um jantar no meio do jardim, com risos de amigos e conversas mansas.

Quase a chegar às férias, para abandonar o corpo, deixá-lo entregue aos devaneios da preguiça, libertá-lo de amarras e muros, soltá-lo em liberdade, junto ao mar. Andar e saltar por entre as pedras molhadas e lisas, com a areia quente, a cintilar, em marés cheias.

http://guia-viagens.aeiou.pt/wp-content/uploads/2012/03/miami_areia_mar.jpgQuase a chegar às férias, para sossegar a alma, ouvir os sons leves da alegria, procurar imagens de luz, renovar o prazer da escrita e da ousadia.
Procurar lugares e cores, vozes e abraços, flores e luz, tudo coisas belas. E leves, e cheias de ternura e salmos. Uma espécie de hino longo e largo, a expandir o mundo que trazemos misturado na pele e na emoção.
Quase a chegar às férias para aquecer o olhar e renovar o amor e a beleza. Porque (quase) tudo está em nós.

Como nos diz o poeta


As coisas belas,
as que deixam cicatrizes na memória dos homens,
por que motivos serão belas?
E belas, para quê?

Põe-se o Sol porque o seu movimento é relativo.
Derrama cores porque os meus olhos vêem.
Mas por que será belo o pôr do sol?
E belo, para quê?

Se acaso as coisas não são coisas em si mesmas,
mas só são coisas quando percebidas,
por que direi das coisas que são belas?
E belas, para quê?

Se acaso as coisas forem coisas em si mesmas
sem precisarem de ser coisas percebidas,
para quem serão belas essas coisas?
E belas, para quê?

in Poesia Completa Antoónio Gedeão, Edições João Sá da Costa, Lisboa

domingo, 16 de julho de 2017

O coração limpo de mágoas

E então ela escreveu tenho que saber ficar com o coração limpo de mágoas e eu fiquei com a frase a dançar-me nos olhos, perplexa pela sua clareza e sentido. Andei com ela toda a tarde, embrulhada em perguntas, seguida de algumas respostas e muitos silêncios, enternecida pela sua audácia e franqueza para a resolução dos tempos próximos. ficar com o coração limpo de mágoas. É isso. Tem que ser isso.

Como se salda o que dói? como se aquietam injustiças e se revertem as condutas e os  modos de ser? como se ultrapassam os laivos da pena de nós e se renovam as crenças? como do pouco, podemos fazer muito e do menos bem, o bem pleno? como podemos voltar à insustentável leveza do ser, limpos de fúria e zanga, acalentando o que somos e ainda queremos (e podemos) ser? 

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjSnUjCCwacitc2QJw44jPMfckNsRpA0-AdRtSC4vQCCXUm388bocB6h9ELOeZb0mGDNBX_f5zi9lypzryEq92NTThRTrYMotrjZ6ZnSO2j9Dxwc9382XEwp2y10Xr5UjcO93o_Qj7uCqvV/s1600/Big+Forest.jpg
Como se faz isto à séria e sem escapatórias de trazer por casa? aquelas coisas que somos tentados a fazer, um pouco tolamente e por despeito, disfarçar e assobiar, isto não é nada comigo, isto já passa. Fazer a fuga para a frente, (re)começar outros desafios, mudar de fuso horário, mudar de direção, procurar o paraíso em livros de autoajuda, saiba como ser feliz, num ápice. 

E num ápice, quase nada se faz. Num ápice, só receitas na Bimby, tarefas domésticas, sms, duches pela manha, recados e ligar o carro. De resto, na vida mais funda, a dos afetos e projetos, é preciso tempo, bom senso, resiliência, lonjura e confiança. É preciso não dar o corpo pela alma, descobrir o essencial e deitar fora todos os supérfluos acumulados. Aqueles que nos retiram a liberdade e a energia para (re)fazer a nossa vida, com arte(s) e sonhos.

É preciso ficar com o coração limpo de mágoas. E assim vai ser.


domingo, 9 de julho de 2017

No Porto, pensar a pedagogia

É domingo, dia de descanso e pausa. Volto à rotina, depois de dois dias de intensa participação, em companhia. Foram muitos os que responderam à chamada, e quiseram ir à procura, uma vez mais,  da melhor pedagogia, para cuidar de meninos e as meninas que brincam e correm e aprendem, um pouco por todo o lado, em instituições de educação de infância, apoiados por educadores e equipas que se querem atentas, disponíveis e amorosas. Os educadores, fazedores do currículo, um currículo lento, não apressado e não imposto, um currículo (co)construído em parceria, que se quer vigiado e sustentado por outros olhares, numa lógica de fronteiras, como ponte e como proximidade.

E lá estiverem outros, especialistas de reconhecido mérito, que nos ajudaram a pensar ideias e práticas. E falou-se sobre currículo de qualidade para crianças e famílias em desvantagem, a centralidade do professor no currículo, a importância de brincar, ser ativo e correr riscos, o educador como arquiteto de atitudes, emoções e comportamentos, fronteiras e hospitalidade, como desafio para a educação de infância. E pudemos ainda ouvir outros, educadores, a partilharem práticas e projetos, alimentando o vai e vem entre o dizer e o fazer, expondo-se e expondo a matéria prima do seu trabalho.  

https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/236x/49/ed/0b/49ed0be98f41bca556f92be0a86abb98.jpgPela minha parte, levei as minhas famílias, para contar a história da nossa relação, que começou por mares revoltos nunca antes navegados e terminou em enseadas de praias mansas, apenas fustigadas por ventos do norte, em alguns dias.  Agradeço mais uma vez por me darem o mote para  o (re)conto, que de tão difícil, se tornou exemplar.
Por elas e com elas, as famílias, que pintaram Miró, leram livros mesmo a soletrar, cooperaram em projetos de bebés a nascer, riram, dançaram, protestaram, anuíram e discordaram.
E compreenderam que a Manela tem ali uma coisa...que eles escrevem e depois discutem e já não se batem, famílias que também ensinaram, que é sempre possível recomeçar, ultrapassando representações menos positivas, medos e dúvidas. Em proveito das crianças que se querem a crescer em ambientes de cooperação e inclusão para todos. Assim tentei fazer, por mais dura que fosse a realidade.

Levei-as em imagens e memória, apoiada pela emoção e uma leitura cada vez mais distanciada, tentando encontrar na prática a teoria e na teoria, a prática. Julgo que é isso que se pretende aos arquitetos do currículo, nós, os educadores, que de tão atarefados, encontram muito pouco tempo para refletirem e pensarem sobre o seu trabalho, a pedagogia, o lugar onde se cruza o que somos, pensamos e fazemos.

E por isso estes encontros são uma forma de encher o peito de ar, suster a respiração, abrandar, pensar e discutir, contrapor e regular. Para continuar de coração mais cheio, aberto e conhecedor. Porque o coração também conhece, como nos diz o príncipezinho, desde que haja tempo e lugar. Para que nos possamos deslumbrar com o pré-escolar, como nos disse o Sr. Secretário de Estado da Educação, a fechar este encontro.

 Um obrigada à APEI e a todos quantos fizeram acontecer estes dias, no Porto. Ficámos todos mais ricos, não foi?