domingo, 29 de outubro de 2017

Para o Miguel

Nasceste há 26 anos e és o mais novo cá de casa. Já não moras connosco, porque quiseste um dia viver sozinho e hoje partilhas o teu tempo com a tua namorada, construindo todos os dias uma vida a dois, misturada com outras vidas e muitos sonhos. 

Quando nasceste, numa terça-feira, disse-te palavras doces de acolhimento e tu poisaste no meu peito, quente e a chorar fora de mim e no entanto, tão colado ao meu coração. Assim ficámos até hoje, mesmo nos dias em que ser mãe e filho nem sempre foi uma condição suave. Mas porque teria que ser? sabemos que crescer e tomar nas mãos o mundo é sempre uma tarefa de atar e desatar nós e isso envolve perícias várias, desde logo tomar o lugar do outro, com sensibilidade para respeitar, abdicar e compreender. Só com o tempo aprendemos a ser melhores mães e melhores filhos. 

https://c2.staticflickr.com/6/5267/5678121041_be602aaefe_z.jpgGuardo da tua infância, as tuas gargalhadas destemidas que ainda hoje soltas, numa espécie de desafio explicito, a confirmar que não pedes licença para seres quem és. Dou conta que sempre foste assim, aberto à vida e à sua mutação, recusando o mofo dos preconceitos e do instituído. Procuras desde menino, o teu lugar ao sol, sem medo, mas também sem atropelar quem contigo se cruza nos caminhos que percorres. Tranquilizo-me, por teres aprendido, na nossa casa, esse principio de vida. 

Guardo da tua infância o olhar do mano sobre ti, a sua proteção e admiração. Guardo o olhar de amor da avó, a sua alegria e a sua tranquilidade por te saber sangue do nosso sangue. Guardo o movimento da bengala do avô, tentando apanhar-te e tu a fugires, com risos malandros. Guardo o tempo do pai a contar-te a história do peixinho, em noites de sono que não vinha. Guardo dias de escola, danças na sala, jogos de andebol, textos em cadernos, conversas a dois, abraços e beijos. Guardo o teu cheiro e o calor da tua pele dentro de mim, para sempre.

E hoje, quando chegares para cantarmos os parabéns, vou de novo admirar-me pela rapidez do tempo que já passou e por estares assim, já tão grande e fora de mim. E vou de novo sentir que ter um filho e ajudá-lo a crescer é um desafio, um mistério e uma sorte. 
Amo-te. Parabéns.

domingo, 22 de outubro de 2017

Neste outono

Ainda não escrevi sobre o outono e a sua doce magia. Ainda não me entrou na alma e no entanto é outubro, os dias já são mais curtos e o sol, ainda que continue forte, já estremece com o ar fresco da manha. Sente-lhe a presença e inibe-se na sua luz cintilante. Assim seja, porque nos é devido a paz dos dias tranquilos e a promessa da quietude das chamas altas, para acabar de vez com os campos queimados e o negro do coração de quem tudo perdeu.

Convoquemos o outono para que nos traga o reflexo do sol deitado em cima das terras e das árvores altas. Para que a vida se renove em lentidão, sem surpresas aflitas de um tempo às avessas. Porque às avessas só queremos a má sorte, a virar em sorte boa e para sempre. Nos lugares que temos e no corpo que habitamos.

http://www.fubiz.net/wp-content/uploads/2016/03/Autumnal-and-Colorful-Oil-Paintings15.jpgConvoquemos o outono e os dias justos. Convoquemos o que somos, gostamos, temos e desejamos. Neste outono que tarda, a mim fazem-me falta os cestos de fruta madura, as descobertas alegres na escola, as pinturas da árvore da vida de Klimt, a salada de fruta e as bocas lambuzadas, os risos e as birras, os abraços e as perguntas quantos somos cá na sala? queres brincar ao lobo mau, no recreio? que dia é hoje? vamos fazer doce de abóbora?

Vamos, pois, fazer doce de abóbora e pintar o céu de azul claro, desenhar árvores verdes e castanhas, morder os bagos das romãs, brincar com paus e pedrinhas do chão, compor, misturar, separar e projetar. Em tons de laranja, castanho, verde e lilás. Com esperança e rebeldia, traços fortes ou tímidos, mas sempre autónomos e livres, porque capazes e competentes.

Assim eu queria este outono. Em tempo ameno e dias doces, com bocados de frio, vento e cheiro de castanhas assadas e frascos de marmelada para barrar o pão.
Nas escolas e nas casas, em todos os lugares, neste outono. Com paisagens bonitas, sem desastres tristes de fogos por apagar, que pintam a terra de escuro e sugam a fé no futuro.

domingo, 15 de outubro de 2017

A menina

Fez seis meses, na semana passada, a menina. Os pais, que a celebram todos os dias num amor apaixonado, marcaram um encontro ao final do dia, num espaço verde, com bolos, champanhe e colos por perto. Na tarde quente de outono, com mantas no chão e um céu azul, muitos responderam à chamada, contentes de poder ver e abraçar a menina. 

E a menina estava linda, de macacão azul e olhos grandes, atenta aos risos e às conversas, que circulavam lentas, tranquilas e cheias de amor. Os pais faziam as honras do dia, entre copos de sumo e bolos caseiros, discretos, mas atentos a cada um dos que vieram e plenos da sua condição de jovens pais. Roupas informais e rostos bonitos, rodeavam a sua gente e os seus afetos, oferecendo à sua menina, os colos que os fizerem crescer como pessoas. Uma dádiva imensa, uma identidade que transportam e sabem ser o chão mais certo para os passos e os sonhos da menina. Porque é assim que a querem, num quotidiano de cuidado, cheia de futuros longos e promissores, aninhada em passados quentes, balizados pelos laços familiares, que tecem a segurança, a autoestima, o conforto e a alegria.

E como jovens pais, estão apaixonados pela sua filha e isso é uma sorte para a menina. Rodeiam-na de palavras doces e desafiadoras, enternecem-se com o seu riso, espantam-se com a sua competência e interação, com as suas graças e feitos.

http://www.artnaiffestiwal.pl/uploads/4281f6a5c96f82459cf2e76aad32afb2dd7e0054.jpgE acordam de noite com o choro, aconchegam-lhe o corpo e o leite, mudam fraldas e oferecem mimos, protegem, amparam, desafiam. Preocupam-se e distendem-se e confirmam o seu projeto maior, porque a menina cresce todos os dias e todos os dias prova que aprender a ser pessoa é uma procura constante entre conhecimento, descoberta, aceitação, conquista. E resiliência e persistência. E resistência à frustração.

Tanta coisa? sim, muita coisa, e os pais, que sabem disso, convocam para esta aventura, as suas melhores competências e os seus melhores e maiores amparos. E os avós aí estão, em jeito de segunda viagem, a distribuir os bolos, a adoçar a boca, a pegar ao colo, a mimar e a dar descanso, num misto de saudade, reconhecimento e apoio.

E eu, que estive presente na festa da menina, olho tudo e enterneço-me. Com a menina e a sua meiguice, com os pais, com este começo e esta lonjura. Enterneço-me com os seus olhos, o seu rosto, as suas fitas e laços, com o cheiro de bebé pequena e meiga. Enterneço-me com o zelo com que a cuidam, a convicção com que a permeiam numa família alargada e amorosa. E penso para com os meus botões, que sorte tem esta menina! Por nascer em berço de amor, por ser embalada e deitada em lençóis quentes, por ter uma casa, uns pais e avós presentes, por ter quem cuide dos dias, das noites, dos sonhos e do futuro. 

Que assim seja hoje e todos os dias. E que nos mantenhamos por perto a comemorar muitos anos e a soprar muitas velas, em espaços verdes, com a menina a correr, linda e feliz. Para sempre.