segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Cheio de mundo(s)

Há 22 anos, este foi o dia em que nasceste. 
Uma terça-feira, também, o dia por ti escolhido. Fui para o hospital, tu estavas preguiçoso para vires conhecer o mundo, mas quando te decidiste, foste rápido. Estava a sala cheia de gente à tua espera e eu, sempre pronta para as palavras, disse uma poesia, quando te prendi no meu corpo. E estavas quente e doce e a chorar. E eu desejei-te uma longa e boa vida. Acho que a tens. Pressinto e espero que assim seja por muitos anos.

Agora, com o curso recente de jornalista, ensaias textos num jornal, aprendendo a ser o que desde cedo foi uma coisa tua: jeito para composições e zangas quando as professoras faziam correções: mãe, porque é que não posso escrever uma menina com lábios cor de sangue? e eu a  responder pode-se dizer essa ideia com outras palavras,  talvez seja isso que a professora quer dizer...e tu a protestar. Sempre foste assim, menino com sentido assertivo, mil razões e réplicas, numa voz forte e destemida. Até quando começaste a jogar andebol, com 8 anos, os árbitros te chamavam a atenção. Paravam o jogo, e tu a retorquir. Ainda assim és. Olho para ti e sinto-te cheio de mundo(s) e de ti.

Em pequeno também, davas gargalhadas por tudo e por nada, tinhas sempre uma personagem no teatro das festa da escola, corrias e saltavas atrás da bola, cercado por amigos. Ainda assim és. Agora o teatro é como espectador, mas aprecias uma boa peça, vais a estreias e escreves sobre o que vês com sensibilidade e sentido critico. Os amigos, esses são do peito e por eles e com eles foges de casa e vais para eventos, noites de jantaradas, conversas até às tantas...

Poderia dizer que é um bom vivant e que da vida queres o seu melhor sabor. Mas o que quero hoje relembrar é a tua cara de menino, os teus braços à volta do meu pescoço e as tuas perguntas constantes, quando te ía buscar ao jardim de infância e descíamos a rua, contigo a comer um gelado.  Ou quando, te deixei na creche, tinhas tu dois anos e sentado num cavalo de pau te perguntei para onde vais, filho? e tu respondeste, sem conseguir ainda dizer o r - vou paa o pojeto, mãe...

Nessa altura, fiquei convencida que apesar de brincalhão davas atenção a muita coisa e que nós, cá em casa, andávamos a falar muito em projetos. Não foi de todo em vão, julgo, porque te lanças e multiplicas em mil ocupações, procurando lá fora, a vida e o mundo. 

Parabéns, filho!

PS - poderias voltar a ser bebé? só por um bocadinho, tenho saudades de ti, morno e doce. 

domingo, 27 de outubro de 2013

Palavras emprestadas: a forma justa

Neste domingo de sol, já espreitei a poesia de outros. Um deslizar por outras palavras, para me aninhar na beleza e confirmar a coragem e a lucidez de quem pensa o mundo de forma justa, como a única possível. Para ficar mais acompanhada neste dia.  

Aqui fica na voz de Sophia de Mello Andresen

A forma justa

Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos  espaços e das fontes
O céu, o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos - se ninguém atraiçoasse - proporia
Cada dia, a cada um, a liberdade e o reino
- Na concha, na flor, no homem e  no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é o meu oficio de poeta para a reconstrução do mundo

in "O nome das coisas"

sábado, 26 de outubro de 2013

Escrita e liberdade

Fim de tarde sereno, depois de dois dias de intensa chuva. É bom. Apesar do silêncio, oiço o ladrar de um cão, ao longe, e espreito a cor laranja do pôr do sol. No meu sótão, tudo parece adormecido ainda que na mesa e no chão permaneçam vestígios de coisas para as crianças. É sempre assim, o trabalho nunca acaba nem a procura de estratégias para dinamizar a vida do grupo e a aprendizagem dos meninos e meninas lá da escola. 

Mas hoje é sábado. Dia de escrever, de pegar nas palavras e salpicar o teclado, a par e passo com os ditos do coração. Porque a escrita é isto, um apanhado de ideias que não obedecem a um menu encomendado. Sentados no nosso canto e cheios de nós, vamos escrevendo as palavras que se libertam e compõem linhas, umas a seguir às outras. No fim,  ficam os textos, expressão de liberdade.

Isto é a escrita. Pelo menos a minha, esta que escrevo aqui e noutros locais, a que ninguém tem acesso, quando os conteúdos se apresentam mais íntimos, lacrimejados ou inconfessáveis. Pequenos segredos, de mim para mim. Uma forma de manutenção e resguardo da identidade e dos sonhos.

O sábado, para a escrita, é um dia de liberdade necessária. Imperiosa. Que anda de braço dado com a disponibilidade, a real e a que está no interior de nós. Para escrever é preciso tempo e desejo. Um bocado do coração aberto e livre, a vontade de dizer, a escuta daquilo que nos percorre o corpo, a cabeça e a alma. Ouvirmo-nos, sem medo dos sons que surjam. Pensarmo-nos, sem receio do que encontrar.  Não ter medo da vida, não ter medo da derrota, não ter medo de sermos quem somos. Peito aberto à feição do tempo e dos adágios, diria a minha avó.

E a minha avó, que não escrevia lá muito, sabia contar histórias como ninguém. Era a sua escrita, que desfiava no tempo do verão, comigo por perto, enquanto fazia pequenas tarefas. Escolher os feijões e as batatas, regar a horta, apanhar as espigas, olhar para o céu.

Coisas poucas, que arreliavam os filhos, inconformados com esta teimosia da sua permanente ocupação. Mãe, para quê? já não tem idade...e a minha avó ofendida, encolhia os ombros e calava-se. Voltava às pequenas tarefas, sentia-se livre assim, a cirandar por entre a vida de sempre e a contar histórias. Pegava nas palavras e desdobrava-as em mil sentidos, rindo, ou fechando o rosto quando o capitulo era mais denso. Ou triste. E eu, fiel ouvinte, aninhava-me na palha seca do milho e seguia deslumbrada todos os enredos. A do lobisomem, a do namoro com o meu avô, a do gato preto, a das mulheres tristes, a do Manuel, a do Joãozinho e da irmã. E outras. Recordo com clareza a voz, os gestos, a graça e a cumplicidade da minha avó a contar histórias, como se as escrevesse.

Creio que foi daí que comecei a inventar histórias, a escrever e a amar a liberdade. Como primeiro requisito para se ser gente de corpo inteiro.
Quando escrevo, ao sábado, isso parece ainda mais verdadeiro. E premente.

sábado, 19 de outubro de 2013

Apenas o (im)possível

Chove. 
Cai a chuva no telhado do meu sótão e embala a tarde boa de descanso. É sábado. 
As folhas molhadas das árvores que vejo pela janela parecem frescas e claras, lembra-me a humidade do musgo do presépio de natal. Sinto uma ligeira nostalgia e saudade. De ser mais nova e ter a minha mãe por perto e confirmar que a vida, em muitos dias, pode ser e é normal. Acordar e ir ao mercado, comprar legumes e peixe e fazer o almoço e rir. E sentir que outros tomam por mim as decisões necessárias. Estou cansada de comandar destinos. Tomar nas mãos o centro do meu mundo, pensá-lo com mil precauções e sentidos, escolher a paisagem certa para os eventos de ser pessoa em conjunto com outros. Cansa. 

Quero apenas do sol o seu calor mais suave nestes dias do outono. Depois, quero apanhar flores secas, fazer um arranjo e colocá-lo no lugar certo da sala. Comer castanhas cozinhas com erva doce e dormir no sofá, com o gato por perto. Apaziguar esta procura excessiva de mudar o que penso não estar certo, tal é a convicção de que a mudança é necessária. Hoje não quero sonhar mundos onde todos tenham um lugar. Não me quero ocupar com tal missão, é difícil e penosa. Sinto-me só neste combate. 

Por isso, tenho saudades da minha mãe. Das suas prioridades matinais, do tempo que queria quente ou chuvoso, da atenção para com o pequeno almoço e do seu afastar das cortinas para olhar para a rua. Dos seus pequenos gestos, das mãos morenas, do afagar da toalha de mesa e do tempo que demorava a olhar para os netos, com os seus olhos de carinho. Como a coisa mais importante. E era. 

Queria-a por cá. De certeza que me iria chamar lá de baixo da cozinha e dizer quando vamos fazer o jantar? e quando eu descesse, assim cansada, ouvi-la dizer mas o que estás tu a fazer? porque trabalhas tanto?... hoje é sábado... e encolhia os ombros e ficava contente de me arrastar para ela. 

Pois é mãe, hoje é sábado. E embora esteja rodeada de gente, fazes-me falta, para me chamares para outro lado, para o lado onde o corpo e a mente descansam, entre uma conversa sobre o tempo, uma chávena de chá quente e o fumegar da panela do jantar ao lume. E o jornal aberto e tu a comentares comigo as noticias frescas do dia. 

Podes vir? 

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Pedagogia

Escuto-os, observo para compreender, converso e deixo conversar e sinto que não chego para tanto que vejo. Os abraços não retiram o choro que surge por coisas de nada, a atenção não evita zangas e empurrões, as estratégias revelam-se relativamente falíveis. O mundo que ali está vem carregado de outros dias e noites, histórias cheias de outras histórias, vidas muito compridas e densas para gente tão nova. E entram a sorrir, mas muitos motivos fazem surgir a impaciência, as dificuldades de partilha, a impossibilidade de dizer por palavras o que o coração sente. São outras linguagens que se habituaram a usar e agora é preciso um tempo largo para aprender, no seio de um grupo que começa a ser uma comunidade de afetos e interações, mesmo que em alguns momentos, conflituosas. 

Assim se reconhecem e se entrelaçam, descobrindo diferenças, semelhanças, afinidades, encantos e alegrias.E tristezas. E amuos. Gostam-se, mas esgrimam vezes sem conta o seu poder, a sua emoção, a sua identidade. Querem-se únicos e exigem toda a atenção do mundo. São muitos e são pequenos. 

E eu, com muitos anos de profissão, fico espantada, ainda que talvez não devesse. Um pouco à nora, vou procurando construir lugares de satisfação, lutando contra o desconforto de me sentir pouco gente para tanto mundo(s). Precisava de ser mais pessoa, maior até, com um colo grande que acolhesse mais meninos. Porque alguns precisam muito de sossego, uma brisa no rosto e mil braços de cuidados e amparos. Para depois, ainda que devagarinho, se fossem libertando dos fios que lhes prendem a serenidade e a alegria. 

Assim estou. A pensar cada dia na melhor maneira de proporcionar um tempo e um espaço de bem estar. Assim estou, às vezes otimista e persistente, outras vezes confusa e impaciente. Sei que o meu tempo não é o deles e sei que me tenho que ajeitar ao seu mundo. Com segurança, afetividade e autoridade. Ora isto é tudo menos fácil, no lugar onde estou. Serei capaz?     

domingo, 13 de outubro de 2013

Gente...e gente

Há pessoas que são felizes em mundos pequenos, com os objetos e projetos todos ordenados, não necessitando de qualquer brisa do mar que agite a cortina da janela e descomponha a colcha da cama, fielmente feita todos os dias à mesma hora. Também não apreciam uma surpreendente lua cheia que ilumine a escuridão de um caminho perdido na serra. São pessoas cautelosas, chega-lhes a harmonia que estabelecem com os ponteiros do relógio e as contas atempadas para a chegada de cada estação. Armários arrumados, roupas quentes para o que der e vier, pantufas colocadas à espera do inverno. Tudo pronto e tudo controlado, que as surpresas assustam o coração e tornam desconfortável a ideia de futuro.Sentem-se sem rei nem roque, não se atrevem a respirar, sentido incómodo e uma dor na alma pelo que não conseguem antecipar. Têm amigos certos, que os ajudam a apanhar as uvas quando ficam maduras, mas nunca ousam dizer ou pensar que até ao lavar dos cestos é vindima. 

Há outras pessoas para quem o mundo é sonhado na imensidão de um tempo por descobrir. Apaixonadas pelos reflexos do nascer do sol nas madrugadas frias, saem de casa vezes sem conta ao cair da noite e procuram curiosas as palavras certas para iniciar os dias. Compõem-nas em companhia, com amigos, aqueles que andam de igual maneira à procura da vida, porque a que têm está velha, gasta e com pouco sentido. Também lhes dói a alma, mas pela razão inversa dos que não desejam ser surpreendidos.

Não se atrevem a respirar quando tudo está irremediavelmente no sitio certo e quando não alcançam os caminhos bons para sonhar os sonhos de olhos abertos.
Gostam de bússolas que lhes indiquem o norte, mas chamam a si a descoberta de outros roteiros para entenderem a imensidão de estarem vivos. Cantam, dançam e falam até tarde, porque as palavras são uma arma para revelar o que de si e dos outros anda escondido. Conhecem da vida o seu sabor agridoce e dizem vezes sem conta não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe...

Conheço gente de um lado e de outro. Entendo melhor os segundos, porque aí me situo, inconformada com mapas que outros fizerem e nos oferecem para poupar medos e mãos feridas de apalpar pedras e urtigas do campo. Rendo-me depressa a estas dores, elas mostram-me a realidade, que procuro enquanto tenho tempo de a tingir com cores de coragem, investimento e encanto. Quando os encontro, em mim e nos outros. 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

O meu irmão

Hoje o meu irmão faz anos. Quando eu nasci acho que me esperou ansioso ao colo do meu avô, a perguntar vezes sem conta quando chegava o bebé. Desse tempo da primeira infância, não me lembro dele, apenas de algumas histórias que a nossa mãe contava e que eram repetidos por outros elementos da família. Quando um dia saiu de casa e rumou à casa da avó materna, uma distância considerável e ele veloz, sem que o apanhassem; quando, sem saber bem como, ateou de labaredas o cabanal, cheio de palha seca para os animais, na eira dos nossos avós paternos e depois foi um susto; quando dormia dez horas seguidas em bebé, o que originava muitas comparações quando eu nasci, cinco anos depois e apenas dormia meia hora. No nosso clã familiar, o meu irmão era um menino doce, lindo e querido por todos, porque era simpático, atento, discreto e bonzinho. E bonito. Mantém ainda hoje alguns destes traços. 

Sendo mais velho, o meu irmão foi desde muito cedo o meu herói e a minha referência. O que não me impediu de ser mestra dele em algumas coisas importantes, que fazíamos por troca: eu ensinava-o a dançar e ele lia-me francês, quando ainda andava na primária. E assim era. Na nossa casa pequena, junto à secretária do meu pai, eu ria-me com os pés dele que eram de chumbo e não acompanhavam o ritmo da musica e ele pronunciava as palavras com uma sonoridade que me encantava e mostrava-me os monumentos de Paris. Sentia-me absolutamente estrangeira e crescida. Na adolescência, ofereceu-me um diário branco, com uma chave, certo que guardar segredos era um investimento fundamental para um crescimento mais intimo e protegido. O meu irmão sempre me protegeu e eu a ele.  

Sem dinheiro para lhe comprar prendas, ajudei-o na colagem das fotografias dos alunos, quando começou a dar aulas. E quando era preciso regar a horta e ele morria de sono de manhã. Deixava-o estar e adiantava-me na tarefa. Como já disse sempre fui uma rapariga de dormir pouco. Também vigiava alguns dos seus horários e obrigações e em alguns dias acordava-o para ele ir fazer, por exemplo, o exame. Aquele, o de matemática, que quase ia chegando atrasado.  E acompanhava o seu atletismo e as suas vitórias. Ficava orgulhosa por tanto talento. Era o meu irmão. 

Que fazia comigo o presépio no natal, que tinha livros de politica que eu lia, que tinha amigos que gostavam de mim, que era meigo, justo e bom. E absolutamente confiável. E honesto. A nossa mãe adorava-o e comigo fazia longas considerações sobre a sua vida. A publica, que o ausentava de si e ela, entre o orgulhosa e o moída de saudades. Do seu menino. A nossa mãe quando olhava para o meu irmão, os olhos sorriam de contentes e o coração dela melhorava da solidão. 

Hoje somos dois adultos, mas acho que continuamos com a mesma proteção e amor. Às vezes eu gostava de o ter mais presente nos meus dias, mas o meu irmão é uma pessoa ocupada. Mas eu sei e sinto que esteja ele onde estiver, está sempre comigo. E eu com ele. São muitos anos de amor, apoio e confidências  Agora parece que já não preciso de o ensinar a dançar e também já não tem exames de matemática para fazer. Mas em todas as suas provas de fundo, estarei sempre a vê-lo, atenta e vigilante, ainda que discreta. Eu sei e o meu irmão sabe que há muitas outras coisas que nos fizeram ser unha e carne. São nossas e são segredo.

Parabéns, mano!

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Paraíso

Fim de tarde sereno. 

O cansaço prende o corpo e a alma requer libelinhas em lagos de nenúfares, um chá quente em cima da mesa, dez dedos de conversa no café junto ao mar. Deixar o tempo correr por breves instantes, apenas o necessário para retomar a cadência do bater do coração em dias felizes. 

Se fosse possível, poderias vir para acertarmos algumas confidências que deixámos a meio e são o fermento do pão que alimentou os sonhos que sonhámos. Mas não virás. No sitio onde estás, as raparigas andam contentes a cuidar da terra e dos filhos, as cigarras cantam ao final da tarde e o sol despede-se todos os dias com uma cor forte e convidativa. 

Dá vontade de aí ficar, eu sei, os dias anunciam-se inteiros e sagrados, templos abertos para celebrar a vida, os amantes vivem em superfícies de azul, com garantia de amor eterno. 
As crianças correm felizes por florestas verdes e crescem desafogadamente, longe de quartéis e casas fechadas à brancura do tempo. Consigo vê-las e também tenho saudades. 

Por isso sei que não virás e apesar da tristeza, juro que compreendo. Como regressar de um tempo limpo, um calor morno e um céu aberto? 


domingo, 6 de outubro de 2013

Longe e perto

Ando com muitos meninos e meninas dentro de mim. Cheia dos seus risos, choros, abraços, zangas, palavras, silêncios. Emersa das suas obras e feitos, das suas conquistas e recuos, num movimento permanente de serem gente todos os dias. Em conjunto e cada um à sua maneira, o que implica sucessivas negociações, trocas de ideias, consensos, discordâncias. E assim ando, contente em certos dias, desconfortável, noutros, à procura da melhor parte de mim, vigiando a minha identidade, numa escola que há muito tempo que é escola. Chegada de novo, apenas estou eu e mais 19 meninos e meninas. Todos os outros já lá andavam, restantes crianças e adultos. Ando cheia deles e estupefacta com o mundo, a vida e a infância, que nunca pode ser conjugada no singular. Infâncias, será mais apropriado. Quando as são.

E estranho a cor do portão, a chave que não roda, os locais que não sei, as pedras da terra do chão, o toque da campainha, as entradas e as saídas. Estranho porque não conheço e vou conhecendo e estranho. São sempre assim os primeiros olhares e seria bom que os segundos e terceiros pudessem ser diferentes. Menos estranhos e mais amigos. Calorosos e enlaçados. Precisamos todos de nos sentirmos em "casa", quer dizer, de bem connosco e com os outros, pacificados e serenos, de pantufas calçadas, como sugeriram um dia, numa outra escola, umas quantas famílias para mostrarem o quanto se sentiam bem nesse espaço. Imagem interessante para revelar um ambiente acolhedor para todos. De resto, sabemos todos, que as escolas são as escolas e as casas são as casas. E é bom que sejam. Com caminhos amplos de relação franca e aberta entre elas, mas espaços diferenciados.

É por isso que sei que ando cheia de meninos e meninas mas que preciso de me libertar um pouco desse açambarcamento. Porque é disto que se trata. Para além das horas com eles, na sala, o pensamento sempre ocupado com as suas vidas, que agora se tornam "matéria" incontornável, largada ali no meio da sala e nós a ter que lhe pegar, sem saber que fio da meada reter na mão para apoiar um desenlace feliz.

E são tantas as meadas e tantas as infâncias, nesta escola de há muito tempo, que preciso de ficar menos cheia de meninos e meninas para construir um olhar mais liberto e novo, confiante e poderoso.

E depois então, já mais distanciada e serena, voltar a olhar de perto, com a distância emocional justa, que parece ser condição para uma relação pedagógica mais promissora da autonomia e desenvolvimento dos meninos e meninas. Só assim me poderei recolocar no lugar certo e redimensionar de novo a minha pessoa e as infâncias que à minha volta por mim reclamam cada dia.