terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Quanto custa a vida?

Quanto custa a vida?  Hoje acordei com esta pergunta, em jeito de balanço. É fim de ano, somos dados a sínteses e promessas.

Quanto custa a vida? quanto de nós se esvai na liquidez dos dias e na luta de ser gente, entre iguais e diferentes? quanto pagamos pelo pão e pela comida na mesa? quanto pagamos pelo amor no coração e na alma ardente? quanto damos, recebemos e recusamos?

Quanto custa a vida? quanto pagam as crianças que vivem na pobreza e espreitam um futuro que foge desalmado? quanto pagam os sem casa, pela praça deserta e o cartão que não cobre o frio?  quanto pagam as mulheres maltratadas? e os outros, marginalizados?

Quanto pagamos pelos sonhos desfeitos, pela procura da verdade e a alegria da liberdade? quanto pagamos pelas nossas ideias? quanta força despendemos no içar das bandeiras que colocamos ao alto? 

Quantas lágrimas derramamos no correr do tempo, quantas rugas se formaram e se tornaram pele, quantos ensaios rasgámos e reescrevemos, quantas palavras se foram, sem verbo e conjugação?  

Quanto nos custa rebeldia e a alegria? e a solidariedade a bondade? o canto e o poema? quanto nos custa ser gente de corpo e alma inteira? 

Que 2020 possa ser um ano livre de pagamentos coercivos. A pagar, que seja em cestos de géneros livres de impostos: igualdade, direitos, justiça, pão, saúde, trabalho para todos. Sem distinções.
E amor e rebeldia. Muito. Sempre. 


sábado, 21 de dezembro de 2019

Sentir a falta...

Aqui estamos de novo e de novo me fazes falta. Este ano, ainda mais, estou deslaçada com este tempo, eu que aprendi a gostar tanto do natal. Perdi-lhe o encanto? Não, aumentaram as perguntas e as cismas, como dizias, quando te querias referir aos meus silêncios disfarçados.

E no entanto, queria sentir esse gosto bom do cheirinho a natal, uma espécie de alegria secreta e calorosa, salpicada de risos e afagos. Por isso, fazes-me falta. Não que fosses muito pronta na expressão dos afetos, a educação moldou-te em contenção e pudor, mas eras a minha mãe, de rosto doce e menineiro e por isso te queria aqui. Para me olhares com olhos de interrogação e anuir, contente, com as minhas decisões. E eu a ficar mais amparada nesta eterna necessidade de obter aprovação. Coisas de menina pequena que o tempo não apaga.
foto J.I. Trafaria

Queria-te aqui, neste natal, para ficar menos só, apesar da casa cheia. Queria ainda ser filha, e mesmo que não pudesses cortar-me o cabelo e deixar a franja curta ou dar o laço, a preceito, nos bibes de andar por casa, queria-te aqui para sentir que tudo está bem e certo e por isso, tudo é justo e promissor.  


Queria-te aqui por casa, para irmos comprar as couves e o bacalhau, medir-lhe a altura e discutir os preços, sacudir o sal e meter no saco e depois, cansadas, tomar um café com uma broa de mel. E regressar a casa, cirandar contigo, dispondo as velas e os pratos e sacudindo com jeito, as migalhas do pão com manteiga, que comíamos, satisfeitas, no intervalo destas lides. 

Queria-te aqui, para me ficares a ver, meia embevecida, a embrulhar os presentes e a alindar-lhes os contornos, com jeito, confirmando o meu gosto por pessoalizar cada um, com detalhe. E depois havíamos ainda e de novo, de discutir o trabalho que isto dá, tu a tentares convencer-me que talvez não fosse necessário, eu a saber que acreditavas, tal como eu, que é isso que faz toda a diferença nas dádivas que damos uns com os outros.

Vês porque te queria aqui neste natal? para o fazermos e vivermos na cumplicidade boa que este tempo construía em nós. De mãe para filha. 
De novo, no natal e sempre, fazes-me falta.


terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Recato e pensamento.

Refugio-me no meu coração, que o tempo é de recato. Chove lá fora e a casa quente diz-me que tenho sorte. Alguns dirão que é justo, que a ela tenho direito, porque trabalhei a vida inteira. Pois sim, mas outros também o fizeram e casa não têm.  Não sei resolver esta equação, mas sei-lhe o sentido e a injustiça. Hoje permito-me não pensar nisto, apesar do frio.

Refugio-me no meu coração, para não me perder. Quero-me inteira e capaz de pensar, com a razão e a emoção. Dá trabalho esta conjugação, acertar os pesos da balança, que de instável, pende, às vezes, para uns dos lados. E poucas coisas são binárias, ainda que na nossa pequenez gostemos de arrumar a vida entre "isto ou aquilo". Não chega, face à dissonância do mundo.

ilustrações do natal - JI Trafaria
Refugio-me no meu coração e sou procura e consumação. Uma espécie de criança pequena espantada no tempo e com os homens que o habitam. Do lugar onde estou, o que vejo perturba e inquieta. Campeões de corridas, queremo-nos rápidos e invencíveis. A velocidade como meta, mesmo sem saber o caminho. E importa? Depende, não me sinto capaz de discutir cenários.

Refugio-me no meu coração e tento sossegar. Aquietar-lhe as razões e os desvarios, contê-lo, para que não se distraia com as luzes cintilantes da época. Reter apenas o essencial, nas noites frias do mês presente. Um agasalho, uma chávena de café, um pão quente, um abraço presente. Nós com os de casa e os da nossa vida, que são esses e outros. Quantos? Não importa, hoje não faço contar de somar, hoje as contas são de acertar.

Refugio-me no meu coração e acerto-me. Eu comigo, entre as vozes e as nozes, que o tempo é de natal e frutos secos, exige recato e contenção. Ser outra coisa, no meio do desatino e do comércio, ser essência e frugalidade, ser conduto na mesa e braseira para o frio. Suficiente? não sei, apenas me ensaio e me experimento, acertando duvidas e certezas, querendo-me inteira e a pensar. Para não me perder, neste natal. Por mim e pelos outros.

   

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

De que matéria somos feitos?

 De onde nos vem a luz que temos cá dentro e ilumina os cantos sombrios da vida? de onde nos chega a convicção e o encanto, a beleza e a alegria, a raiva e a cobardia? porque teimamos na vela acesa, como sinal para o caminho? porque rimos e choramos e ainda assim, continuamos, trémulos e prontos para o que amamos? de onde nos chega o amor pela liberdade, ultimo reduto da nossa verdade? de onde nos vem a rebeldia, a fé sem rumo na ousadia, o querer ir e apostar, o partir e procurar? porque nos mantemos de pé, firmes e capazes de muitos feitos, quando estamos, às vezes, desfeitos? porque queremos, acreditamos e vamos?

desenho da Sara -  JI da Trafria
De que matéria somos feitos, neste mundo dividido? os que discursam e os que fazem, os que insistem e os que desistem, os que escutam e os que falam? os que tudo têm e os que nada terão, os que adoçam a boca com broas de mel e os que suportam a fome e o fel?

De que matéria somos feitos, para aplaudir de pé vitórias breves, obedecer e anuir, esconder a voz e o porvir? O que nos leva a iludir  a nossa vidinha, rodeados de tanto ter, a consumir e a inventar o que ainda há para arrecadar? De que matéria, sonhos, convicções e enganos somos feitos?  

Neste natal, tantas perguntas, a inquietar o lado mítico da época. Por entre estrelas e luzes cintilantes, um estremecimento no corpo, uma alegria insatisfeita, uma ternura com medo. E ainda assim, o contentamento por tudo se repetir, mais uma vez. E ainda assim, a beleza do presépio, o cheiro do musgo da infância, a alegria de estar vivo, pensar, sentir e escutar. E ainda assim saber ouvir a aceitar as vozes de dentro, sem assombrar as de fora, feitas palavras, risos e abraços daqueles que amamos. 

Que seja natal, com e para lá da matéria de que somos feitos.