segunda-feira, 27 de março de 2023

Saudade e cheiro(s)

Farias hoje anos, se cá estivesses. Muitos, mas nunca os suficientes ou de sobra para a nossa saudade. Gostava tanto de voltar a ver o teu sorriso, meio tímido e disfarçado, mas cheio de alegria, sempre que olhavas para nós.  Gostava que te sentasses de novo na cozinha, a beber o café com leite e a sacudir as migalhas do pão, para que tudo ficasse limpo e arrumado. E a levantar as cortinas da janela, a olhar para a rua, na procura inconfessada  de um braço de ria ou de um milheiral sacudido pelo vento. Porque gostavas de estar na nossa casa, mas tinhas saudades da tua.

E são saudades que hoje sinto, espalhadas pelo peito, meio tristes, meio conformadas. Saudades e cheiros. Da canela que punhas na aletria; dos grelos a cozerem na panela para acompanharem o bacalhau; da tua bata que vestias pela manha, um hábito que te ficou, de mulher de trabalho. Sinto saudades do cheiro do teu quarto, da tua agenda azul, da tua roupa e dos santinhos que guardavas junto a fotografias em envelopes. E das tuas mãos no terço. Sinto saudades da tua intimidade. 

E sinto saudades de me ouvires. Eu falava-te da minha vida, do trabalho, de projetos, dos nossos rapazes, de notícias (políticas, que gostavas) e do estado do mundo, e tu dialogavas, quase sempre com perguntas, indicadores inteligentes das tuas ideias e expectativas. E refutavas claro, sobretudo a minha ocupação como educadora, que dizias ser excessiva em horas diárias e preocupação a mais. Mas sei que te orgulhavas de mim. Tenho saudades desse orgulho e aprovação.

Mãe, agora já estou reformada e tenho muita pena que não me possas ver assim. Com tempo para arrumar as gavetas, olhar o céu azul e ler. Sei que irias de bom agrado para o sótão ajudar a arrumar os livros e pedaços da nossa vida que estão por lá, entre estantes, gavetas, fotos antigas e atuais. E havíamos de rir do ar dos rapazes em bebés, de ti nova e de mim, ainda menina. E conversaríamos sobre o corte de cabelo de então, com cheiro e tudo. E seria bom. E seria intimo. 

E cansadas de tanta arrumação, haveríamos de ir tomar café e ver os patos ao parque da paz. 

Tenho muitas saudades disso, mãe.


quarta-feira, 1 de março de 2023

(Re)tomar o caminho

Ontem à noite, foi uma noite boa. Ainda que de longe e em modo zoom, ouvi, pensei e aderi. Aderi por acreditar, por sentir, por saber que é mesmo assim que tem que ser. Nós, enquanto educadores e adultos responsáveis por grupos de crianças pequenas, sermos capazes de desenvolver "relacionamentos atenciosos, atitudes carinhosas, experiências positivas". Na conversa fluída e vagarosa a professora Teresa de Brito, desfiou ideias e histórias, perguntas e apelos, certezas e dúvidas, agitando as nossas convicções e práticas pedagógicas. Bebi sofregamente todas as ideias. Registo (apenas) algumas:

- Os adultos são capazes de pensar e refletir. Para isso é preciso parar, conseguir um "vagar interno", "procurar os sentidos para a nossa vida", observar as crianças, dar signficado aos seus comportamentos; 

- Na ação com as crianças, devo reconhecer e celebrar a singularidade e a individualidade. A importância de contemplar o ritmo de cada criança e de o respeitar. Para isso tenho de ter tempo e dar tempo. A nós e às crianças; 

- Falo bem a linguagem do desenvolvimento? O que é mesmo fundamental? O que para mim é inegociável?  Que autores e perspetivas me guiam e iluminam? Para que quero o conhecimento? Como o utilizo e amplio com as crianças?

- As crianças mais pequenas ensinam-nos a inclusão de uma forma extraordinária. Sejamos capazes de observar e dar signficado, sem pressa. Aprendamos com elas a empatia, o altruísmo; 

- Nós..."Somos nós e a nossa circunstância". É preciso compreender os ambientes que envolvem e condicionam as crianças. Antes de julgar as famílias, importa que saibamos olhar com sensibilidade, compreender a diversidade da(s) vida(s) e reconhecer que em muitos lugares (e lares) não há tempo livre, nem tempo para parar;  

- A avaliaçao faz parte da nossa vida. Os educadores fazem parte da avaliação, com a criança e a família. É um processo cooperado, que necessita de ser descrito e partilhado com uma linguagem sensível e positiva. O que cada um trás para a relação? O que é melhor para todos?  O que é preciso para viver hoje? 

A professora Ana Teresa falou de muitas outras coisas, de uma forma bonita, muito profunda e delicada. Da ética, da responsabilidade, do brincar (um direito, o 31º da CDC), da participação da criança, como garante da sua pertença ao mundo e condição de ser pessoa. E deu-nos sempre o enquadramento e a sustentação teórica para que possamos responder postitivamente à pergunta: "Falo bem a linguagem do desenvolvimento?"  

E eu que andava (e ando) meia cismada, a sentir-me seca de palavras e em silêncio, encantei-me e confirmei o desejo de continuar a aprender e a escrever. Um alerta para renovar este novo tempo que agora habito, em que me falta a "matéria prima", as crianças, com as suas falas, alegrias, desenhos, brincadeiras, choros, movimento, barulho. Para poder com elas e sobre elas pensar, apreciar e discorrer sobre a profissão. Um "vício" e uma paixão, alimentada e mantida durante muitos anos. Podemos continuar? 

Obrigada, professora Teresa.