sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Palavras emprestadas

Um dia de sol, a seguir ao natal. A casa em silêncio e a vontade de me encharcar de palavras, poesia e textos. Percorro os livros que o pai natal me deu. Manuel Pina, Lobo Antunes, Alice Munro. 
Depois volto a Manoel de Barros, que descobri há pouco tempo. Tão bonito e tão desafiador, poder-se assim escrever sobre a vida, desconstruindo-a.

http://tinaborba.files.wordpress.com/2011/07/passaros-paisagem-imaginaria_6449_1024x768.jpgAqui fica por palavras suas o apanhador de desperdícios, neste tempo de pseudo abundância. 


O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios
Não gosto de palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros

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