Sábado de formação. Hoje os jornais foram comprados a seguir ao almoço e aguardam para serem lidos à noite. Por agora, aproxima-se o fim de tarde e o sol está cor de laranja, dourado, como diz uma canção do outono, que os meninos e meninos lá da escola, às vezes, cantam. Não, não é para fixar ou aprender as estações do ano, sabemos que os meninos não aprendem assim. E como aprendem os meninos e as meninas? Se pensar no que aconteceu esta semana, e ouvindo as falas das crianças no conselho as bonecas não são para os meninos, são para as meninas, direi que as crianças aprendem o que vivem. Quando ouvi, briguei com esta ideia e confrontei-os, problematizei e não deixei cair a conversa, as razões e as opiniões, disse as minhas, alguns surpreenderam-se, outros continuaram a conversar entre si, plenamente convictos da divisão entre masculino e feminino. Confirmei de novo que os meninos e meninas aprendem com as ideias que têm e lhes são transmitidas e vividas no seu espaço familiar e comunitário, no caso, o seu bairro, que tem casas e ruas e fica junto ao rio, mas que se insere no mundo e que no dizer de um menino foi expresso como este é o meu mundo, apontando o lugar, as árvores e as casas. E os meninos e as meninas aprendem no seu mundo e no seu mundo há uma escola. Aprendem também na escola.
Na formação, hoje, ainda que conversássemos sobre os adultos e os processos de aprendizagem, fizemos o necessário isomorfismo para o trabalho com as crianças, sabendo que importa manter a capacidade de nos interrogarmos sobre o modelo utilizado, as práticas desenvolvidas, com a coragem de não ter medo de ainda não saber o que é suposto já estar dominado, partilhando com outros, dúvidas e anseios. Discutimos que aprendemos a ser professores em coletivo, com os desafios e confrontos que nos fazem, em comunidades de aprendizagem, para as quais mobilizamos os nossos saberes e a liberdade para exprimir e dizer o que nos inquieta. A ideia de que em cooperação, podemos enriquecer o nosso património de convicções, encontrando caminhos alternativos para ensinar e aprender. Olhar de outra maneira o lugar dos alunos e dos professores na construção dos saberes. Ser capaz de os pensar com honestidade, ética e compromisso. E iluminar com racionalidade, inteligência e coragem a nossa tarefa na construção da escola.
E então, o que têm as leituras estereotipadas das crianças a ver com a formação da manhã? Têm tudo, quanto a mim. De regresso a casa, pensava em como é bom ter gente que nos desafia a ver para além do instituído, nós que apesar de tudo, estamos certas de que as escolas são um lugar instituinte, construídas pelas pessoas que nelas vivem e sobretudo, sem ideias gueto ou preconcebidas do que é ensinar e aprender. Mas esta perceção que temos sobre nós, enquanto inovadores, é abalada muitos dias pelas caracteristicas dos contextos e pelas representações sobre os mesmos. Sobretudo quando os contextos encerram em si problemáticas ou certas denominações. Os territórios TEIP, por exemplo, que para além da(s) sua(s) realidade(s), produzem um conjunto de representações profundamente enraizadas nas pessoas, professores, alunos, comunidade. Olhamos para os TEIP e fechamo-nos neles, submersos pelas dificuldades e pelos problemas. E à força de tanto partir de diagnósticos negativos, baixamos as expectativas, aumentamos o zoom sobre as feridas e não há maneira de ver o corpo saudável. Guiamo-nos pelo que falta, por referência a uma tabela padrão, nos saberes, atitudes e competências dos nossos meninos e meninas. Coisa perigosa esta, de nos abandonarmos às nossas representações mais profundas. E às dos outros, que à força de tanto as proclamar, quase as tornam verdadeiras.
Imunes a isto? Nem sempre, o poder dos contextos é fortíssimo. Tal como a ideia de algumas das crianças da sala de que as bonecas não são para os meninos são para as meninas, também nós temos ideias assim, preconcebidas, estranhamente preconceituosas, que nos fazem tomar por certo e determinante, o que deve ser relativo, temporário e transformador. Como dizia o meu professor Rui Canário, passar dos problemas às soluções.
Para mudar? Persistência e sentidos alerta. E um grupo de companheiros de profissão que nos faça pensar e construir as alternativas contra o sistema vigente e as ideias imobilistas. E a manter-nos vigilantes e ativos. Com as crianças? Persistência e sentidos alerta. E um grupo de pares e uma equipa capaz de fomentar pensamentos divergentes, práticas diferenciadas, propostas onde carrinhos e bonecas se misturem e desafiem as crianças a fazerem diferente e assim poderem baralhar o destino traçado de serem homens e mulheres confinados a papéis socialmente determinados.
Eu disse que isto tinha tudo a ver umas coisas com as outras. Só não sei se fui suficientemente clara. O meu obrigada a quem dinamizou hoje a formação pela manhã (regional do MEM de Lisboa) e permitiu que eu escrevesse este texto, ainda que eventualmente confuso...a escrita tem destas coisas, porque mobiliza o que ouvimos, pensamos e ligamos entre si. E esta semana vi muita gente a olhar sem olhos de ver as minhas crianças...
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