domingo, 25 de janeiro de 2015

Saber de cor

É domingo, o sol brilha e aquece tudo em redor. Saí cedo de casa e andei por aí, a sentir o frio doce da manhã e a pensar em ti, que nasceste há 29 anos e és o meu primeiro filho. Quis ficar sozinha, junto à beleza do tempo que faz, para melhor guardar em mim o teu nascimento, num sábado de manhã com chuva, o teu pai a dizer que não, vai agora nascer hoje, os amigos à espera da boa nova, a mala levada à pressa, numa alegria estremecida.  Foi há muito tempo e no entanto sei tudo de cor.  

Sei de cor os contornos da sala, a cor dos olhos da enfermeira, o rosto do médico que apenas chegou depois, não te viseste anunciar e dispensaste apoio especializado. Quiseste vir ao mundo de forma rápida e sem dor, o que me deixou atordoada, eu que alimentara o medo de longas horas de espera. 

https://lh6.googleusercontent.com/-uA2TqCKZ6Y0/SX861ibU99I/AAAAAAAAF3I/kA7KTDnSwbU/s290/Maternidade.jpgSei de cor a tua cara pequenina e o cheiro do teu corpo. Sei de cor o som da tua boca a pegar na mama, a tua mão em cima do meu peito, o calor do berço, a chupeta a dar voltas, o riso a crescer com das covinhas na cara. E as fraldas, o creme, os bonecos e a alegria.

Sei de cor a tua entrada na creche, o choro que nunca deixaste quando me vias partir, a foto que levavas dentro da mochila. Sei de cor a escola, os amigos escolhidos, as zangas contra a injustiça, não está certo, mãe, não é assim, numa fúria de seres quem és.  Sei de cor os anos de andebol, a tua garra como jogador, a tua atitude e a tua ética. Sei de cor as namoradas, a experimentação do amor, a alegria da paixão, a dor das despedidas. Sei de cor todos quantos te ajudaram a crescer.

Hoje, homem feito, sei de cor os teus sonhos e lutas, as tuas aspirações, a tua rebeldia, firmado num corpo e num coração grande e amoroso. Demasiadamente. Sei de cor a tua convicção, as tuas incertezas e a tuas resistências. 
Sei quase tudo de cor, porque andaste dentro da minha barriga e dela nasceste, lindo e encantador, para o mundo.Sei quase tudo de cor porque te levei vezes sem conta pela mão e juntos conversámos de tudo e de nada, em manhãs de café tomado e sol a aquecer-te o riso. 

Não sabendo de cor o futuro, estou aqui para tudo o que precisares, para sempre. Isso eu sei de cor. Amo-te meu filho. Parabéns.

domingo, 18 de janeiro de 2015

A roda do tempo

Chove com força e as gotas batem vigorosamente nas janelas, varridas por um vento frio. É de noite neste sábado chuvoso e ainda que sentada obedientemente em frente ao computador, vagueio por muitos lugares, um pouco à solta, desprendida do muito que tenho que fazer. Não me apetece, muito menos escrever o que tem que ser escrito, coisas da escola, do trabalho, da formação. Não. Hoje quero-me isenta de obrigações, para me encostar à liberdade do tempo, esse bem precioso e escasso. Não sei que volta lhe dar, foge-me sem vergonha, é descarado e pouco obediente, distraio-me um bocadinho e já não o tenho disponível, brinca da minha necessidade de o querer grande e preguiçoso, a andar devagar como o caracol. Mas ele nada, risse dos meus pedidos e lamentos, da minha nostalgia em noites como esta, depois de um dia em forma de sol. Porque foi. 

http://t2.uccdn.com/pt/images/5/8/1/img_13185_apa_10642_200.jpgDeram-me um bebé para cuidar, doce e risonho, forte nas interações, brincámos e cantámos juntos, eu com palavras e ele com sons e movimentos, de cá para lá, de lá para cá, correndo a sala e os objetos, rindo para os gatos e estendendo-lhes as mãos. Houve tempo para tudo, mudar a fralda, comer a sopa, dormir, brincar. E muitas conversas. E beijos e abraços.  Quando se foi, fiquei a pensar na vida e no tempo, na minha condição de amiga avó, parentesco herdado de uma amizade longa e profunda com a avó e a mãe. Conheci ambas há cerca de 30 anos, eu e a avó com 28 anos, a mãe, menina de 4 anos. E ligámo-nos pelas coisas da educação, troca de ideias e desabafos profissionais, num caminho que começou na relação professora aluna, mas que cresceu para além disso, misturámos famílias e sonhos, companheiros e filhos, vimos crescê-los e debatemo-nos com os seus caminhos e as suas escolhas, rimos e chorámos, ficámos amigas para sempre. Nesta relação, ensinei e aprendi muito. Sobretudo aprendi. Aprendi o valor e o sentido da amizade e da solidariedade sem preço e sem tempo contado, a alegria e o espanto de ser gente e amiga a qualquer hora e em qualquer lugar. Pela vida e para a vida.

Por isso hoje a menina que agora é mãe, deu-me o seu bebé e eu deliciei-me e surpreendi-me com ele. E enterneci-me com tanta beleza e inteligência, tanta relação e competência social neste bebé, que nasceu de uma menina que conheci há tantos anos. E pasmei pela roda da vida que nos leva de volta à infância quando o tempo já nos empurrou para longe da juventude. E vim ter ao tempo que corre e foge e se escapa. e de novo me quis jovem e com oportunidade(s) para recomeçar. Com o cheiro e a pele do bebé em mim, a saudade a trespassar-me no corpo, a alegria a brigar com a nostalgia.
Mas foi um sábado bom, mais que perfeito. Não me apetece fazer nada, hoje já fiz quase tudo.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Ano novo, velhas questões

Já passou uma semana de trabalho. A semana a seguir à entrada de um novo ano, o que significa começar com novas expectativas e propósitos. Intencionalmente definidas, inconscientemente desejadas. Na pausa letiva, planeámos, refletimos em equipa, reorganizámos espaços, aprimorámos os instrumentos e lá começámos. 

E lá fomos, rindo e dando abraços, fazendo coroas e cantando as janeiras, escrevendo no diário, partilhando e...batendo, empurrando, chorando, protestando, fazendo queixas. Como sempre. No final da semana impacientei-me e zanguei-me. Á séria. E numa reunião de urgência (é porquê, Manela?) falei, falei e falei...o silêncio pairou no ar, junto com olhos de espanto. Os meus e dos deles, ainda que por motivos diferentes. 

Falei de mim e da minha dificuldade de os compreender, do meu gosto em ajudar a ter uma sala onde todos se entendessem, da minha recusa em andar permanentemente a gerir zangas e conflitos. Disse isto com palavras que saiam em catadupa, com a emoção à flor da pele, com a verdade de ser quem sou. Pedi que me explicassem, uma vez mais, porque se batiam e se empurravam, em vez de serem gentis e amorosos, como a história que tínhamos lido no dia anterior. As respostas vinham em conformidade com normas de moral decoradas, portamo-nos mal, não partilhamos, não devemos bater...mas quando direcionei, com gestos corporais e muita energia, a questão, o que é que vos acontece no corpo e no coração para baterem...alguns disseram ficamos com raiva...estamos irritados...não nos controlamos.
 
Estava dado o mote para continuar a conversar, agora reorientando as falas, minhas e deles, para a necessidade de crescer com mais calma, tolerância, sentido dos outros, amizade e alegria. Aos poucos os discursos ficaram mais suaves, descansámos todos por encontrar sugestões para os próximos dias, lemos uma história a pedido de alguns Diz-me como é ser grande. E falámos de afetos, de zanga de pais, da violência de alguns adultos, em apontamentos que ficam para nós, não se divulgam. O resto da tarde foi serena, respirávamos de alívio, julgo, por termos conversado sobre coisas que nos moem as ideias e o coração.

Andei em interação com eles, numa vagareza lenta como o caracol, com as palavras que tinha dito a ecoarem em mim, certa que enquanto falava para eles, falava também para a minha deceção, eu que investira em desejos de comportamentos novos, ingenuamente centrados nas minhas conceções de trabalho pedagógico e desenvolvimento do currículo. A acusar a dificuldade de como fazer, para além da utilização de instrumentos de regulação do grupo, dos conselhos para discussão da vida da sala, da leitura de histórias escolhidas a dedo para os problemas de relação, de conversas individuais com empatia, de colos dados todos os dias. E da afirmação regular que posso ajudar quando sentem que vem aí a raiva. E com uma inquietação leve de não saber se tanta emoção pode ter repercussões positivas nas crianças e no seu estar no grupo.

Vim para casa neste final de semana em balanço, mais uma vez. A interrogar-me sobre o significado e  a adaptação do currículo para cada grupo e para o meu, em particular. Com o sentimento incómodo que as estratégias que utilizo andam em contramão com a realidade familiar e comunitária dos meninos e meninas, reforçadas em práticas e conceções de olho por olho, dente por dente. Que a minha persistência em escritas sobre os problemas, no diário, são entendidas como fantasia pedagógica ou adorno engraçado de escolinha, porque tudo o resto, à nossa volta, se estrutura em função de normas e pedagogias autoritárias e pouco negociadas. Esse é o ar que se respira e nos enche, sem pedir licença, as práticas e a intervenção, num processo de osmose quase perfeito. Engole-me às vezes também, ainda que resista como posso.

Vim para casa a pensar se foi legítimo e terá alcance a minha emoção e zanga. Mas nada pude fazer conta isso. Para me aquietar relembro João dos Santos (1991) 

"A criança precisa de ser frustrada para sentir que não pode possuir tudo e para poder pensar em vez de fazer; de ser contrariada para sentir que há outros interesses para além dos seus; de sentir agressividade e também de a manifestar; de ter pais e educadores reais e não seres convencionais, frios e dogmáticos, daqueles que fazem educação pelo manual. Precisa de desobedecer para aprender o que é a desobediência; precisa de fazer experiências dolorosas para aprender a conhecer e compreender a dor; a criança precisa de ser educada com verdade".

Vou reler o livro "A escola faz-se com pessoas" de Pascal Paulus. Já li há uns anos e ajudou-me nestas matérias. Preciso de voltar a pensar nelas. Pelas minhas crianças e por mim.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Saudade

1 de janeiro de 2015
O dia já amanheceu e já fui ver a rua. Um frio que gela, um céu azul lindo, um sol forte, aberto, que aquece a paisagem. Tudo em silêncio, porque a madrugada foi longa e o sono ainda está demorado no corpo de quem dorme.
Lembro-me de ti e de como me fazes falta. Por tantas coisas, a menor das quais seria agora  preparar o perú para o almoço. As outras, não se dizem, faltam as palavras para retratar o alcance do amor de mãe. Um continente de afetos e regaços, uma lonjura grande como o mar, uma condição de futuro sem quebra e sem resgaste.

Fazes-me falta, hoje, 1º dia de 2015 e assim tem sido desde que partiste. Começar o ano sem o dizer, não é possivel nem seria seria justo para o meu coração e a minha saudade.

http://www.jokerartgallery.com/pintura/edmilsoncosta/m%E3e%20e%20filho%20dormem-osm-79x100cm2006.jpg 
Aqui fica pelas palavras de Almada Negreiros

Mãe!

Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!

Mãe, passa a tua mão pela minha cabeça!

Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra de viagens!
Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.

Quando viajar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei,
Tão parecias com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa.
Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

Mãe, passa a tua mão pela minha cabeça!

Quando passas a tua mão pela minha cabeça é tudo tão verdade!

José de Almada Negreiros, a invenção do dia claro