Quem acompanha os meus escritos semanais, sabe
que aqui pela sala, o bater é uma linguagem quotidiana, quase universal, muito
popular e de utilização fácil. Difícil de controlar e suprimir, o bater resiste
a todas as estratégias pensadas para o erradicar, histórias, conversas,
dramatizações, zangas, falas mansas, outras falas. E reuniões de emergência,
onde os adultos discursam, com tons de impotência e cansaço. Os meninos e as
meninas olham e ouvem e dizem que sim,
claro, temos que partilhar e não
devemos bater, temos que ser amigos… recitando todas as coisas que queremos
ouvir. Inteligentes e atentos, oferecem-nos o que integram em forma de reza ou
tabuada aprendida de cor. Depois, a propósito de tudo e de nada, batem,
empurram, choram, protestam. E nós desesperamos. Mas não desistimos.
Por isso, colocámos no início do ano, o diário
bem à vista e à mão de todos, pronto a receber em palavras as ideias e expressão
de sentimentos, como forma de controlo da impetuosidade e oportunidade de
registo para discussão futura, à sexta-feira. Grande e silencioso, ali esteve
quase esquecido entre setembro e dezembro, com exceção para algumas das
crianças mais velhas que nos pediam ajuda-me
a escrever no diário. Os mais novos, de 4 e muitos de 3 anos, ignoravam-no,
a não ser quando vinha para a mesa e era objeto de olhares rápidos, meio
distraídos, por entre conversas com os meninos do lado, fugas para baixo da
mesa, brincadeiras paralelas, outras impaciências difíceis de gerir. E braços
no ar, com vontade de falar e opinar, ainda que sem dia, hora e lugar marcado, atropelando-se
e atropelando os outros, numa alegria agitada para participar. De pouco valia
dizer para discutir tem que estar
escrito. Conheciam apenas o sentido de si e a urgência em tomar a palavra, experimentando-se
como autores do seu quotidiano.
E foi como autores (e atores) que começaram, há
cerca de um mês, a fazer muitas escritas no diário, numa explosão desorganizada
de letras e formas tipo letras, preenchendo todas as colunas, com traços
destemidos e ideias precisas, traduzidas nas falas que nos devolviam quando os
questionávamos o que escreveste? Olha, aqui… não gotei… o A. bateu a mim… foi,
foi… Sem perderem tempo, às vezes em corridas para ver quem chega primeiro,
os meninos e meninas, de 3 e 4 anos, pegam nas canetas, em liberdade e
afirmação, para dizerem de sua justiça, escrevem e leem para nós o que escreveram,
sem medo e sem consciência das convenções da escrita, numa liberdade anárquica,
mostrando que já compreenderam que em vez
de bater, vou escrever o que não
gostei…
Está a reduzir o bater na nossa sala, aumentam as
escritas nas colunas do diário, com letras e formas tipo letras, pelos meninos
e meninas mais novos, que descobriram o poder das palavras em vez do poder das mãos
e da força no corpo dos amigos. Tudo está resolvido? Não, longe disso, temos
ainda muito por resolver. Sem saber bem como. Olhamos para o diário e rimo-nos,
tal é a expansão dos grafismos e dos sentimentos colocados por todo o lado, sem
ordem e sem respeito pela função de cada coluna.
Mas esse é um trabalho
posterior. Como será também o discutir o que está escrito, para ser colo e
esteira das interações entre todos. Lembram-se pouco à sexta-feira, são tantos os
registos e os testemunhos. Temos meia batalha ganha, faltam ainda muitas
outras.
Sejamos pacientes e persistentes no caminho da construção da democracia
e da tolerância. E das convenções. Cada coisa a seu tempo, sem esquecer a idade
das crianças, a(s) sua(s) realidade(s)
Sem comentários:
Enviar um comentário