Um fio de água a correr por dentro e lágrimas jorrando por fora, doi mais o que não se vê do que aquilo que está visivel. Ela já sabia, mas manteve-se fiel ao silêncio instalado, proteção preciosa dos eventos menos coloridos da vida. Apenas não cumpriu os votos de ficar recolhida, resguardada das tentações dos dias, sabia-se com natureza arrojada e nunca vencida, ao nascer tinham-lhe rogado bem quereres e boas aventuranças. Por isso, desde menina, consumia-a um sem número de sonhos inquietos, trazia-os no bolso ou na carteira, sempre à mão de semear e eleger como tarefa primeira. E era assim que era declarada incompetente para as obrigações diárias, esquecia-se vezes sem conta de fazer o que tinha que ser feito, a tivialidade dos dias não se increvia na sua agenda de compromissos.
Alguns, perplexos com o seu modo de tecer as horas e o futuro, pediam para consultar o que tinha escrito, mas cansavam-se com o decifrar dos apontamentos, palavras novas com desenhos à mistura, uma janela sobre o mar, o sol do lado dos montes, papoilas vermelhas e poemas incompletos.
Quando pediam explicações, viam que sorria e leve ia embora, pouco preocupada com o acertar do tempo. Consideravam-na um caso perdido para a explicação da vida, apenas reconheciam a sua poderosa leveza de ser.
Não obstante gostavam de a ver a procurar o limbo do musgo em pedras perdidas, a bordar letras em panos de linho, a olhar fotografias velhas de rostos de amor. E também não se importavam de a ver a cirandar entre os seus pensamentos, porque todos a amavam e admiravam.
Tinham tentado sem sucesso, igualar a sua conduta e jeito de ser, mas não toleravam o desnorte que atingia o coração. Incapazes de flutuar nas margens da criação, ficavam orfãos de indicações e certezas. Por isso, em cada dia que passava, maldiziam-na e invejavam-na secretamente, por sentirem, quando o permitiam, que ela era a parte mais escondida e verdadeira de cada um.
Vencidos, seguiam-na como podiam, incapazes de ser como ela, mas perdidos se não a tinham.
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