sábado, 17 de agosto de 2013

Bocados de vida

Nesta jornada de arrumação de caixas antigas, colocadas há muitos anos na garagem, impusemo-nos deitar fora o muito antigo, que já não era utilizado. E assim fizemos. Mas quando os livros apareceram, aos montes, ficámos sem saber o que fazer, de tão ligados que estávamos neles, assim sentimos mal os vimos. Os clássicos todos, que lemos na juventude e que nos fizeram ser como somos: Beauvoir, Sartre, Gorki, Anais Nin, Marguerite Duras, Soeiro Pereira Gomes, António Aleixo, Manuel Alegre, Virgílio Ferreira, Fernando Namora...e tantos outros...limpámos o pó, arranjámos uma estante e demos-lhes o destaque que merecem. Ainda hoje. Não se deita fora o que para nós foi um marco e uma revelação e chão para a caminhada de nos tornarmos pessoas.  

Depois, os textos e desenhos dos rapazes, letra tremida e erros, muitas coisas de meninos em crescimento, redações da primária, cartas das primeiras namoradas, dedicatórias de amigos, postais de natal, cadernetas de recados da escola, prémios do andebol. Guardámos o que nos fez rir e emocionar, deitámos fora os testes e os apontamentos e resumos de aulas. Coisas sem importância, agora.

Depois encontrei os meus cadernos e a minha capa vermelha, gasta e escura. Lá dentro poemas, cartas de amor (quem as não tem?), páginas de um diário, alegrias e lamentos. Tudo muito forte e muito sensível, entre os dezoito e os vinte anos. Fiquei sem respiração pela pessoa que ali estava, à procura do mundo e da vida.
Fiz um intervalo na arrumação e reli alguns dos escritos. Depois de me banhar nas palavras, reconheci-me, embora não tenha sido possível vislumbrar-me na totalidade. Senti, por momentos, o cheiro da praia da Barra, o vento das tardes secas no Bunheiro, a estação de Aveiro e a respiração ofegante para apanhar o comboio no ultimo minuto. Tudo longe e ao de leve, apesar das palavras intensas e da letra incerta. E sorri pela menina de então e estranhei-me na minha identidade. Eu, fui aquela? Pois fui, claro e por ter sido assim, hoje posso ser como sou. 

Guardei o caderno e a capa vermelha.Trouxe-os para o sótão. Não se deita fora os bocados do que fomos e da vida que vivemos. Deixo aqui um poema de então, sem censura ou preconceito. Escrevi o que senti, tal como agora o faço.  

Amor, de que cor és?
Procuro-te.
Amor, vives onde?
Eu quero-te.

Querer é ficar entre as árvores e fazer rosas
Com os dedos de luz e paz.
Querer é mais
É ir para além do mar, pisar as ondas
E rir.
Querer amor é querer vida
Que vida é amor.

Amor é ter ruas. largas. E correr com desejos nas mãos. 
Amor é tempo, verde e paz
É acreditar numa forma de ficar mais justa.

Amor és tu, quando chegas, com sol nos olhos.
Tu, inventado no escuro e desenhado na luz.
Amor é rir, continuar e ser.
Amor são ninos de olhos a chorar e
Mãos a querer quente.

maio 1976 (19 anos)                                                                                                                                                            

     

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