sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

No ano novo e durante todo o ano

Andamos todo o ano cheios de nós.
Mais ou menos equilibrados exercemo-nos em muitos lugares, casa, trabalho, cidade, jardim, espalhando a seiva do que somos, tentando regar um tempo fértil e fecundo. Nem sempre nos lembramos da vida mais longe, prisioneiros que somos do nosso umbigo e do nosso ADN de gente situada. Estamos aqui e agora e isso basta. E às vezes (muitas vezes?) o nosso quintal fica maior que o mundo todo. É quando as ervas daninhas se tornam ásperas e crescentes, impedem que nos assolemos à frente da porta da casa para olhar o fim da rua e a linha do horizonte. Não alcançamos as cores da vida fora de nós e limitamo-nos a tomar as partes pelo todo. Se estamos bem tudo está bem, se estamos mal, tudo está mal.

Imagem relacionadaPerto do ano novo, a época induz-nos uma espécie de alegria e de esperança, a visão ganha acuidade, enxergamos com mais ousadia o mundo para além de nós. Queremo-nos em unidade com o cosmos e desejamos a todos um bom ano, enchendo-nos de promessas e votos, que distribuímos aos outros, numa generosidade sem limites. Não poupamos nas palavras, nem nos abraços, nem na expressão do amor e da amizade.

E o amor e a amizade ganham a dianteira, tornam-se as coisas pelas quais nos dirigimos ao mundo e aos nossos, reconhecendo-os como água, pão e calor da nossa vida. O principal e não o acessório. O fundamental. Para a nossa vida pequena, de trazer por casa, e para a outra, mais distendida e alargada, em consonância com o desenvolvimento da terra e das gentes que nela vivem. Alguns, muitos, sem vida digna e sem limites para a exploração das suas condições quotidianas. Alguns, muitos, em cenários de pobreza, destruição e atentados aos seus direitos de liberdade, democracia, pão e comida sobre a mesa.

Neste final de ano, que possamos construir para todo o ano que aí vem, uma visão permanente do mundo, para além da nossa casa e do nosso jardim. Que saibamos cuidar do nosso olhar e do nosso cuidado aos outros. Com os nossos, sempre e para além dos nossos, também. Que saibamos resistir, intervir e manter a radicalidade plena da indignação. No trabalho, na rua, na cidade. Todos os dias. Com amor e amizade. 
   

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Postal de natal

Falta-me, neste natal, a tua presença. Está frio e os dias amanhecem com sol, numa claridade mansa,  salpicada de gotas de orvalho nas pétalas macias das rosas. Há um convite implícito para ser feliz, visível na beleza nua das árvores e na lembrança do riso cristalino das crianças em tempo de recreio. Calcula-se a vida por unidades de afetos, contas justas e certas, anos de amor que enchem a alma, perfumes de verão que se eternizam em nós. Mas é dezembro e natal e fazes-me falta.

Resultado de imagem para imagens de presépios recicladosFazes-me falta para me acompanhares com passos miúdos e sonhos gigantes, desses que crescem e se instalam num lugar seguro, de onde só saem quando esquecidos. E não queremos esquecer. Porque o sonho nos embala a razão, tem o tamanho da nossa idade e serve de bússola nas noites mais geladas.

E faz frio neste natal e falta-me a tua presença. Para partilhar em silêncio a alegria de estarmos juntos, decorar a árvore da sala, mexer lentamente o arroz doce, acender as velas e rir da eterna juventude dos rapazes. E aquecer as mãos junto à lareira.

Não sendo novo nem de agora, a tua ausência torna-se mais presente nestes dias. Uma espécie de vigília ronda o coração, tecendo lembranças antigas, convocando-te para que te acomodes entre nós. Estamos cá todos e outros vão chegar, porque o natal é com quem nós quisermos. Fazes-me falta.

sábado, 17 de dezembro de 2016

Natal

Penso nas escolas e penso na infância. Em algumas, pois, que escolas há muitas e infâncias, também. Penso e respiro. Penso nas infâncias mais difíceis, aquelas que me perturbam e me retiram a esperança nos homens. Penso e inquieto-me com a vida e a roleta da sorte. Penso no destino e nas escolhas. Penso que não há solução à vista para abrandar a indignação. Penso na pobreza, nas crianças à procura de abraços e na enorme desvantagem de não ter como aquecer o corpo e os sonhos.

Penso nas escolas, nas salas de aula, nas mesas e cadeiras, nas letras e números suspensos no quadro preto, coisas estranhas de aprender, funcionalidades curtas e sem sentido para o dia que cresce e vai anoitecer sempre igual, nos lugares mais escondidos da vida e do tempo dos meninos e meninas da escola.

Resultado de imagem para imagens arte naif natalPenso neles, nos seus risos e movimentos, nas birras e brigas, nos gritos, protestos desordenados de mau estar e inquietação, consciência aflita dos direitos não cumpridos. Penso neles e no que sentem sobre a desigualdade, expressa nos cuidados e aconchegos que não têm. Penso na radicalidade de chamar as coisas pelo nome, porque vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar.  

Penso nos professores e na dificuldade de escapar aos contornos e rasteiras do contexto, impor-lhe trâmites e limites, desafiar os seus efeitos perversos. Penso nos professores como arautos da mudança, fazer de novo e sem inércia, combater os medos e propor a alegria. Penso na possibilidade imensa dos seus afetos, do bem querer e do cuidar, coisa primeira para a relação, lastro certo para definir o prazer de aprender. Antes, durante e depois das letras e dos números. E para além dos rankings. 

Penso nisto tudo, neste natal. No cheiro dos doces e nas lareiras acesas e nos meninos que não têm direito a estar à volta da fogueira, em colos bons, mesas fartas e brinquedos desejados. Penso nisto, nas escolas e nos meninos e envergonho-me do nosso conformismo, da nossa indiferença e da nossa desistência.
Penso nisto e na nossa (eventual) impotência. Fazer o quê? se mais não for, nunca desistir. Continuar, fazer o que nos é devido, como o colibri, que combateu o fogo na floresta com bocadinhos de água que levava no bico e que, face à estranheza do elefante por reparar na pequenez da ajuda, lhe respondeu faço a minha parte. Façamos também a nossa. 

sábado, 10 de dezembro de 2016

Para o bem e para o mal

Respirar, neste sábado. Respirar forte e profundamente.
O dia ontem não foi de feição, consumiu quase todo o oxigénio disponível, aquele que anda lado a lado com a emoção, as crenças e as perspetivas, a amizade e o amor. O oxigénio que nos constitui como gente e nos alimenta a alma e o tempo. O oxigénio que nos faz sermos quem somos, exatamente assim e não de outra forma. Para o bem e para o mal.

Bem, ontem, foi a possibilidade de discussão, as ideias acesas e brigadas, porque somos gente da briga, (Paulo Freire), gente a reclamar o direito a pensar e a sentir. O bem, ontem, foi esse espaço de diálogo, talvez um pouco atropelado, vozes por cima e ao lado, à procura da melhor forma de pensar a planificação e a avaliação na educação de infância. Uma conversa desmedida, porque longas são as conceções que herdámos, incutidas em anos de escola, um quadrado é um quadrado, um cão é um cão, as grelhas dão jeito e as listagens de indicadores também, mede-se e pronto, põe-se a cruz e fica tudo ali, os meninos fatiados e descritos assim, aprendem ou não aprendem, e mostram ou não as aprendizagens e as evidências.

Bom ontem, não foi dizer isto, porque isto não se disse, foi saber que era isto que escorria por entre as palavras que se partilhavam, e poder de alguma forma, desocultar o sentido do aprender com as crianças e avaliar também com elas, em processos reais de interação, poder partilhado, negociação e cooperação.

Mal ontem, foi a impaciência perante estes restos de escola que moram dentro de nós, como uma espécie de zona de conforto e que impedem a adesão convicta a outros princípios e outras causas, exigindo uma formação longa, refletida, confrontada com a prática e os olhares de outros que sobre ela pensaram. Mal ontem, foi não atualizar, em contexto de discussão, que Roma e Pavia não se fizeram num dia e que necessitamos de conversar longamente sobre esta matéria, trocando por miúdos, o que queremos da educação de infância como lugar de desenvolvimento e aprendizagem de grandes e pequenos, com inclusão, diversidade e cuidado a todos e entre todos. 

Mal, ontem, foi ter experimentado o espartilho da formação, a escassez de tempo, o incómodo de não saber como fazer para destituir do seu pedestal, uma conceção bancária da educação em favor da educação problematizadora (Paulo Freire) que pensa e se pensa e se recria em coletivo e cooperadamente. Na avaliação e em muitos outros aspetos. 

Mal ontem foi ter ficado cansada e meia desistente, com uma irritação evidente, pouco controlada, que se amenizou à noite e desapareceu, pela visão do amor e da amizade, feito gesto de cuidado, atenção e solidariedade para com aqueles amamos, os amigos que precisam. 
Bem, ontem, foi a noite ter terminado assim, salpicada com um pouco de sofrimento, mas cheia da certeza de que cuidamos uns dos outros e que assim é que deve ser. Na vida, entre amigos. E nas escolas? E nas escolas, sim, também e sobretudo. 
Assim somos, a respirar, todos os dias. Para o bem e para o mal? Para o bem.