sexta-feira, 22 de abril de 2016

Dias de luz e atrapalhações

Não tenho escrito sobre os meninos e as meninas da escola. Quando não escrevo, ando cabisbaixa e a cismar, como se diz na minha terra. Pois assim tem sido, ainda que talvez não devesse, já levo três anos desta comunidade, as surpresas já não deviam acontecer, dias e dias de aprendizagem e constatação, um empurrar permanente dos destinos, um alindar dos espaços, um refazer de estratégias e propósitos.

Mas surpreendemo-nos sempre. Como não? A vida a entrar em forma de choro, as noticias sobre famílias que não estão, os pedidos de colo, o eterno bater como primeira reação, as opiniões sobre quem manda brincar com quem, porque Manela não pode ser, eu não deixo que fique ao lado de...e nós a tentar remendar a questão, porque outra coisa não se pode fazer. De remendos vamos vivendo, fazendo uma coisa e sonhando, em muitos dias, com outras. Então, fica-se desconfortável e a cismar... porque é em cada lugar concreto que a pedagogia se faz, o que implica centrarmo-nos no aqui e agora, amando o que se tem.

Depois, luzes de esperança em alguns dias. Festa e risos, desenhos e pinturas, meninos a pensar e a falar. Como o A. que disse no outro dia eu sei que quando chegas vens para arrumar os meninos. Arrumar?? sim, acalmar, falar baixo... arrumar. Pois, tem razão. Quando consigo (nem sempre consigo), priorizo o bem estar e a conversa, a atenção e a serenidade. Arrumo-os como posso em mim e em nós, mas é pouco e não chega. O mundo existe para além da sala e nem sempre é doce e suave.

http://static7.depositphotos.com/1004899/735/i/950/depositphotos_7350468-Rain-of-lights-christmas-or.jpgDepois luzes de esperança em alguns dias. Mães que vêm ler histórias e ficam a ver e a ouvir a discussão sobre os meninos que não querem brincar com outros, batem e não desculpam. E nós, cansadas de tanta zanga, a discursar, com energia e a terminar  é o que eu acho e acredito nisto. E a S. a rematar e é esta a educadora que diz assim coisas e o que pensa e é a melhor...e riram e disseram pois e  a mãe a segredar isto é difícil!

Depois luzes de esperança em alguns dias. Uma reunião de conselho onde muitos falaram e o M. a dizer secretário, dá a palavra...e o secretário, bem novinho, a dizer-me eu não dei a palavra, tu é que deste Manela...pois foi, a pressa da educadora para segurar as ideias, que estavam a rolar, mesmo na direção que queríamos. Sempre esta eterna luta entre o que os meninos e as meninas podem e aquilo que os educadores necessitam de ouvir e confirmar. 

Depois luzes de esperança em alguns dias, seguidas de atrapalhações. Falámos do 25 de abril, com uma história e o livro os rapazes dos tanques, todos muito atentos, olhos abertos e ouvidos à escuta e quando se falou da prisão e da falta de liberdade, logo opiniões de outras prisões da sua vida, a minha avó também...o meu tio... e nós sem recursos pedagógicos plausíveis para demonstrar que não era a mesma coisa. Enrolámos o discurso, mas tentámos.  Atabalhoadamente, parece.

Atabalhoadamente também ficamos quando vem a Escola Segura, para os meninos mais crescidos e tudo vira um rebuliço. Todos comentam no portão e as palavras inundam o espaço e as conversas. Tento explicar, mas mais afincadamente tento arrumá-los, como disse o A. Blindar a sua agitação e disponibilizar um corpo seguro, que os embale e os retire das aflições. Para que possam serenar e viver bem na sala. 

Esta imensa disponibilidade é muito exigente e traiçoeira. Não mora sempre em nós, o que é uma dificuldade e uma atrapalhação, para a construção de dias bons e soalheiros. Porque o currículo, neste lugar, passa por aqui. Muita luz e muito amor. Possamos nós assim fazer, sem cismas.
Sem estar sempre a pensar, ainda que veladamente, que devíamos estar a fazer outra coisa, no currículo. 


domingo, 17 de abril de 2016

Carta para uma amiga


Hoje, 15 de abril, faz anos uma grande amiga, que tive a sorte de conhecer, quando era menina e moça e ela também. Hoje, mais uma vez vamos a sua casa, comer uma coisita simples, que não é nada de especial, diz ela, naquele jeito de aligeirar o seu modo de ser e estar com os outros...como se fosse possível uma coisita simples quando se trata de abrir as suas portas e cuidar de quem ama! Sabemos que não. 

O que esta amiga tem de maravilhoso e único é uma arte especial de bem acolher e cuidar, requintes traduzidos em boa comida, espaços abertos, conversas soltas, atenção colocada nos outros, palavras de amizade e conforto, risos e abraços. É uma mestra nesta arte, com credenciais dadas, conhecemos a sua extrema disponibilidade para pensar nos outros, amá-los com ternura, verdade e justiça. Sei do que falo.  


Por isso nunca é de mais escrever-lhe cartas e repetir-me nas palavras. Não me canso e nunca me cansarei. Com ela atravessei anos e anos de aventuras, trocas profissionais, partilhas de vida, filhos e companheiros, mães e sogros, textos e frases, trapos e adereços…de tudo tivemos, de tudo nos rimos e chorámos, com tudo crescemos como mulheres e educadoras. Eu, sobretudo.


http://images.e-konomista.pt/articles/850_400_prendas-que-nao-pode-mesmo-oferecer-no-natal.jpgCom a sua generosidade, ficou com os meus filhos de noite, regou-me as flores no verão, tratou-me dos gatos, mudou fraldas ao meu sogro e possibilitou que tivesse férias. Ouviu as minhas duvidas e medos, parou de arrumar a casa para me dar café e pão com manteiga. E eu confiei na sua mestria e descansei dos meus cansaços. Amiga assim, é uma pérola no nosso caminho e um amparo para os dias cinzentos. 


Agora estamos mais velhas e mantemos a nossa amizade, porque ela faz parte da nossa vida, da nossa pele, da nossa identidade. Continua a dar-me muito, e não falo nos doces de natal ou nos bolos que faz para os nossos aniversários, na sarapilheira que vai comprar, nos catos que me oferece para a escola. Falo do lugar que ocupa na minha vida e na vida aqui de casa, nas perguntas de cuidado do meu filho que é seu afilhado, e já lhe dedicou um espaço no jornal…falo do lugar que sei que guarda no seu coração, da liberdade de telefonar a qualquer hora e ouvi-la dizer sim, Manela, então, está tudo bem? E da certeza do seu tempo para ouvir, mesmo que esteja ocupada.


Porque esta amiga não conhece ocupação para quem ama. Porque esta amiga tem um coração do tamanho do mundo. Porque esta amiga sabe conjugar como ninguém o verbo cuidar. 
Precisamos todos, os que a amam e reconhecem, agradecer a sua presença e cuidar dela também. Porque ela merece, como ninguém.


quinta-feira, 7 de abril de 2016

Esperança(s)

O dia hoje não foi fácil, saí da escola em desconforto, a ideia que ainda falta fazer quase tudo e quase tudo é muito, agora. Não quero nem posso falar disso aqui.
Saí a querer silêncio, a querer tempo para pensar, sentir e compreender. Mas o dia não acabara e teria ainda que falar na reunião do fim de tarde. E falei. E ouvi e voltei a falar. Mas não disse o essencial. Porque o essencial estava de repente no seu rosto, sereno e terno, misturado com uma força amena, que se via a léguas, nos olhos e nas palavras, a fazer eco e ressonância dentro de si e da sua barriga. Uma barriga redonda, grandinha, ajeitada nas mãos e no pensamento. No amor. 

http://www.tempoagora.com.br/wp-content/uploads/p%C3%B4r-do-sol-mar-praia-fim-de-tarde2.jpgRegressei a casa, com o desejado silêncio, uma musica de fundo, a pensar no que tinha sido dito e explicitado. A fazer síntese, da síntese partilhada. Teria dito o essencial? não, de todo, porque o essencial ali estava, na memória daquela barriga, como colo e sustentação de um bebé. Um bebé esperado por uma mulher de esperança, que o procurou de braço dado com a fé e a alegria. E o amor. 

E pensei que não lhe tinha dito o quanto isso hoje foi importante. Por isso escrevo. Para deitar fora o desconforto do dia e guardar o dom de quem, devagar e sem medo, sonha e deseja a vida. E a faz com mais gente e mais mundo. E com todo o compromisso.

E assim queremos ser, com apostas de fazer figas ao vazio e renovar votos de esperança. Assim queremos para este bebé e para a sua família.  Um doce recomeço de fraldas, cheiro de risos e leite, calor de regaços e abraços, dias de sol e noites de embalar berços.

Assim queremos também para os meninos lá da escola, para quem falta fazer quase tudo. Pensando bem, talvez não seja muito. Apostemos, mais uma vez. E sempre.  


sábado, 2 de abril de 2016

As histórias da minha avó

Os livros. Não havia muitos lá em casa, quando era menina. Muito menos para a infância, porque a infância nesse tempo não estava especializada, era-se menino ou menina no meio de grandes, que regendo a vida com arte e engenho, iam tratando dos pequenos e do futuro, como sabiam e tinham experimentado. Portanto não havia livros, a não ser aos sete anos, os da escola, com as primeiras letras e as lições de moral, para aprender a ler e a saber comportar-se, sem sonhos e ousadias. Gostei deles, apesar de tudo, porque me senti autónoma e poderosa, lembro-me disso.

http://www.brincandoeconstruindo.com.br/blog/wp-content/uploads/2013/08/FEIRA-DE-LIVROS.pngPortanto, não havia livros, mas havia a minha avó. Mulher forte e misteriosa, com luz nos olhos e nos cabelos, impetuosa e doce, contava-me histórias de fazer medo, lobisomens e gatos pretos, bruxas e escaravelhos, o Joãozinho que se perdeu na floresta, a madrasta que não deu de comer. Contava com entoação, ainda que sem grandes intimidades, fazendo desfilar o bem e o mal em forma de bichos ou de mistérios. E eu ouvia e imaginava os gatos pretos em cima dos muros e as mulheres a combatê-los, em posições de guerreiras. 
No final tranquilizava-me, ficávamos em silêncio a olhar a lareira e eu cansada de correr o mundo em imagens de tecer fantasmas. Às vezes as histórias eram reais, a minha avó nova, o namoro com o meu avô, a zanga por causa do café e dos tamancos, o nascimento da tia Cecília, risos e dores, lutas e sucessos, outros enredos, o mesmo entusiasmo.  Eu a imaginar e a guardar dentro de mim a revelação das imagens das suas histórias. Persistem até hoje.

Portanto não havia livros, mas havia a minha avó. Acho que a ela lhe devo o gosto danado por ler, que na adolescência me fez procurar nas estantes do meu irmão os livros proibidos, antes de 74 e consumi-los num abrir e fechar de olhos. Agradeço-lhe este comportamento aditivo, de braço dado com o prazer de escrever e amar as palavras, amar os homens e as mulheres, querer ser escritora e correr mundo e que não tendo sido possível, me alimentou a vida e os sonhos. Ainda hoje.

Neste dia internacional do livro infantil, o desejo de que os meninos e as meninas sem livros em casa, possam ter uma avó para lhes contar histórias. E que as escolas e os educadores se saibam e sintam arautos da literatura para as crianças, como concretização de um direito. Porque não só de pão vive o homem e os meninos também não. Conhecer e gostar de livros é uma forma perfeita de conhecer e gostar de si e do mundo. E ser poderoso.