sábado, 25 de julho de 2020

Desejo(s)

Hoje acordei com saudade do mar. Da água a perder de vista, do som das ondas a bater na areia, do vento forte. Acordei com saudades do mar, mas este de aqui nem de agora, mas de outro, bravo e valente, agreste e ainda assim, tão generoso em peixe concedido para canastras de verga. O pregão alto e as mãos com sal, é a sardinha do nosso mar.


Acordei com a infância a bailar-me no credo, o cheiro da maresia preso nas pedras, as camisas axadrezadas dos pescadores, mãos calejadas das redes para ganhar o pão nosso de cada dia, em dias nem sempre fáceis para este propósito. E as mulheres de longe a sondar o jeito do mar. 

Acordei com a falta de algazarra junto ao mar, a lengalenga de mães a chamar os cachopos, pão com queijo e uvas pretas, a ternura escondida e meia disfarçada, mas a escorregar pelos olhos e nas palavras, às vezes apressadas e rudes. Mas só por fora, por dentro um amor intenso e protetor à sua prole.

Hoje acordei menina de bibe lavado e marrafa composta, deserta de dia de festa, ir para o bote atravessar a ria, sentir o som da água a deslizar, o moliço espalhado, o junco nas margens e as casas antigas, ao longe, adornadas por risos inteiros e conversas trocadas. 

Hoje acordei saudosa da infância, da ida ao mar ao domingo, da lentidão do tempo em tardes sem fim, do cantar das cigarras e do milho seco na eira, das desfolhadas com os vizinhos. E do jarro da água a passar de mão em mão, dos olhares atentos das avós, eternamente dispostas a ouvir e a cuidar.
Hoje acordei mais certa do lugar da comunidade em nós e da ausência de outros nos nossos dias e que marcam, na infância, a certeza do chão seguro, a reserva dos afetos, a resiliência para os sonhos e para a criação. Este é um caldo bom e de sustento para o que somos. 

Por isso, hoje acordei com a saudade de tudo voltar a ser como era, não para recuar muitos anos, mas para desconfinar e voltar a ser gente, entre outros. Porque os outros e a comunidade nos devolvem aquilo que somos, gente de alma e coração, entre iguais e diferentes. 

Assim nos queremos. Assim possamos.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Vida paralela

Não sabia que outra sorte havia de dar aos dias. Compunha-se diariamente para os cumprir ordeiramente e, no entanto, uma réstia de inquietação, ainda que mansa, destronava-lhe todas as intenções. Sorria com intimidade para os sonhos que a habitavam e alegrava-se com a sua persistência, ainda que ignorasse de onde provinham e porque vingavam. Não encontrava motivo para tanta permanência, e assim, quase com medo, discreta se queria e se perfilava, entre a sombra e a luz opaca. Evitava ser vista e percecionada, temendo perder-se entre os demais.
 
Desenho da M.(JI Trafaria)
Mulher de poucas palavras, guardava as mais belas e destemidas, no centro da sua liberdade, certa de ser esse o lugar mais seguro. O tempo tinha-lhe ensinado a ser vigilante e cautelosa, secreta, para deambular, a seu belo prazer em margens de rios selvagens, desses que correm frescos e promissores para planícies vastas. Nesses dias, inundava-se com coragem de pensamentos férteis, conjugados nas palavras que soletrava sem rodeios. E elas vinham e compunham a realidade, amansavam a dor, libertavam o canto, guarneciam o fel pelo mel e adoçavam as memórias e as utopias. Assim se sentia arco, flecha e consumação.

E estava só, inútil e parada, entre sonhos e palavras? não, cumpria com normalidade a função dos dias, sem que ninguém suspeitasse do fogo e da fúria para fazer outro tempo e outro lugar. Apenas alguns sabiam do seu desnorte, da sua resistência para entrar no carreiro, da sua paixão pelas margens e pela verdade. Esses poucos, que com ela partilharam o poder das palavras e dos sonhos, estimavam-na e compreendiam. E às vezes, em alguns dias de anunciação, compunham, em companhia, as mais belas lições de amor, esperança e rebeldia. E isso bastava.