domingo, 30 de agosto de 2015

Em modo (ainda) lento...

Domingo lento. Cirandamos pela casa, fazendo pequenas coisas, numa preguiça boa. Entregamo-nos às tarefas domingueiras, almoço com os rapazes, a alegria calada de os ouvir discutir futebol e política, levantar a mesa, estender roupa, compor as almofadas no sofá. Tudo com tempo e gestos lentos, em modo ainda de descanso. O pensamento esse, já se perde por momentos, entre o cheiro do mar e da ria e as  imagens da escola e dos meninos e meninas. Não dizemos nada, silenciamos o devaneio, cá em casa criticariam esta antecipação, mãe, calma, ainda estás de férias...porquê isso?

http://www.editoradobrasil.com.br:81/blog-da-gabi/wp-content/uploads/2015/02/PJBG9161.jpgPorquê? Porque sou educadora, porque vou começar a trabalhar, porque a nossa matéria de investimento e intervenção são pessoas, pessoas pequenas, crianças, frágeis e fortes, competentes e autónomas, mas também dependentes, que nos esperam de corpo inteiro, para lhes darmos e com elas construirmos um tempo de bem estar, bem aprender, bem conviver e brincar.

Porquê? Porque essas crianças, que chegam de riso alegre e lágrimas grandes, merecem o melhor das escolas, da pedagogia e dos educadores e isso é definitivamente uma coisa dificil e pouco provável de acontecer, se os profissionais não se munirem de intencionalidade, ética, sentido do(s) outro(s), liberdade, diferenciação. E criatividade no currículo. E aposta no trabalho de equipa. E...

Por isso, uma educadora em vésperas de (re)início do ano letivo, ainda que em modo de descanso, não consegue aprisionar o pensamento e concentrar-se apenas em tarefas domingueiras. Nem fazer diminuir uma espécie de nervoso miudinho que alastra na barriga, como em véspera de um exame final. Apesar de muitos anos de prática, dos supostos saberes acumulados, da experiência arrecadada. 

Porque cada ano é uma nova aventura e um novo desafio, que queremos ganhar, com os meninos e meninas que nos chegam, vestidos de novo, em roupas e sonhos. Que lhes possamos todos proporcionar um tempo descansado e lento, sem pressas curriculares e com muitas brincadeiras felizes. E autonomia. E democracia.

Bom ano letivo para todos

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Sábado inquieto

Corrias desde a madrugada, nos Pirenéus e eu acordei cedo, neste sábado, para ir acompanhando a tua progressão, desta vez numa ultra mais dura e mais distante. Pelo link, com a ajuda do pai, víamos os diferentes postos de controle e as tuas passagens pelos mesmos. Fui fazer os tratamentos nas termas e metemo-nos por serras e vales, a explorar a região, quem sabe numa forma de ser solidário e estar mais próximo de ti. Sabíamos o quanto tinhas investido na preparação desta prova e o quanto querias terminá-la. Acompanhámos os detalhes dos treinos, a organização do material exigido, o esforço e o sacríficio, o sonho e a persistência.

http://img.viveusa.mx/sites/default/files/styles/interior_nodo/public/field/image/comida_para_corredores.jpg?itok=7k2drPRX
Foi um sábado longo, onde as horas não tinham fim e onde o corpo me doeu de tanto te sentir correr e te acompanhar a par e passo. Conforme o dia ia avançando e tu também, em direção à meta, o meu coração andava aos tombos, entre a alegria e a inquietação, entre o orgulho e o medo, uma espécie de alerta assustado que as mães experimentam quando os filhos estão em (supostos) limites, físicos e psicológicos. Assim tinha medo que estivesses.

Durante este sábado longo, no meio da serra e de árvores muito altas, lembrei-me de ti em pequeno e da tua cara linda e sorridente, meia envergonhada, mas plena de encanto e macieza. Lembrei-me das tuas mãos que nunca se separavam das minhas, do teu corpo junto ao meu e dos bracinhos à volta do meu pescoço, quando adormecias ao sábado à tarde. Lembrei-me que púnhamos uma musica da Gal Costa e que tu te deixavas embalar, com o nosso calor e uns passos de dança. Lembrei-me do teu jeito para os desportos, da paixão pelo andebol, dos anos em que te fizeste um jogador de mão cheia. E da nossa alegria a gritar "...Boa João, força, vai!..." E do pai, quase a bater nos adversários, logo ele que é um homem tão discreto. E lembrei-me da tua força e da tua presença, quando comigo viveste a ida do pai durante seis meses para o Brasil. Rias, para nos alegrar, mas eu sabia que umas lágrimas escorriam no teu coração de menino bem pequeno. O teu sentido de estares comigo era maior que a tua tristeza. Assim foste sempre.

Lembrei-me de muitas outras coisas que não digo aqui, porque são nossas e são íntimas. Lembrei-me sobretudo da tua coragem e da tua fibra para venceres as montanhas da tua vida. Nós sabemos.

Por isso, apesar de inquieto, o meu coração de mãe sabia que ías terminar a prova, apesar das dificuldades e agruras dos caminhos dos Pirenéus. E assim foi. Corrreste 14 horas e mais uns minutos e arrecadaste um honroso 83 lugar, entre cerca de mil concorrentes...o 2º português a terminar a prova. Como se diz agora, não é coisa para meninos, é coisa para homens, ainda que no caso, seja coisa para o meu menino.

Parabéns, filho. Quem assim corre, com persistência e sem desistir, é capaz de muitas outras corridas. Nas montanhas e na vida. Não te esqueças...agora, podes correr menos horas? é que é um sufoco acompanhar-te à distância e imaginar o teu corpo a correr durante tanto tempo...



quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Agosto com saudade dentro

O dia está morno e sossegado, um pouquinho de melancolia invadiu-me o coração e fui para o jardim limpar ervas e espantar tristezas. Mas tu mantiveste-te por perto, apareceste com a bata de trazer por casa e uma tesoura para ajudar na tarefa de alindar o espaço. Bem gostavas de o fazer, entre umas inevitáveis críticas pois claro trabalhas tanto que nem consegues ter o jardim com jeito... Pois não, mãe, só em tempo de folga, neste agosto de manter preguiças, consigo vir ao jardim e permanecer nele, entre apanhar ervas e apreciar a beleza do verde. 

Hoje vieste comigo, porque andaste nos meus sonhos de noite e acordei contigo pela manhã. O teu andar a descer as escadas, o cheiro do café com leite, as torradas e a manteiga. E a consulta ao tempo, afastando a cortina da cozinha está enevoado...e mais frio...1º de agosto, 1º dia de inverno, dizia o meu avô, terias dito também, confirmando as tuas aprendizagens e a tua memória de menina pequena.

http://www.mundodeflores.com/images/flores-dentes-de-leao.jpg?phpMyAdmin=9ea091c51a5aa3cf876fb3cf0a5f7f3dSe hoje estivesses mesmo cá, com a bata de trazer por casa, faríamos desta casa um lugar melhor para estar. E do jardim, um enorme espaço de palavras e afetos, com risos, recordações soltas e discussões amenas não, esta flor precisa de ser regada e aparada...não percebes nada disto...

Pois não, mãe, nem de jardins nem de ausências teimosas que em ciclos quase previsíveis, nos atacam o coração e o pensamento em forma de saudade. E que aí ficam, indiferentes ao cheiro das férias e aos nossos pedidos para saírem de mansinho, não vão as lágrimas tomarem a dianteira e o dia ficar escuro.

Tu não havias de querer isso, apesar do provérbio do teu avô. Se estás por aqui, fica discreta e calma, não caves fundo nas memórias do nosso chão, não queiras tocar nas raízes que nos prendem até à eternidade. Quero, contigo e sem lamentos, continuar esta faina no jardim que eu sei que tanto gostavas. Assim se cumprirá mais um dia de verão, em boa companhia.


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A casa da Tita

Já vim do mar. Antes de chegar a casa e aterrar no meu sótão ou começar a arrumar as tralhas, detenho-me na casa da Tita, porque vale a pena. Uma casa de turismo rural, no interior Algarvio, que o sonho e as mãos de amigos de longa data, recuperaram e deram vida. Uma vida boa e bonita, com história(s) e muito charme.

Está lá tudo o que é preciso para sermos felizes. Um silêncio de ouro, a serra verde, o canto das cigarras, o calor forte a entrar na pele, a água morna da piscina a refrescar o corpo. E a beleza da casa, por fora e por dentro. Tudo pensado com jeito e intenção, tudo no lugar certo, as colchas de renda, as jarras com flores do campo, os quadros, os espelhos, o nome dos apartamentos - celeiro e palheiro -  e dos quartos - quarto verde e cisterna, suite júnior, quarto rosa -  as peças de barro, as cortinas de renda, os cestos, o ferro forjado, memórias e peças de antigamente a conviver com os artefactos da modernidade numa conjugação inteligente e sensivel. Na casa principal, os objetos dos donos que a habitaram: poemas, relógios, óculos, carteiras, diplomas, a atestar que ali, no chão que se mantém intacto e lindo, andaram os pés, o corpo e os afetos de um casal algarvio que se amou até sempre. Uma casa com vestígios de gente que agora espera outras gentes para fazer outras histórias.

A nossa foi de uma noite muito bem passada. Um banho na piscina ao fim da tarde, revigorante e tranquilizador, um descanso nas espreguiçadeiras, um jantar delicioso no espaço exterior, uma conversa animada, risos e partilhas de outros tempos, que esta amizade vem de longe e reforçou-se em muitos momentos de trabalho, convívio e cultura. Depois de uma noite bem dormida, em lençóis muito brancos onde um bordado azul dá um toque de mimo, o direito a um pequeno-almoço de luxo. Sim, porque não falei da horta com produtos biológicos, onde se vai buscar os morangos, os figos, a chia, as laranjas e muitas outras coisas para uma alimentação saudável e deliciosa.

Claro que falta falar do principal, os anfitriões da casa da Tita, o Sarmento, a Elisabete e o Miguel, uma família que decidiu do velho fazer novo e mantendo a tradição, valorizar o que de melhor temos no Algarve e na Nave do Barão e o que de melhor eles têm dentro de si: engenho, arte e afeto aos montes para bem acolher e bem cuidar. Com atenção, disponibilidade, encanto e simplicidade. E requinte, aquele necessário para fazer dos dias, uns dias a serem lembrados com prazer. 

Por mim, senti-me em casa, nesta casa da Tita. Espero voltar. Já lhe sinto a falta.
  

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Liberdade junto ao mar

Maria Mar de Saudade e Mágoa, tu que sofres em silêncio e choras baixinho, lembra-te de mim...E a mulher lembrou-se e sorriu desta lembrança em frente ao mar, inesperada de tão antiga. Uma leve estranheza invadiu o sol e a mulher, cobrindo-os com um manto de espanto, ainda que apenas por um breve momento, o necessário para compreender e aceitar. Porque o verão também é isto, pensou, a liberdade para soltar memórias e espalhá-las ao quatro ventos, no meio do mar, sem medo de marés vivas e avisos contínuos de luz do farol. 

Verão também é isso, o corpo à deriva e o coração sem freio, a dançar de contente, num namoro pegado com os raios de sol e a frescura do amanhecer. 

O verão também é isso, poemas soltos que vivem colados à pele, encrustados em tempos de chuva, que se soltam sem pedir permissão ou desculpa. O verão é, se for tempo livre, a liberdade para ser-se inteira e total, na vida, no tempo e no lugar.

E a mulher sorriu, demorou-se de novo na frase inesperada e acalentou em si a memória longínqua da imensidão do amor em tempo de verão. Assim seja sempre.


segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Saudades em dia

Deixei tudo na areia e fui andar à beira-mar. Pano a proteger os ombros, chapéu na cabeça, pés frescos na água. Não levei companhia, a conversa era íntíma, não requeria mais que dois nesta espécie de monólogo com mar ao fundo.
 
Caminhei durante mais de uma hora, tempo suficiente para quase dar a volta à vida. E dei. Falei-lhe dos meninos e meninas da escola, que agora estão de férias, lá no bairro, a brincar nas ruas, uns com os outros, risos altos e corpo ágil, cheio de vida. Jurei que quase lhes ouvia as falas e os acertos das brincadeiras, entre partilhas e disputas.
 
Falei-lhe dos meus rapazes, grandes e lindos, que já fazem férias com outros, amigos e novas famílias, que deixaram de ser pequenos, a cheirar a bebé e viraram homens de barba e corpo grande. Sussurrei-lhe algumas das minhas saudades, segredos calados de mãe, imagens presentes da casa com roupa espalhada e programas agitados de noites de verão. E cheiro a creme depois da praia.
 
http://www.edivalperrini.com.br/wp-content/uploads/2012/09/foto-ondas.gifContei-lhe depois de algumas amigas, pequenas ousadias e descobertas, novidades e confirmações, que a amizade é longa e duradoura, pelo menos algumas. E falei-lhe do meu mano, amor maior de infância, alegria e cumplicidade, proteção e amparo. O meu mano de olhos risonhos e abraços grandes. O meu mano pequeno, o meu mano grande. E contei-lhe do meu companheiro, pedi-lhe que o refrescasse com abundância, lhe desse o descanso justo e merecido depois de um ano tao longo e cheio de um trabalho honesto e extenuante. E que nos desse a ventura de muitas viagens pelo mundo e um tempo longo para o amor. Ainda amor. Ainda longo.

Depois calei-me, queria ouvi-lo e saber do seu inverno e primavera, das suas dores e maleitas. E ele disse que tudo estava quase igual, as conchas de muitas cores, o brilho forte da areia, o barulho leve das ondas, os peixes pequenos, a frescura e a leveza da sua cor de azul e mar. Tudo igual, tudo renovado.
 
Assim confirmei. E assim ficaram as saudades postas em dia, condição essencial para começar as férias. Aqui estamos.