domingo, 30 de março de 2014

De novo, a pedagogia, ao domingo

A chuva cai forte nesta primavera com sol desistente e uma paisagem de quase inverno. O vento sopra e a água cai contra as janelas e as telhas do sótão. Não fora o desejo de ver luz e sentir calor, diria que está um bom domingo para trabalhar, aqui no computador. E há que fazer, claro, há sempre muito para fazer.  Pensar a semana que se aproxima, dar-lhe um sentido pedagógico, incrementá-la da maior intencionalidade possivel. Aquela que melhor poderá servir as necessidades e caracteristicas das crianças, as reais, as que habitam o espaço e o tempo, naquela sala. 

Esta regra ou principio, muito valorizado e preconizado no léxico dos profissionais é dos mais dificeis de cumprir na prática. Apesar das tentativas da procura de estratégias que partam do curriculo natural da criança, do que ela é e já sabe, da sua história e modos de vida, com alguma facilidade escorregamos para os seus défices e planeamos, com convicção, atividades e situações que possam ensinar o que falta aprender. E também com alguma facilidade não respeitamos o ponto de partida e os ponto de chegada de cada criança, porque as metas, muitas vezes, se impõem ao processo e ao caminho realizado e a entidade grupo se apresenta mais real e mais presente que cada um dos elementos que o compoem. 
Identificar e atender às necessidades e carateristicas de cada criança e do grupo, coloca muitas vezes a profissionalidade do educador de infância em questão. 

Casa e família esboçou pacote vetor do DoodleO que faço aqui? é pergunta que nos atravessa em alguns dias, quando as propostas apresentadas não obtém os ganhos que imaginámos e a intencionalidade vira coisa sem sentido. Quando a atividade nobre planificada fica aquém do interesse dos nossos meninos, porque estes, apesar de teoricamente prontos para aqueles conteúdos, estão noutro ponto e com outras necessidades. 

E nós que as identificámos e bem, delas fazemos o acessório em vez do essencial. Por ignorância? não creio, sabemos o que dizemos, falta apenas, com convicção, colocar cada coisa no seu lugar e não ceder a pressões - escolares e sociais - do que é ensinar e aprender na educação de infância. Falta apenas, com lucidez, não ir na onda dos conteúdos curriculares, que se colam na ponta da lingua dos meninos, mas não em processos de aprendizagem efetiva. Falta apenas saber eleger como fundamental a resolução das birras, por exemplo, como uma componente central do currículo, tão importante - ou mais - do que a divisão silábica. 

E é isto que em muitos dias causa ambivalência na profissionalidade do educador. Ou melhor, na minha. Parece que não cumpro o que devo cumprir.

Exagero? talvez, na pedagogia como na vida, as situações não são apenas isto ou aquilo, mas revestem-se de multiplas caracteristicas, nada lineares, antes imbrincadas umas nas outras, com muitas ligações e contaminações positivas entre si. Quero eu dizer que na intervenção com as crianças não somamos ou dividimos em compartimentos estanques os conteúdos, antes tentamos mobilizá-los, a propósito da(s) história(s) que vamos contruindo na sala, com as crianças e para as crianças.  

Porque é então recorrente esta minha preocupação e hoje me assaltou mais uma vez, em dia de planificação? Porque o perigo de pensar o fazer pedagógico perfeito, correto, para além da realidade, é sempre uma tentação e uma afirmação da nossa representação como profissionais. 
 E eu quero-me o mais possivel lúcida e atenta. Ainda que muitas vezes, não nego, em contradição identitária. 

sábado, 29 de março de 2014

Pão com doce e birras

A cara linda e os olhos amendoados, o cabelo cheio de trancinhas e um riso feliz. Contente com  a escolha que fez das collants Manela, são de flores, ficam bem com a primavera, achou por bem que partihássemos o meu lanche, pão com doce, que acabou por comer sózinha, recostada na cadeira a dizer Hum, Hum, sabe bem, é gostosinho...

Olhei para ela, assim tranquila e sorri também. Vê-la assim era raro. Terminada a mudança da roupa, por ali ficámos um pouco mais, a trocar palavras e mimos, eu a responder às suas perguntas, ela a gostar de se ouvir a falar. Mais ninguém na sala. De repente, um pouco mais séria, disse:
- Eu tenho o monstro das birras e ele vem muitas vezes... 
- Eu sei - respondi - em alguns dias eu vejo. Seguiu-se um silêncio, com ela a olhar em frente e eu a dizer:
- E tu sabes-me dizer porque é que ele aparece tanto? 
- Sim, é porque os meninos olham para mim...não querem brincar comigo...não me deixam fazer as coisas...e eu choro...e bato... 
- Pois é, ele é forte e dificil de controlar, mas eu posso ajudar...quando sentires o monstro a chegar, avisas-me, corres para mim e eu dou-te um abraço, assim e vencemos esse monstro...
 - Está bem...agora já podemos ir embora, disse a menina a sorrir

E fomos. Já era tarde e eu há muito que terminara o meu tempo letivo. Mas ainda bem que tinha ficado na escola, porque apesar de já ter repetido esta ideia em muitos outros dias, nunca o tinha dito assim, em privado e exclusivo. Fora das horas oficiais da pedagogia. Quero acreditar que pode ter outro peso e outro valor.

Se a minha sugestão vai de imediato ser adotada? Não, eu sei, o que pode uma educadora, em horas contadas, contra a imensidão de quase 5 anos de vida? mas acredito que oferecer-se assim num fim de tarde, para apoiar a resolução de um problema identificado por quem o vive, pode ajudar a criar novos desafios e novos sentimentos.

Pelo cheiro do pão, o sabor do doce, o sentido da partilha, a intimidade da relação.
Sem pressa(s) e com todo o tempo do mundo...

quinta-feira, 27 de março de 2014

Saudade

Mãe
Acordei com o coração triste, um pouco apertado, a lembrar-me de ti e deste dia em que farias anos, caso cá estivesses. Meti-me no carro para a escola, conduzi devagar a olhar as nuvens escuras e a pensar que esta primavera, assim, sem sol e flores viçosas, não ajuda a temperar o frio que às vezes nos invade a pele. Nem as saudades, que como diz o poeta, são fé perdida. E são.

Sei que não voltas, nem é isso que importa, já estou grande e sei tomar conta de mim. Já falo como tu, a acreditar no que dizem os teus netos, quando por acaso vou buscar expressões que também usavas. Utilizo-as sem dar conta, mas sabem-me bem, instalo-me nelas e sinto-me filha de alguém. E é isso que de manha pensava enquanto ia para a escola, que me faz falta ser filha, porque me sinto meia desamparada e só tenho gente à minha frente. Ninguém atrás, para aconchegar o frio das costas ou como fazias quando era menina, que ias atacar-me a roupa na cama. Dizíamos assim, eu e o meu irmão e ficávamos deitados à espera das tuas mãos a prender a roupa contra o nosso corpo, para que não tivessemos frio de noite. Atacar, era encostar bem, prender, aconchegar. E era doce. Atacar não era coisa de guerra, era coisa de amor. Ritual diário e nunca esquecido.

Nunca foste mulher de dizer o amor em voz alta. O teu amor circulava nos cuidados que davas e na forma como me penteavas o cabelo e passavas os meus vestidos, fazias a comida e rias, quando um dia eu e o meu irmão decidimos mudar-te o rosto um pouco fechado, subindo para um banco da cozinha para te darmos um abraço. Fazias o almoço e os teus olhos ficaram muito bonitos, ainda que dissesses então, o que estão a fazer?  Lembro-me muito bem. 

Eras assim, sem dar golardão ou confiança em demasia, mas estavas sempre onde era suposto estares, a lutar por nós.
E nós éramos filhos e isso nos aquietava e protegia. Ter perdido essa condição, aproxima-nos mais do fim da ternura e do quente da roupa da cama. 

Quem nos ataca, agora, nestes dias em que o sol não nos aquece e tu já não estás cá? 
Hoje queria ser filha e dar-te um beijo de parabéns, mãe.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Colos

Neste fim de semana que passou não houve escrita. Pois não. Para além de trocas pedagógicas no sábado, um espécie de gripe e má disposição atacou-me de verdade, o que me fez recolher no sofá ao final da tarde, com chá e torradas. E sono, muito sono. Nos momentos de vigília, apesar das dores, o meu coração a disparar em muitas direções, que a vida nunca é una nem simples e a nossa capacidade de a gerir tem limites. E fracassos. Pensar com o coração nem sempre é bom, dizem, mas eu não tenho outra forma de o fazer. Eu e outros, creio, porque somos muito mais do que aprendemos, há muitos anos, na escola: cabeça. tronco e membros.  E o resto? está cá tudo e tudo é mobilizado quando pensamos. Integramente. 

Meia prostrada, mobilizei imagens e pequenas porções de vida, assim sem qualquer critério, iam e vinham conforme o sono deixava, e eu a atentar arranjar soluções ou outras formas de fazer. Vi as crianças na escola, os filhos em casa, o companheiro de sempre, amigas e colegas. Lembrei-me de coisas que tinha que fazer, outras por dizer e tomei nota daquelas que não valia a pena reter. Seria bom, mas mesmo bom, deitar fora. Mas eu sou uma rapariga de guardar afetos, de os deixar quase secar na imensidão do tempo, passam as estações e eles continuam, pesam que se fartam e eu sem coragem de lhes dar sumiço, como dizia a minha avó. 

A minha avó Carmina não apareceu nos momentos de vigília, mas agora que penso nisso, bem que precisava. O seu ar despachado e a prontidão com que rematava  uma ideia e a tornava decisão, seria um bom apoio nesta altura. Estão muitas coisas pendentes nos meus dias e eu a engonhar, outra expressão lá de cima e da minha infância. Se não fosse a minha avó, podia ser a minha prima.. 

Mulher decidida e frontal, olhos vivos de quem vê ao longe, apoio contagiante e sempre presente, quando eu era mais nova, ficávamos na cozinha da casa dela a beber café com leite e a conversar sobre a vida. Ou então, ainda mais novas, a cantar canções ao luar ou a ver a patinagem artística, com os miúdos - que já são graúdos - a tentar dormir nos cobertores, que punham no chão da sala mesmo ao pé de nós. E nós, sem sono e muito empenho, a retocar as formas de sermos gente, numa terra de barcos, moliço e muita tradição. Nós a inventar mundos, com alegria e partilha. Tenho saudades disso e da força da minha prima. E do riso. E da juventude. 

E já agora, saudades de, quando danada, se virava para os filhos e o companheiro e dizia cheia de energia até vozengulo. Não traduzo, é uma expressão só dela, que todos lá em casa sabem o que quer dizer e eu também. Já nos rímos muito, a propósito disto...
Preciso de ir a Aveiro, para pôr a escrita em dia. Sei que há por lá café com leite e o acolhimento de sempre. 
É disso que estou a precisar para dar sumiço a imagens das vigílias do fim de semana.


domingo, 16 de março de 2014

Lavar os olhos e a alma

Ontem foi dia de formação no Alentejo, partilha e reflexão sobre o trabalho com famílias, numa instituição que tem no recreio limoeiros e laranjeiras. E gente simpática e acolhedora. Foi um dia intenso, sete horas a dizer de mim e da prática pedagógica e a ouvir colegas, tentando pensar bem sobre as estratégias para envolver no contexto educativo aqueles que são o primeiro espaço de referência das crianças. Coisas difíceis, já se vê, mas fundamentais na nossa profissão. 

O regresso a casa aconteceu pelo cair da tarde, ao som do Abrunhosa e Rui Veloso. Lavei os olhos e a alma, com as planícies a desfilarem ao meu lado, verdes e profundas, as árvores recortadas na paisagem, os tufos de mimosas, o rosmaninho, o céu a perder de vista, o sol, redondo e laranja, lindo de morrer, a esconder-se na linha do horizonte, a queimar, um fogo intenso, ali mesmo ao pé de mim. Forte, um laranja forte. E o silêncio. O silêncio da tarde, pássaros a voarem e eu a pensar na riqueza do nosso património, da nossa terra, da nossa identidade.

E o cansaço instalado no corpo e na mente, por sete horas de interação, escolha de palavras, desocultação dos sentidos da pedagogia, esfumou-se como por milagre e fiquei cheia de silêncio, harmonia e tranquilidade. 

Não sei avaliar exatamente o que ficou do que disse e do que ofereci, em forma de imagens, palavras e desafios, mas sei definitivamente o que em mim permanece: um dia carregado de trocas pedagógicas, reflexão com e contra a experiência, para a tornar mais inovadora e animada por princípios e práticas cooperadas. 

Um dia que terminou com cheiros e paisagens que vão alimentar a semana, em casa e na escola. Bonito Alentejo. 

quinta-feira, 13 de março de 2014

Dia do pai? eu não tenho...

Cantávamos, com alegria - e isso nem sempre acontece - uma canção sobre o pai, para "oferecer" aos pais no dia 19. De repente, um menino, muito em silêncio, começou a chorar e parei, alertada pelas crianças. Quando o chamei para ao pé de mim e lhe perguntei o que tinha, o choro fico mais alto, misturado com soluços. Agarrou-se a mim, meteu a cara contra o meu peito e quando conseguiu, disse: eu não tenho pai Abracei-o e quase que me ouvi dizer mas isso não tem importância, pronto, não chores..."ainda bem que não disse, teria sido leviandade, claro que tem uma importância enorme, que em muitos dias deve invadir o coração deste menino - e de outros -  e escurecê-lo de tristeza e desassossego. 

Abracei-o e repeti o que já tínhamos conversado de manhã que há meninos e meninas que não vivem com o pai, mas todos têm um pai - ou tiveram. E nesse momento, demos voz e vez aos que estão nessa situação, para partilhar o que quisessem com os amigos. Com as palavras que puderam, os meninos e meninas contaram o que sentiam e o que lhes dizem para contar e sentir. Entre pais emigrados em diferentes países, que fazem visitas de vez em quando e outros perdidos na nossa terra, mas que nunca aparecem, as crianças lá foram falando e nós seriamente convencidas de estar a dar a oportunidade de incluir todas as realidades familiares presentes. 

Não está mal, será eventualmente o mínimo a fazer, mas depois, meias levadas na onda da comemoração, aí vamos nós, cantar, desenhar, fazer uma prenda, fazer convites...para um doce e um mimo a viver na sala, no dia 19. 

Se só falamos dos pais? Não, acontecem muitas outras coisas na sala, mas não há dúvida que o pai está presente e é uma figura "trabalhada". E quem não a tem, de facto? sim, é certo, pode dar a prenda a outra pessoa, mas não impede que sinta saudades e tristeza de não a dar ao pai. De tanto se falar no pai, as crianças que não o têm, sentem-se menos acompanhadas e algumas...choram. 
As que o conseguem fazer. 

Desde ontem que ando a remoer esta questão que não é nova e para a qual estamos há muito sensibilizadas. Estaremos de facto? Não vestimos com facilidade o papel de arautos da maioria e das famílias tipo? Espero bem que não cheguemos à defesa tola, ainda que disfarçada, de que o normal é termos um pai e uma mãe e que apenas assim seremos felizes. 
Não é que isso seja completamente mentira, na nossa organização social. Mas cumpre-nos um outro desígnio de trabalhar contra a corrente e construir alternativas e oportunidades para os que ao nascer noutras famílias e realidades, possam encarar a vida e o futuro com igual segurança e amor. 

Não sei como, mas inventem-se novos dias do pai. A pedagogia não pode ficar indiferente a esta questão e eu também não. 
Já nem me apetece cantar a canção...

segunda-feira, 10 de março de 2014

A alegria do sol

Fim de tarde com sol cor de laranja, temperatura amena, um ar de primavera. Os meninos a correrem no recreio, contentes com o sol e a ausência da chuva e do frio. Muita areia, pedras e paus, mapas de tesouros que fazem à pressa, porque a vontade mesmo é descobrir princesas e príncipes e baús de moedas. E também bichinhos e também ideias. 

Tudo com muita alegria e confusão, as caras vermelhas de tanto correr, os itinerários interrompidos para a partilha dos achados. Irrompem sala dentro, atropelando-se, brigando até, para ver quem é o primeiro a ter atenção dos grandes. Os grandes somos nós, que observamos com satisfação a alegria dos meninos e a luz do sol a entrar pelas janelas e a perder-se na copa das árvores que povoam o recreio. Está eleito o espaço por excelência deste tempo, morriam de saudades de o explorar por inteiro e sem restrições, e eis que nos últimos dias, assim tem sido. 

Menos conflituosos e mais serenos os meninos e meninas da nossa sala? nem por isso, continuam a chorar por coisas de nada, que sabemos ser coisas de tudo...continuam a querer ser os primeiros e empurram, sem pedir licença...continuam a zangar-se porque algum amigo olha para eles...continuam a querer ter, no imediato, e se assim não é, fazem birra...  

Mas estão mais felizes com o sol e a rua. Envolvem-se em brincadeiras de wings, cães com trela, gormittis, caça ao tesouro, registos de mapas que fazem uns para os outros...e discutem a amizade, temem ficar sós, emprestam e partilham, dão e retiram. Para voltar a dar, porque experimentam, com todo o seu corpo e emoção, o prazer e a dificuldade de viver em grupo e aceitar cada um. 

E é difícil, nós sabemos. Em alguns lugares e comunidades, ainda mais. Aprender o sentido do(s) outro(s) exige disponibilidade e segurança e uma cultura de desprendimento de si, que se cultiva e se adquire quando as necessidades individuais estão garantidas. Quando se suprime a dor e o sentimento de mal amado. E quando há pão sobre a mesa. 

Por isso este sol e este calor é uma bênção em forma de oportunidade(s): a possibilidade de correr, brincar, mexer na areia, brincar com paus, descobrir  bichos de conta, aranhas...e tesouros. 

Porque se sentem príncipes e princesas? Quero acreditar que sim. Um pouco de realeza nesta infância só faz bem. 
   

sábado, 8 de março de 2014

Dia da mulher

Lembro-me de muitos rostos de mulheres, sobretudo da minha infância, por terras de Aveiro. Guardo-lhes o riso e a resolução, a fibra e a resistência, o canto e a oração. Entre a casa e a rua, serenas ou inquietas, faziam-se aos dias em múltiplas obrigações, alguns prazeres e muitos mistérios. Assim o entendia, quando pelo cair da noite, as via deslizar pela casa, em rezas de proteção e promessas para os seus. Pareciam anjos em forma de gente, com mãos de fadas e coração atento, a compor roupas ou a preparar a sopa para o dia a seguir à madrugada. 

Às vezes viravam leoas em dias de guerra velada, quando o destino rompia para malfadar a sua prole, vizinhos incluídos, porque as mulheres da minha infância reinavam em comunidades de porta aberta, com laços de bem querer a outros, que não só os de sangue.

Interpunham-se vigilantes, entre o passado e o futuro, para manter a firmeza e a segurança do presente. Vi-as sempre de candeia acesa, a iluminar os caminhos e a comandar a sorte. 

Quando choravam, sentia o meu mundo a tremer, porque me inquietava que perdessem o seu poder de revelar e aperfeiçoar mundos. O tempo mostrou-me que a sua fragilidade andava de braço dado com a coragem e que ambas se suportavam na construção da vida.   

Aprendi com elas tudo o que de melhor tenho. Sobretudo a capacidade de amar e a vontade de não desistir. 

Aqui fica a minha homenagem. 


terça-feira, 4 de março de 2014

Ontem como hoje, o amor

Ignoro a necessidade de arrumar o meu sótão, já iniciei a tarefa, mas por agora vou-lhe dar tréguas, continuo logo mais tarde, por certo os livros e demais objetos fora do lugar não se se importam. A minha mãe utilizava muito esta expressão, quando lhe perguntávamos se gostava de alguma coisa, nomeadamente comida. Mãe gosta de arroz? e ela não me importo. Toda a gente se ria com a expressão, no inicio os rapazes tentaram perceber o que significava e depois de compreender, começámos a utilizá-la em jeito de brincadeira e ternura. Era uma maneira gentil de dizer que não gostava, ou que gostava pouco, mas que comia. Conformava-se, digamos assim.  

A minha mãe...hoje lembrei-me dela no meio das minhas arrumações e das conversas silenciosas com os meus botões. Da sua presença e da sua relação com o amor, entre um homem e uma mulher, uma coisa que em meninos e na minha idade, falávamos pouco em família. Vivíamos (ou não) o amor, percepcionávamos (ou não) a sua presença, mas não se teciam considerações em seu redor. Não era coisa para se tecer ideias ou sentimentos, era coisa presente, ausente ou escondida. Ou ainda tacitamente ignorada.
Mas creio que nessa altura, como agora, as mulheres, ainda que secretamente, sobre ele e a propósito dele, experimentavam desejos, angustias, saudades, penas e mistérios. E paixão. No seu coração e sem dizer a ninguém. Hoje podemos com mais facilidade, sentarmos-nos à mesa, com um bom copo de vinho ou um café quente e sobre o amor, compor ideias, partilhar emoções, questionar verdades, vislumbrar destinos, acertar agulhas. Rir ou chorar. Em modo feminino. 

Foi isto que aconteceu com uma amiga do peito. Daquelas que já dissemos tudo, sem medo, porque a censura não existe e a partilha dos caminhos é benéfica e faz bem. E porque nos entendemos na sensibilidade com que olhamos a vida e as relações amorosas.
Falar em voz alta é uma forma de (re)pensar a vida e (re)pensarmos-nos. Em companhia. Não como exercício intelectual ou filosófico, mas como pessoas procurantes de um presente e auditores atentos de futuros. Os nossos. Estar em companhia é vencer o medo, contornar as duvidas, desafiar a juventude, manter o sonho. Resistir à conformidade. 

Eu e a minha amiga, falámos de liberdade, de paixão, hábito(s), autonomia, amores maiores, saudades e compromisso, famílias e filhos, desejo, sonhos e príncipes encantados. E destinos.
E não, não somos adolescentes, somos mulheres já muito maduras, que ainda se espantam com a vida e o amor e que não querem perder o direito ao sonho e à liberdade. E resistir a poder dizer, distraídas ou conformadas, ah, eu não me importo, que sendo uma forma de dizer não gosto, não é suficientemente clara e inequívoca. 

Foi isto que pensei enquanto iniciava o arrumar do sótão e convoquei a minha mãe até junto de mim. Gostava de ter tido oportunidade de, sobre este assunto, conversar um pouco mais com ela.
Por certo, agora, seria bem mais fácil que em adolescente, ainda que não tão livre e escancarado como o que falei com a minha amiga. 
Mas isso percebe-se.  

segunda-feira, 3 de março de 2014

A propósito de blogs

De vez em quando espreito outros blogs e há imensos e espantosos. Com textos e imagens e ideias e escritas lindas e comoventes e desafiadoras. Fico encantada com o mundo e a possibilidade das palavras que saem de tantas mãos e corações, numa partilha à escala do mundo. Revejo-me em muitos deles, comungo de ideias e perspetivas, relativizo sentimentos, dou larga às emoções, aprendo, interrogo-me, espanto-me e delicio-me. E vezes sem conta penso na frase que já aqui escrevi que aquilo que há de mais individual é também o que há de mais universal. Que bom que haja tantas pessoas bonitas na terra, que se alegram e entristecem por coisas semelhantes.  

Para além dos conteúdos, também observo formas, cores, imagens...a estética dos blogs, coisa que cada vez mais, não é deixada ao acaso.  E dou por mim a pensar que o meu, o andar aos dias, é formal e pouco atrativo. E que deve cansar a quem o lê. Porque escrevo nele como se escrevesse num caderno, em posts grandes e densos, quase sempre da mesma forma, apesar da relativa diversidade dos temas escritos. 
Questão de identidade? Pois não sei, sei que adaptei o blog à minha forma de ser e sentir e como me enredo em muitas histórias longas, com pensamentos que consomem os dias e as noites, faço testamentos enormes, como se escrevesse num livro. Mas um blog não é um livro. Eu sei.

Às vezes acho que gostaria de ser mais moderna e ter um blog mais dinâmico e interativo. A sério. É uma ideia que surge, mas que rapidamente desaparece, sem ter consequências. Não sei se isto está ligado à idade, 56 anos são exatamente isso, cresci sem teconologia e com instrumentos próximos, sempre à mão, papel, lápis, caneta e folhas. E relações cara a cara, na hora e ao vivo. 

Não tenho apetência para grandes mudanças neste domínio e não me parece que me vá apetecer perder tempo com aquilo que não domino e me afasta do essencial, que é o amor que tenho à escrita. Longa.   

Será que isso é um contratempo para quem me lê? 


sábado, 1 de março de 2014

Inspiração

Falaram-lhe que sim, que era possível, bastava abrir o coração e escutar alguns dialetos de ternura. Disseram-lhe que não desesperasse, as palavras não fogem de repente nem a vontade de vislumbrar milagres em dias de rotinas cansadas. Segredaram-lhe algumas mezinhas, coisas que já tinham provado serem infalíveis, lenços atados dentro de gavetas, cordéis à volta de mesas, orações em altares inventados, mas a mulher a tudo virou o rosto e disse não. Sentia o frio do silêncio nas madrugadas sem sono e descobrira, com surpresa, o papel em branco, onde antes tinha desenhado letras e frases de amor, com caligrafia cuidada. Não se atreveu a partilhar tal descoberta, por certo a incluiriam em mais um devaneio. E não queria, perdida já se sentia. 

Largou tudo o que tinha, amizades antigas e recentes, anéis e brincos de trazer em dia de festa, papéis e livros de renovar ânimos, o quente da manta e as pantufas dos dias cinzentos e partiu. Não deixou recado, não saberia como dizer ao que queria ir. Mas foi.

Uma força pequena mas urgente levou-a a fazer caminho, rua atrás de rua, beco trás de beco, silvas e ervas daninhas, muros caídos e casas com redes à porta, até avistar o mar.
Cansada sentou-se na areia, no ponto mais alto das dunas que ali estavam a aguardar as marés. E assim esteve durante um tempo que pareceram dias, avistando o rebentar das ondas, o voo das gaivotas em terra, a brisa do vento a despentear os cabelos, a areia a cobrir o regaço, o vestido a fazer de toalha.  

E assim ficou, mão sobre o coração para o sentir bater, a olhar o teto do mundo, um céu azul de pintor dedicado. Tanto céu e tanto mar, tanto silêncio de gente e tanta presença de vida. A essencial, pensou, a mais despida de ornamentações, a mais nua e crua, límpida e bela, ainda que fria e cortante em dias de inverno.

Ali ficou, sem nada que a distraísse, frente a frente com a sua circunstância, a ouvi-la e a tentar entendê-la. E foi assim que pôde regressar ao seu lugar, cheia de si e das palavras que sentira arredadas de si, no meio da cidade onde vive.

Quando lhe perguntaram por onde tinha andado, não respondeu, certa de que não saberia falar condignamente do vento que sopra do norte, em praias de dunas desertas e caso se saiba escutar, arrasta-nos para a certeza das palavras que nos definem.