quinta-feira, 31 de julho de 2014

Contar a vida


Fomos vê-la.
Estava sorridente, apesar de mais magra e com um pouco mais de rugas. No quarto espaçoso habitavam com ela muitas fotografias, livros, revistas, uma rosa vermelha, vestidos e sapatos, cremes e outras coisas femininas. Da sua vida e da sua condição. Apesar da idade, mantém uma vivacidade positiva que a faz cuidar de si e do ambiente com zelo e dedicação. Apressou-se a explicar o que tinha como relíquias, quem estava nas fotos, pai, mãe, filhos, netos, marido, amigas, mostrou-nos os artigos do jornal onde escreve, desde logo o texto de despedida ao filho que partiu antes dela, emocionou-se e envelheceu um pouco mais, olhos tristes e rosto mirrado pela dor, que espantou a seguir, mudando de tema e fazendo graça com uma coisa de nada que vinha a propósito e ficava bem. Uma espécie de resignação corajosa, sem apagar a memória, que mantém viva, atual e bem arrumada por datas, lugares e afetos.

Como Manter as Violetas Floridas Por Mais TempoDepois fomos almoçar, convidaram-nos para o fazer junto dela e assim foi, entre memórias de juventude, viagens, festas, trabalho, alegrias e desgostos. Tudo com calma, algumas lágrimas, riso, muita lucidez, simpatia e dignidade. Sem esquecer como estava e onde estava, sempre a vida a marcar-lhe os dias e as visitas, hoje nós, amanha outros, ao fim de semana sempre a casa e a companhia da filha, com a qual teceu a infância e hoje tece a longevidade. 

Despedimo-nos. Beijos e abraços, a promessa de voltar, o nome de uma flor e mulher, Violeta, atenta ao mundo de hoje, disposta sempre a contar a vida de ontem e a viver a vida de hoje. E assim faz os seus dias, lendo Agustina Bessa Luís, ouvindo a informação diária, perdendo-se no tanto que teve, viajou e amou. 

E isso a alimenta e isso a faz resistir. Com um sorriso bonito, uma presença agradável, uma solidão que enxota e não quer por companhia. 
Também não a vi por lá, o quarto está cheio de gente e de memórias, a casa com muitas histórias e pessoas a morar.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Teimosia

Tu querias da vida a nudez perfeita. Para poder tocar-lhe todos os dias e todos os dias sentires o essencial. Apenas o essencial. Unicamente o essencial. Veias, raízes, respiração, cadência e regularidade. E beleza. Se assim fosse, pensavas, ganhavas tempo e sabedoria, circulavas nos dias sem precaução, o que te era dado viver era absoluto e real. E belo. E necessário. E certo e justo. Sem dilemas.

Tu querias da vida apagar-lhe o vento do norte que carrega maus presságios em dias de inverno e colocam os homens em alerta. Não gostas de meteorologias instáveis, transformam a perfeição da paisagem em pedaços rasgados, longe do fio de prumo que tece a verticalidade.

588px-Klimt_bauerngarten.jpgQuerias da vida a nudez perfeita, para ires direito aos seus indícios mais primitivos, únicos, totais, a justificar um investimento com retorno. Não estás na vida para condescender nem apertar a mão em jeito de compadrio. És contra alianças sem utopia.

Quem olha para ti, sabe que andaste anos a fio à procura dessa nudez. Quase  minimalista, quase etérea, quase inexistente. Mas um sonho esculpido no teu coração frágil, reclama sinais claros de poisos sossegados, para ficares em silêncio a olhar a perfeição das formas e das cores dos dias perfeitos.
Sagrados, costumas dizer, sem que ninguém perceba onde queres chegar. Mas tu sabes.

sábado, 26 de julho de 2014

Arrumações e saudade

Já cá faltavam as clássicas arrumações de verão. Não que delas sinta falta, estou cheia de preguiça e moleza, mas impõem-se algumas obrigações neste tempo livre, e arrumar é uma delas. Para reordenar e limpar a acumulação de um ano de lufa lufa e corre corre. Por isso estas arrumações são feitas em modo de câmara lenta, um pouco ao sabor da disposição, sem perder o objetivo final: tornar a casa e alguns dos seus espaços mais livres de acumulações sem jeito. Inúteis. Tenho sempre dificuldade em dar este estatuto a muitas coisas que tenho. Guardo papéis rabiscados, desenhos antigos de crianças meio amarelados, postais, canetas, marcadores de livros, pequenos objetos que têm uma história e quando os ponho num saco decidida a deitá-los fora, perco-me a olhar para eles e muitos regressam ao seu local original. Aborreço-me com esta caracteristica, mas é assim. Prendo-me a pessoas e por isso não gosto de mandar fora alguns dos seus vestígios na minha vida. Ainda que depois tenha um trabalho danado em limpar pó e conservá-los.

http://quadrosdecorativos.net/wp-content/plugins/php-image-cache/image.php?path=/wp-content/uploads/2013/12/23.jpgMas a antiguidade de alguns objetos dão corpo às rugas que tenho, às escritas que faço, aos caminhos que palmilhei. Dão corpo ainda à memória e ao coração, esse músculo incansável com estranha forma de vida. E estando sempre a bater, alegra-se e bate mais contente sempre que dá de caras com coisas lindas e belas. Hoje foi uma fotografia dos meus rapazes, o mais velho com um sorriso lindo, doce e brilhante, a segurar o mais novo ao colo, com a cara em gargalhada, exuberante e ruidoso. Como sempre foram e ainda hoje se manifestam: um mais discreto e reservado, outro mais atrevido e visivel.
Os dois, amores da minha vida, alegria dos dias cansados, desafio das noites de cisma, quando as preocupações ensombravam a chegada da madrugada. Os dois, traves mestras da minha esperança, quando a minha mãe partiu e não havia forma de secar as lágrimas e aguentar a dor profunda no peito. Já grandes, no meio das suas lágrimas pela partida da avó, souberam-me dar colo, abraços e palavras reconfortantes. Eles e a avó, uma lição de afeto que guardo em mim, risos e segredos, conversas tontas de netos, preocupações doces de avó. A casa cheia deles, entre partilhas e concordâncias, recusas e discussões, tudo à conta na vida, que o amor também tem dias menos calmos e marés de confronto.  

Olho para a fotografia, vejo-os meninos, penso na minha mãe. Gostava de os ter juntos de novo, como gostava. Ficar com a casa cheia de palavras e movimento, uns a entrarem e outros a sairem e a avó, de olhos curiosos e brilhantes, a apreciar e a opiniar sobre tanto vai e vem. Mas tudo vivo e acutilante, dialógico e familiar. Não será possivel este meu desejo, eu sei. 
Arrumo de novo as fotografias e ponho a avó junto dos netos. Assim é que está certo. Para mim e para esta saudade que saltou, no meio das arrumações e de uma fotografia. 
Hoje, sábado, no dia dos avós, dizem.


quinta-feira, 24 de julho de 2014

Uma fotografia bela

Olhamos para a fotografia e emocionamo-nos. Pelo menos eu. A mulher, nova ainda, com o rosto a olhar para nós, bonita, cabelo liso, olhos grandes castanhos, segura um bebé junto ao seu peito, delicada e suavemente, aconchegando-o com os braços e as mãos, numa espécie de concha protetora. O bebé, muito pequeno, encosta-se nesse peito, olhos fechados, boca linda, cara de mimo e encanto, parece que dorme, mas sobretudo aninha-se porque aquele colo é de amor e cheiro doce. O bebé sabe, sem saber dizê-lo, que aquele colo já abraçou a sua mãe e por isso tem raízes longas, é seguro e confiável, já deu provas de amor incondicional.  

bebe a dormirOlhamos para a fotografia e é bela. Um retrato de uma avó, jovem, a quem chamo menina francesa, pelo seu porte, sempre digno e aprumado, meio juvenil, que vai bem com as suas ideias e leituras sobre a vida e o mundo.
É uma avó que acalentou este gesto e que fala dele a sorrir, confirmando Sim, é uma bonita fotografia, permitindo-se elogios e reconhecimento, ela que anda de braço dado com a descrição e o recato. Uma espécie de segundo plano que encontrou no seu trajeto e que a protege dos holofotes da primeira fila. Não que se recuse a dar o peito às marés do tempo que vive, mas mulher experimentada, insiste em não comandar navios, preferindo permanecer em terra a cuidar dos que ficam e a espiar o tempo das tempestades e ventos fortes. Em guarda. Solidariamente.

Esta menina francesa, mulher pesquisadora de mundos e enredos, está agora sob as luzes de um novo afeto. Segreda-me sim o meu neto...é o meu neto, sim... e os olhos brilham e o riso fica contente e as palavras silenciam-se pelo tanto que é ser avó. Uma renovação e um mistério, uma paixão.

E eu, que com ela privei, fico em silêncio a saborear o seu encanto e a sua nova missão. Vai desempenhá-la com as qualidades que tem, feitas de cuidado, afeto, inteligência, entusiasmo, sentido de si e dos outros. No meio, principio e fim, olhará para o seu neto e amá-lo-á todos os dias com a firmeza e a doçura que mostra na fotografia. Muito bela.
Parabéns, menina francesa. Muita sorte e sonho para esse menino neto. Lindo.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Diário de férias

Instala-se um novo dia. Veio de mansinho, pela madrugada, fez-se anunciar por um sol envergonhado e um vento de afagar pássaros livres. Penetrou na vida dos homens e ofereceu-se para todas as coisas, aquelas que se querem e outras que se dispensam. Mas os dias são assim, uma convocação diária sem seguro contra todos os riscos.

E agora o dia está por aqui, aliado ao silêncio da casa vazia e dos meus desejos cansados. Posso dormir e voltar a acordar, será um dia morno e uma proposta talvez certa e justa para iniciar férias. Por agora.

Mas o sono fugiu, comportou-se como em dia de trabalho, olhos bem abertos logo pela manha, mala ao ombro e toca a andar. A andar? Toca a andar? não, hoje não vamos receber meninos e meninas, nem  abraços e risos, não fazemos plano do dia, nem pinturas em folhas brancas tingidas de cores e traços da infância.

Hoje o dia está por aqui, meio pacato e algo estranho, ainda se ouve o som do relógio, mas já não se cumprem rotinas ou acertam jornadas, hoje o dia preguiça e eu com ele também.
Olha-se o céu e o verde das árvores e sente-se um pouco da insustentável leveza do ser. Hoje, começaram as fériais e o dia apresentou-se assim. 
Sem tirar nem pôr. Apenas assim. 

domingo, 20 de julho de 2014

Comunicação

Vou fazer uma comunicação, hoje, aqui, depois do congresso terminar, ainda que já não haja publico para partilhar o tanto que aprendi, pensei e confirmei. Não fiz comunicação no congresso, não saberia como eleger o fundamental de um ano tão carregado de sentidos dificieis para o ato de ensinar e aprender. Não me propus, por medo, resumir em pouco tempo, o longo tempo de uma comunidade educativa que apenas agora começa a ter esteira e lugar para se entender e comunicar. Às vezes é preciso deixar de molho e a levedar o fermento da massa que há-de ser pão para toda a gente. Assim se espera. 

Vou fazer uma comunicação. Tenho que abordar, o que marca, o que define, o que impulsiona e liberta numa escola que não pode ser fábrica, prisão ou casa ao serviço da ideologia dominante. Aquela que nos manda obedecer, reproduzir, decorar, anuir, aceitar, condescender...em nome da ordem, da moral e dos bons costumes. Começo pela divulgação dos produtos culturais, confirmando que a escola é uma espaço de (re)construção de saberes, contextualizados na vida, história, cultura de crianças e adultos de uma comunidade, de um país, do mundo. Estava lá tudo isto, espalhado por corredores e escadas de madeira, cravos, tapeçaria, textos do 25 de abril, animais gigantes pintados por meninos e meninas artistas, estudos sobre pintores e recriação dos seus quadros, Miró, José de Guimarães, Paul Klee... livros de histórias e projetos, as formigas, o sistema solar, os bebés, os sons do corpo... muitos projetos, muita arte e muitos afetos, como condição para pensar, apreender e mudar o mundo, aquele que rodeia os meninos e meninas e outros, mais distantes, que sonham e têm o direito a conhecer, através de uma participação direta e efetiva. Como atores da sua própria aprendizagem. As produções, algumas muito belas, para mostar que aprender pode ser uma forma de expressão de cem linguagens e não apenas a oficial, a que emana do poder central e de compêndios e manuais pobres.    

Reforço escolar nas escolas,  ajudam alunos a driblarem reprovação Vou fazer uma comunicação. Agora detenho-me nas comunicações de muitos educadores e professores, que em resistência, partilham os seus percursos de trabalho com os alunos, mais pequenos e mais crescidos, o tamanho e a idade não são critérios de exclusão da pedagogia, o lema e a convicção é que todos podem e devem ser pertença de uma comunidade de aprendizagem. Muitos temas e muita paixão, seriedade e luta, em histórias de diários, lista de projetos, quero mostrar, contar e escrever, planos do dia, mapa de atividades, instrumentos reguladores da vida dos grupos, livros e projetos, contrastes, matemática e literacia, ciências e escrita. O curriculo permanentemente desocultado e tornado coisa conhecida, partilhada e negociada. Os processos dialógicos como a única forma possivel de se viver na escola, de ser-se aluno e professor. A negociação como condição de uma democracia participativa.

Vou fazer uma comunicação. Tenho agora que terminar,  já não tenho mais tempo nem mais engenho e arte, foi pouco o que partilhei sobre três dias de formação e divulgação de um movimento de professores atentos, implicados, mediadores dos processos de aprendizagem significativa, socialmente util e pessoalmente gratificante. Sem dificuldades? não, quase sempre em contra corrente, a criatividade e a liberdade, o trabalho negociado e discutido não se apresentam como dados naturais num quotidiano fortemente contaminado pelas regras do poder, do saber hierárquico, do individualismo, do sucesso apenas para alguns. Sem dificuldades? não, estes educadores e professores sabem da vigilância permanente que colocam no fazer pedagógico, para que as rasteiras da prática não os façam cair em tentação. Os professores sabem da força para estarem sempre alerta, atentos, a distração é a pior das armadilhas do quotidiano escolar. 

Termino esta comunicação. Sem imagens, powerpoints ou registos de falas dos atores da escola. Ficou lá tudo e está ainda tudo dentro de mim. Agradeço a todos os que mais uma vez me alimentaram a convicção e a capacidade para resistir. 
Para reafirmar, em tempos dificies que a escola é um lugar de construção de saberes de emancipação, não de opressão. E isso nos tempos que correm é para tornar realidade. Em nome de uma cultura de direitos e cidadania e da construção da democracia. À séria.  
  

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Alianças

Caminhamos a passos largos para o fim das tarefas profissionais. As ondas do mar já me molham os pés e o sol já bate no corpo, aquecendo-o. Acordar sem o toque do relógio e preguiçar no pequeno almoço, com tempo, cereais e fruta. Depois andar por onde se quer, sem pedaços de preocupações atrás, o caminho livre de entraves, passear pelas ruas como quem corre no campo. Os gestos lentos e o sorriso aberto. E o tempo sem dono, apenas por nossa conta.
Não vai ser necessário regatear nem suspirar por dias amplos, eles vão chegar. Limpos de aborrecimentos e compromissos, a não ser as esperas para encontrar o melhor mar e nele nos perdermos. Vai haver gotas de água na cara e bocados de areia nos calções e chinelos esquecidos no fundo do corredor, à espera de outra saída. Muita rua e pouca casa, apenas a necessária para dormir e descansar.

E escrever. Muito. Longa e lentamente, espraiar-me na minha escrita como quem mata a sede, brincar com as ideias, deixá-las pousar como unica ocupação, dar-lhe honras de primeira necessidade. Assim vai ser, e já não falta muito. Até lá, afinco nas outras escritas, aquelas que registam as memórias e os trajetos da vida vivida com as crianças. E com isso, deixar morrer o cansaço e recuperar a compustura de educadora serena.

O tempo que aí vem vai ser um bom aliado. Disso não tenho dúvidas.

domingo, 13 de julho de 2014

Nem contigo, nem sem ti

Um fio de água a correr por dentro e lágrimas jorrando por fora, doi mais o que não se vê do que aquilo que está visivel. Ela já sabia, mas manteve-se fiel ao silêncio instalado, proteção preciosa dos eventos menos coloridos da vida. Apenas não cumpriu os votos de ficar recolhida, resguardada das tentações dos dias, sabia-se com natureza arrojada e nunca vencida, ao nascer tinham-lhe rogado bem quereres e boas aventuranças. Por isso, desde menina, consumia-a um sem número de sonhos inquietos, trazia-os no bolso ou na carteira, sempre à mão de semear e eleger como tarefa primeira. E era assim que era declarada incompetente para as obrigações diárias, esquecia-se vezes sem conta de fazer o que tinha que ser feito, a tivialidade dos dias não se increvia na sua agenda de compromissos.

Alguns, perplexos com o seu modo de tecer as horas e o futuro, pediam para consultar o que tinha escrito, mas cansavam-se com o decifrar dos apontamentos, palavras novas com desenhos à mistura, uma janela sobre o mar, o sol do lado dos montes, papoilas vermelhas e poemas incompletos. 
Quando pediam explicações, viam que sorria e leve ia embora, pouco preocupada com o acertar do tempo. Consideravam-na um caso perdido para a explicação da vida, apenas reconheciam a sua poderosa leveza de ser. 
Não obstante gostavam de a ver a procurar o limbo do musgo em pedras perdidas, a bordar letras em panos de linho, a olhar fotografias velhas de rostos de amor. E também não se importavam de a ver a cirandar entre os seus pensamentos, porque todos a amavam e admiravam. 
Tinham tentado sem sucesso, igualar a sua conduta e jeito de ser, mas não toleravam o desnorte que atingia o coração. Incapazes de flutuar nas margens da criação, ficavam orfãos de indicações e certezas. Por isso, em cada dia que passava, maldiziam-na e invejavam-na secretamente, por sentirem, quando o permitiam, que ela era a parte mais escondida e verdadeira de cada um.
Vencidos, seguiam-na como podiam, incapazes de ser como ela, mas perdidos se não a tinham.

domingo, 6 de julho de 2014

Rescaldo

Domingo. Este é especial, está cheio de cansaço e muito silêncio. Terminou o ano letivo e os meninos e meninas lá foram para casa, depois da reunião de pais. A reunião correu bem, só eu sei como correu bem, depois de um ano de muita resistência. Venci as dificuldades, só eu sei como as venci. Gastei todas as energias, saberes e compromissos, lancei todas as fichas neste jogo de interação. Creio que ganhei, repartindo vitórias também por outros, mas consumi todas as reservas de bom senso, empenho e resiliência. Falarei disso noutro dia, hoje estou muito cansada. Apenas quero escutar o som do teclado e deixar correr as ideias. Juro que não me vou preocupar com aspetos formais do texto, quero soltar palavras, ainda que não casem umas com as outras. Ao contrário da relação com as familias, hoje, no texto, posso aceitar divórcios gramaticais. Não quero saber.

Sei que o cansaço veio para ficar por uns dias. O corpo doi-me e pede-me descanso e  sofá, coisa rara em mim nos dias de sol. Ainda que não queira, imagens do ano percorrem-me a memória, falta o ar em presença de algumas delas, sorriu e aceno com a cabeça na presença de outras. O ano que passou está todo concentrado no meu corpo, hoje. Ossos do oficio numa profissão fortemente interativa e relacional. Nós sabemos. E apesar de sabermos, não nos poupamos. Mas como o fazer? como deixar de dar abraços, limpar lágrimas, sarar feridas, incentivar subidas, acautelar descidas, sentar no chão, rebolar na relva, dançar, cantar, mimar? discutir e argumentar, confrontar, equilibrar, promover, apoiar...? como deixar cair estes verbos de ação e substituí-los por outros, mais discretos e menos corporais? não há como fazê-lo,  apesar de já não sermos jovens educadoras.Ou talvez por isso.

E é com o corpo e pelo corpo que nos relacionamos, desde o primeiro dia, como se fosse um cartão de visita que nos acompanha e que outros olham e gostam ou não, conforme a sua sensibilidade, expectativas, história(s) de vida, desejos. E as relações vão se contruindo um pouco ao sabor desta corporalidade e das suas mensagens, reais e implicitas, confirmadas ou não pelo quotidiano e suas vivências Mostramo-nos com o decorrer do tempo, corpo e coração em movimento, tentando decifrar  e atribuir sentido ao vemos e ouvimos, retendo as invariáveis que exigem desgaste de energia, convicção e colocação no topo da lista de objetivos. Com o tempo e a aprendizagem, vamos sabendo como definir prioridades, eleger o essencial, deitar fora o supérfulo. O que não vale a pena, o que pode atrapalhar e confundir. Mas como diz o principezinho " O essencial e invisivel aos olhos, só se vê bem com o coração" . Ver com o coração não é fácil, exige atenção, perspicácia, respiração pausada, batimentos cadênciados de um órgão vital e isso cansa o corpo todo. Creio que é assim para crianças, familias e educadores, ainda que com diferentes expressões e sentidos.

Depois ficamos assim no final do ano. Como se nos tivessem levado tudo, coração, ideias, riso, afeto, energia, razão. Deixamos os braços cair ao longo do corpo, dizemos adeus, fechamos a porta e olhamos para a sala, percorremos as produções ainda expostas, desenhos, pinturas, textos, histórias... escutamos o silêncio e sentimo-nos cansadas. Abosultamente cansadas. E isso acompanha-nos por uns dias.
É  assim que estou hoje. Em silêncio e cansada. A destilar as imagens dos ultimos dias e todas as outras desde o inicio do ano. 
 

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Carta a uma menina

Se eu pudesse ias comigo ver o mar. Sem ser numa visita de estudo, não quero o cheiro do curriculo neste desejo de maresia. Dávamos as mãos e corríamos pela areia, molhávamos os pés e depois ríamos e eu via a tua cara feliz. Olhos amêndoados e muitas trancinhas com as pontas coloridas. Vestida de cor de rosa, como gostas e com pés descalços, os sapatos mais que perfeitos que escolhes para andares no recreio. 

Se eu soubesse, enchia o teu coração de dias alegres, aqueles em que te esqueces que o choro é a linguagem mais fácil para obter um abraço e depois olhava para ti descansada, a apreciar o teu silêncio e gestos a comporem a boneca no carrinho para ires às compras, como uma mãe. E depois ouvia a tua voz distendida a dizer "vá filha, então, não chores, não estás feliz?"

Se eu pudesse ainda mais do que aquilo que pude e fiz, aninhava-te no meu colo e continha o teu caudal de lágrimas diárias, essas que começam pela razão que dizes, mas nascem por outros motivos e circunstâncias, e se prendem em novelos desalinhados dos teus afetos preferidos.
Se eu soubesse ajudava-te a construir dias de luz, com principio meio e fim, momentos bons e continuos, para que pudesses desenhar histórias de principes e princesas, esses que vais buscar à tua imaginação e desejo e convocas para as tuas brincadeiras e falas diárias.
Tudo o que sei e pude coloquei nos dias que vivemos, com o firme propósito de apoiar o teu crescimento de menina pequena e já tão sábia da vida.

Acho que não chegou, o tempo foi curto para lavares o coração de tardes cinzentas, tu que ainda és aurora de dias felizes. Porque a infância encerra muitos mistérios e quase todos os futuro prometidos, sendo certo que às vezes custam a dar à costa.

Era por isso que te queria levar a ver o mar. Quem sabe se, como diz o poeta, o futuro não estará a passar por aí...?