Há dia assim, acordamos suspensos por uma pontinha de saudade, a preencher, intermitente, o bater do coração. Como um fio leve, uma gotinha de água, um sopro de vento, uma pedra lisa. Coisas breves e talvez ligeiras, simples, inócuas, mas ainda assim, inteiras e presentes. E ficamos mudos, meio perdidos e inquiridores, nas emoções que se entranham nos dias. Saudades de quem e de quê? do riso longo das crianças da escola? das vozes tranquilas dos amigos de sempre? dos filhos grandes que voaram do ninho? da mãe que partiu e já não está presente? de alguns passos de dança e de um entardecer lindo? dos sonhos de sempre e de tantas quimeras? da juventude que foi e que já não é?
E ficamos assim, inundados de uma saudade sem nome, à procura de um sentido para as histórias que persistem em nós, neste outono que chega de mansinho. Dias amenos, infinitamente belos, deslizam, sem pedir pelos nossos lugares, antecedendo as noites curtas e frescas, a pedirem castanhas quentes e boas para os corações cansados. E um casaco de lã, e um lugar junto à lareira e um sorriso de amor. E um canto e uma alegria e um poema. Sim, um poema, para reter a beleza dos dias e a melancolia do que não sabemos, mas permanece em nós.
Aqui fica. De Eugénio de Andrade.
Aqui fica. De Eugénio de Andrade.
O Espírito do Outono
Terei de falar do espírito do outono
agora que setembro
chegou ao fim. (Espírito
é palavra suspeita: não há
hipócrita que não se abrigue
à sua sombra.) Será
a embriaguez? O vento matinal
arrastando folhas
raparigas canções?
O sopro frio das estrelas?
Será a beleza,
o espírito do outono? Há um limite
para o homem, um limite
para suportar o peso do mundo.
Da beleza, da bárbara
orgulhosa beleza, quem sabe defender-se
sem medo do coração lhe rebentar?
In "O Sal da Língua"