domingo, 28 de abril de 2013

Imagens e palavras

Andam a bailar imagens e palavras em mim. Suaves, mansas, algumas espraiam-se como se praia tivessem, outras recolhem-se, timidas, depois de terem assomado à janela do dia e não terem poiso para se aninharem.  Imagens e palavras intactas, com sons e cheiros entrelaçados, por certo comandadas pelo bater do coração e o desembrulhar da memória.

Andam a bailar imagens e palavras em mim: o riscar do lápis no papel, frases ditas em tom solene e inquieto, uma falésia num extremo da terra, becos íngremes de uma cidade,  casas sóbrias, decoradas a castanho e verde seco, rostos de homens e mulheres, corajosos e inquietos. Alguns muito duros. Capazes de arrasar mundo, tenazes e decididos. Para o bem e para o mal.

Andam a bailar imagens e palavras em mim: o crepúsculo do anoitecer com rio ao fundo, o som das portas a abrir, o esgar de um sorriso, o silêncio do medo, beijos apaixonados numa viela, diálogos saldados com cerveja e cigarros, perguntas e respostas em tempo(s) de ditadura. E os olhares de raiva e ódio dos que tomam como suas, razões para torturar. E amordaçar a liberdade.  As mãos destruídas que já não tocam Mozart.  

Andam a bailar imagens e palavras em mim: viagens de barco, com o rio azul e vento, lojas de camisas e portadas com postigos, óculos de ver ao longe e ao perto, estações de combóio, livros como arautos de outro futuro, amizades e compromissos sujeitos à roleta da vida. E do ciúme e da fúria. Mas também da esperança.

Andam a bailar imagens e palavras em mim, porque ontem fui ver "Combóio noturno para Lisboa" e como não sou critica de cinema, posso desfiar sem receio, ao correr da pena, impressões que me ficaram. Numa seleção breve, perante tanto que gostei do filme.  
Por isso, hoje, andaram a bailar imagens e palavras em mim. Muito mais que estas.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Onde estavas no 25 de abril?

Lembro-me muito bem do 25 de abril, estava em Almada. Tinha 17 anos e andava na escola Emídio Navarro. Acordei com o rádio a tocar e a minha mãe a dizer que tinha havido um golpe de estado, ou uma coisa assim, dizia ela e que não podía ir à escola. Estava com medo e preocupada. Apesar  de me ter dito para não sair de casa, aproveitei uma distração sua e escapei-me, com o coração a bater de alegria, um pouco estonteada. Queria ver e ouvir, presenciar e ter a certeza de que estávamos livres. Fui ter com a minha maior amiga e decidimos ir para Lisboa, era lá que tudo se estava a passar, não podíamos perder pitada de nada.

Em Cacilhas, de manhã parecia a tarde em hora de ponta, os barcos traziam muitas pessoas que regressavam a casa, por precaução. Ao tentar entrar no barco, disfarçadamente, demos de caras com um amigo do meu irmão que com autoridade e sem hesitar, nos impediu a ida e a aventura que planeávamos. Furiosas, mas sem poder fugir, obedecemos e jurámos voltar para casa. Iniciámos até o regresso, mas quando pudemos, virámos em direção ao jardim do castelo, para ver o rio e olhar Lisboa, do lado de cá. Mantínhamos a ideia de estar no meio das coisas, queríamos saber o que estava a acontecer e testemunhar tudo de perto. Era de certeza uma situação muito importante, sabíamos, apesar de muito jovens.

25abril criança espingarda cravo.jpg
No jardim nada acontecia e nós, num gesto de rebeldia, começámos a gritar liberdade e apanhámos umas flores de um canteiro junto a uma casa, de cuja janela saiu um rosto de uma senhora que gritou indignada:
- O que é isso meninas?  mas já ninguém tem ordem nisto? é isto que vai acontecer...

Fugimos a rir às gargalhadas e não me lembro de muito mais, a não ser que passei o resto do dia colada à rádio, contente e emocionada, a lembrar-me de situações que me tinham acontecido e que me confirmavam a certeza de estar a viver um dia único: os papéis que apanhava nos dias 1º de maio e que o meu professor de português dizia para guardar, porque eram perigosos; os livros que lia, na casa do meu irmão - a viver em conjunto com amigos -  que eram sobre poesia, politica, os campos de concentração na Alemanha; umas figuras de preto que chegaram um dia a uma coletividade onde fazia trabalho voluntário com crianças e que não permitiram que houvesse uma reunião de pais; o meu irmão a contar que tinha andado a fugir à frente da  policia, no Instituto e outras coisas que sabia e sentia,  porque como nos diz o poema, vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar. Apesar dos meus 17 anos, ouvia em casa do meu irmão Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira e trauteava as suas canções.

Nesse dia também cantei a Grandola e sempre que a ouço cantada pelo Zeca, emociono-me. E lembro-me do 1º de maio de 1974. Estive lá e nunca mais vi tanta gente junta a festejar a liberdade, a libertação dos presos políticos e a possibilidade de sermos livres. Nunca vi tantos abraços, tanto riso e tanto alivio. Uma longa noite tinha acabado e os dias de sol aí estavam, desafiando-nos a construir a vida, plena, cheia de futuro e liberdade. Até hoje, acho que é o nosso bem maior. Que como cantou o Sérgio Godinho ontem à noite, tem que ter, bem junto a ela, a paz, o pão, habitação, saúde, educação. Para todos.

Hoje, o 25 de abril faz 39 anos.
E já recebi o ramo de cravos, que o meu irmão me dá todos os anos. Um ritual por ele estabelecido e pelo qual sempre espero. Damos um abraço e dizemos "viva o 25 de Abril!". E só assim a comemoração fica cumprida. Com cravos e afeto(s).

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Palavras emprestadas: 25 de abril

Para que não esqueçamos... 

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio   
E livres habitamos a substãncia do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen 



domingo, 21 de abril de 2013

Lições de pedagogia: dói-me...tenho que gritar!

Lembrei-me dela na quinta-feira, quando vinha de Setúbal, depois de ter dado a aula na ESE. Lembrei-me do seu rosto bonito, olhos e cabelo preto, uma postura contida. Silenciosa, a andar pela sala de um jardim de infância onde estive, há muitos anos.
O ano tinha iniciado há cerca de um mês, estávamos todos em adaptação e a conhecermo-nos mutuamente. Um dia, da parte da tarde, um pequeno grupo de meninos perguntou-me onde tinha almoçado, por certo a tentar descobrir a educadora para além da sala. Respondi e devolvi a pergunta, que depressa se espalhou pelo grupo, gerando animação, muita partilha e conversas sobrepostas. As crianças falavam dos almoços com as mães, os avós, outros familiares. A N. estava em silêncio, a observar e eu, numa tentativa de lhe dar a palavra, de a incluir no grupo, perguntei-lhe:
- E tu, N. onde almoçaste?
Com uma expressão que nunca lhe tinha visto e uma voz também estranha, muito alterada, quase aos gritos, disse:
- Ai achas? achas que almocei com a minha mãe, achas?

Fiquei absolutamente surpreendida. A expressão do rosto, dura, o tom de voz, alto e acutilante, mostraram-me uma menina que não conhecia, furiosa e zangada. E comigo, parecia-me. Sabendo que não tinha pais e que vivia com uma tia, disse, num tom de voz o mais natural (?) possível
- Não, N., eu sei que não podias ter almoçado com a tua mãe, tu já não tens mãe, eu sei, ela faleceu e o teu pai também.
Falei pausadamente, escolhendo as palavras, um pouco a medo, sabendo-me a pisar terreno movediço, com os outros meninos muito calados a olhar para mim e para a colega, julgo que também a estranhar o seu ar resoluto e assertivo, quase desafiador, para comigo. 

Numa tentativa de amenizar a situação e torná-la mais leve - achava eu - perguntei-lhe:
- Tu lembras-te da tua mãe, tens fotografias dela?  
Olhou para mim, com os olhos muito abertos e num tom de voz ainda mais alto,  falando muito depressa, disse:
- Ai achas? achas que vivia numa barraca, velha e suja, e que tinha uma máquina fotográfica para tirar fotografias?

Acho que gelei, com a força das palavras e com o insucesso da minha pergunta pedagógica. Tinha-a feito para estabelecer pontes, suavizar o ambiente, reduzir a dor, restabelecer o diálogo. E tinha falhado. A N. parecia ainda mais zangada e triste. Com o silêncio em nosso redor e as caras espantadas dos outros meninos, falei a seguir, desta vez sem pensar muito. 

- Não, N. eu não sabia que tinhas vivido numa barraca, mas às vezes não temos máquinas fotográficas e alguém tira uma fotografia. Isso já aconteceu comigo, uns amigos tiraram fotografias a mim e aos meus filhos. Poderia ser que também tivesse acontecido contigo. 

Desta vez não adociquei a voz e não me preocupei com o tom pedagógico, utilizei a minha emoção e pensamento, com a clareza que pude  e  com a (in)certeza de que para tanta fúria eu teria que surgir e aparecer naquele momento, como alguém forte, seguro, que aguenta um embate de uma zanga profunda com o mundo, por parte da uma menina.   
Nesse dia não conversámos mais e a N. vagueou pela sala, o resto da tarde, triste e calada, sem falar com ninguém e quase sem me olhar. Tentei aproximar-me dela, mas recusou e eu respeitei o seu desejo.

No dia seguinte, quando cheguei à escola, a N. já lá estava sentada na soleira da porta, como às vezes acontecia, quando chegava mais cedo. Disse bom dia e olhou-me com os olhos calmos e doces. Perguntei-lhe se me podia sentar e ela abanou afirmativamente com a cabeça.  Ficámos assim um tempinho e depois, a N. olhou para mim e disse-me:
- Queres saber coisas da minha mãe?

E eu disse que sim. E ali ficámos à conversa, em voz serena, a N. a partilhar lembranças, com olhos tristes, mas um coração aberto, tanto quanto a idade dela o permitia. E eu em silêncio, ou com pequenos diálogos, a alimentar e a amparar as confidências que brotavam da sua boca e do seu coração de menina pequena. Quando outros meninos começaram a chegar, fomos para a sala e iniciámos o nosso dia. Lembro-me que tudo correu como de costume e que a N. se manteve atenta, silenciosa, com o seu sorriso doce, que aparecia quando olhava para mim ou interagia com os colegas.

Nesse dia e durante muito tempo, lembro-me de pensar que tinha sido bom alguém ter perguntado pelo meu almoço e eu ter devolvido a pergunta à N. Foi isso que permitiu os seus gritos e  a explosão da sua dor, escondida - julgo - há demasiado tempo dentro de si.
E as dores necessitam de ter tempo, lugar e gente para se dizerem. Mesmo que comecem com sete pedras na mão e alguns gritos. Terão que ser entendidas e acolhidas como uma forma legítima e imperiosa de expressão. Para que abram caminho para uma certa reconciliação com a vida. Antes que seja tarde.

domingo, 14 de abril de 2013

Domingo de primavera

De novo, domingo. Desta vez com muito sol.
Um cheiro forte a primavera, as árvores a vestirem-se de novo, os sons de pássaros no final de tarde, o corpo quente, com calor, um riso no peito, uma alegria no ar. A vida a transformar-se, a virar do avesso, depois de um inverno com chuva, dias cinzentos, húmidos e tristes.

E assim se faz o nosso tempo, entre chuva e sol, primavera e verão, outono e inverno. Estações do ano como estações da vida, que a vida também se alimenta do tempo que faz e daquele que se anuncia, por sinais e indícios, encontros e desencontros. E paisagens e desejos e sonhos e mistérios.

Domingo com sol, a terminar. Pela tarde, um café com uma amiga, numa esplanada, com sol a bater na cara e a aquecer o corpo. Um desfiar de palavras, um contar de nós, para dar alento aos sentimentos, projetos, ideias. Revisitar o passado, cimentar o presente, sonhar o futuro.  
Carregámos as baterias e eis-nos prontos para uma nova semana. Antes de dormir, uma frase de Vinicius, como síntese das muitas palavras ditas hoje. Num dia de sol, domingo.

"A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida"


sexta-feira, 12 de abril de 2013

Palavras emprestadas: Cativa-me, por favor

Na véspera de mais um fim de semana, em abril, de novo o principezinho, para reler e pensar naquilo que nos pode ligar uns aos outros, se soubermos e pudermos ter tempo e espaço nos agitados dias que nos consomem. Para criar vagareza e descobrir o essencial, que parece ser invisível aos olhos. Escutemo-nos e escutemos os outros.  Pacientemente. Têm tempo?   

"Foi então que apareceu a raposa
- Bom dia, disse a raposa
- Bom dia, respondeu delicadamente o principezinho. Quem és? És bem bonita! anda brincar comigo. Estou tão triste!
- Não posso brincar contigo, ainda ninguém me cativou, disse a raposa
- O que significa cativar?, perguntou o principezinho 
- É uma coisa demasiado esquecida. Significa criar laços, disse a raposa
- Criar laços?, perguntou o principezinho
-Isso mesmo. Para mim não passas de um rapazinho semelhante a cem mil outros rapazinhos. E não preciso de ti (...). Mas se me cativares, precisaremos um do outro. Para mim tu serás único no mundo. Para ti eu serei única no mundo...(...). Por favor, cativa-me, pediu a raposa 

- Não me importo, mas não tenho muito tempo.Tenho amigos para descobrir e muitas coisas para conhecer, disse o principezinho. 
- Só se conhecem as coisas que se cativam. Os homens já não têm tempo para conhecer seja o que for. Compram coisas já feitas nos comerciantes. mas como não existem comerciantes de amigos, os homens já não têm amigos. Se queres um amigo, cativa-me, por favor, disse a raposa.
- O que é que é preciso fazer? perguntou o princepezinho
- É preciso ter muita paciência. Primeiro sentas-te na erva, assim um pouco afastado de mim. Eu olho para ti pelo canto do olho e tu não dizes nada. A linguagem é uma fonte de mal entendidos. Mas de dia para dia, podes sentar-te cada vez mais perto. Se vieres sempre às quatro horas, às três eu já começo a ser feliz. Quanto mais se aproximar a hora, mais feliz me sentirei. Às quatro em ponto já estarei agitada e inquieta (...) mas se vieres a qualquer hora, ficarei sem saber a que horas hei-de vestir o meu coração. Os rituais são necessários.
- O que é um ritual? disse o principezinho
- É também uma coisa demasaido esquecida, disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias, uma hora das outras horas. 
E foi assim que o principezinho cativou a raposa. E quando chegou a hora da despedida, a raposa disse:
- Ai, ai que me vou pôr a chorar...
- Então não ganhaste nada com isso!, disse o principezinho
- Ai isso é que ganhei...por causa da cor do trigo, disse a raposa
- Adeus, disse o principezinho.
- Adeus. Vou contar-te um segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos. Foi o tempo que perdeste com a tua rosa, que tornou a tua rosa tão importante. Os homens já se esqueceram desta verdade, mas tu não te deves esquecer dela. Ficas para sempre responsável por aquele que cativaste"    Antoine Saint - Exupéry

segunda-feira, 8 de abril de 2013

A importância dos registos

Estou para aqui meia calada, assim com uma ponta de saudade e nostalgia, a relembrar o que hoje vi e aprendi. Ficaram-me na retina e na memória as imagens das fotografias e uma espécie de cheiro desse tempo. Creio mesmo que sinto as brincadeiras do recreio e o jardim meio selvagem, cheio de esconderijos fantásticos que os arbustos e as ervas "não tratadas", permitiam. Não sabem do que falo? Eu conto.

Em 1978 uma jovem educadora iniciou o seu percurso de trabalho, num jardim de infância em Lisboa. Trazia dentro de si todos os sonhos para fazer educação que é como quem diz, educar e cuidar de crianças, o melhor que pudesse e soubesse. Para isso sabia da importância de fazer caminho em companhia aprendendo com os meninos, as famílias e colegas mais experientes. Aceitou assim o desafio de deixar entrar na sua sala uma Educadora de Infância do Ministério da Educação, que na altura, acompanhava, em jeito de supervisão (não se conhecia o conceito, mas era isso...) os jardins de infância da rede publica. Aceitou o desafio com receio, mas cheia de convicção. Os olhares dos outros, se amigos, ainda que às vezes criticos, como convém, só nos podem ajudar a sermos mais e melhores profissionais.

Passado 35 anos, numa formação sobre portfólios que a educadora frequenta (já não é jovem, entenda-se, mas ainda acredita na necessidade de uma continua aprendizagem, sempre em companhia) a formadora faz uma surpresa, coloca um projetor (antigo) e começa a passar slides, tirados em 1978, num jardim de infância de Lisboa.

impressões, mãos, criançaEis que me vejo, entre meninos e com eles, a preparar um "projeto" (sim estre aspas, nessa altura pouco se falava disso) para comemorar o dia da criança, em conjunto e para os meninos da primária, de uma escola vizinha. Entre o espanto e a emoção, fiquei para ali a olhar, concentrada nas imagens de meninos e meninas que hoje têm mais de 30 anos e que à minha frente, se revelavam a fazer coisas...combinar e escrever o que gostariam de fazer: teatro, bolinhos, uma corrida...foi necessário escrever os números e decorá-los para colocar na camisolas, colocá-los por ordem no placar, bater a farinha e o acúçar, colocar os bolinhos nas formas, inventar a história para o teatro, distribuir as personagens, abraçar uma menina mais "irrequieta", dar tempo aquela que chegava sempre tarde (os pais eram atores, eu compreendia e recordei o ar teatral desta minha menina, que chegou a ir ao jardim zoológico com um vestido até aos pés).

Apesar de não me lembrar de tudo (será que esqueci o essencial?) com as imagens, alguns nomes de meninos romperam em mim, de repente e lembrei-me de muitos deles, desse tempo e de um certo fazer pedagógico...e espantei-me e emocionei-me e calei-me. A formadora (a mesma que em 1978 me inundou a sala com uma máquina, apoio e muito saber), fez a narrativa, com uma memória absoluta, que avivou a minha e o processo de trabalho. Para além dos produtos (e sim eles estavam ali, podiam ser vistos) o como e o porquê fundamentais na pedagogia

E recordei este início de profissão, a força que punhamos em tudo o que fazíamos, a descoberta de ser educadora na rede publica, acabadinha de ser criada, com gente como eu, acabadinha de vir da escola de formação. Valeu-nos o sonho, a procura, o investimento, o desejo de saber mais e melhor. E valeu-nos, na altura, este apoio de educadoras experientes que com entusiasmo, seguiam o que faziamos, apoiando, provocando, ensinando. Em supervisão.
O meu muito obrigada, Mili. Ah, e também por me ter visto tão jovem e tão novinha. Que saudades!

domingo, 7 de abril de 2013

Pedagogia ao sábado

Sábado cheio. Completamente. Cheio de pessoas, palavras, opiniões, teorias. Um vai e vem constante, gente que sobe e desce escadas, sorri por se rever, protesta porque não concorda, pergunta para saber, comenta e afirma. Uma sala cheia de gente. Gente que pensa, ama, decide, recusa, interroga-se. Abana a cabeça a dizer que sim, desvia o olhar a dizer que não. A espantosa aventura da diversidade e da diferença. Não apenas do rosto, da expressão, dos adereços, da idade. Sobretudo da lonjura dos horizontes e das perspetivas que defendem.

Um sábado cheio de gente. Unidos pela profissão, ali estavam, sedentos por ouvir, curiosos, interessados e atentos. De vez em quando um burburinho espalhava-se pela sala, confontavam o que ouviam com o que faziam, só assim se explica as constantes conversas em tom baixo para a colega do lado.

Lá à frente, a formadora com larga experiência, mostrava a paixão pelo que dizia e acreditava ser fundamental na educação das crianças até aos seis anos. A importância da escuta do adulto, a criança como atora do seu mundo, a ética nas relações, a pedagogia como ação intencional para um desenvolvimento e uma aprendizagem com poder e participação por parte da criança. A crianças como agência. E dizia e repetia e inundava o tempo com energia e saber. Depois uma educadora, aqui também formadora, a mostrar como faz e pensa e projeta a intervenção, na sua escola, com as colegas. Um trabalho sério e investido, refletido e continuamente avaliado. A riqueza de um quotidiano pedagógico, dito e revelado de forma simples, mas profunda. Contado na 1ª pessoa, mas resultado de uma postura coletiva e de equipa.

Depois as perguntas, no meio das intervenções, era preciso perceber melhor, para apontar nas folhas e registar na memória. Também os desabafos em voz alta, a dizer da falta de condições, a protestar contra os responsáveis, os do Ministério, que muito falam e pouco fazem. De novo as perguntas, mais situadas, sobre o que foi dito e contado, que é preciso não desistir, mesmo quando tudo é contra e nada a favor. É preciso tentar, nos corredores de liberdade, que cada profissional possui, fazer o melhor possível pelas e com as crianças e o seus contextos de desenvolvimento e aprendizagem.

No fim, tudo a sair, muita gente, educadoras unidas pela profissão, de vários locais e contextos de trabalho. As despedidas, mais um café, grupos a sair e a subir as escadas, risos e conversas, arrumar os livros, os computadores, as mesas, as máquinas de café, deixar tudo arrumado e no sitio.
Quando por fim todos saíram, a sala ficou em silêncio. No meio dela, sem ninguém por perto, parecia ainda ouvir-se todas as ideias ditas sobre a educação dos mais pequenos, que necessitam de muitos destes sábados para que aprendamos a servi-los cada vez melhor. Como é de seu direito de pessoas a crescerem, coisa que sendo evidente, não é nada simples nem linear.
Sábado cheio. Completamente.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Conversa com a minha mãe

Precisava que estivesses agora aqui, é abril e em abril, nunca te disse, mas os sonhos são mais prementes e também mais voláteis, escapam-se num ápice pelos gestos mais distraídos, estamos à janela do tempo, a olhar para as flores, a espiar a chegada da primavera e lá vão eles sorrateiros, para outro poiso fazer o mel, parecem abelhas inquietas...
- Falas de quê, tu? 
- Dos sonhos mãe, e por isso dizia que precisava que estivesses aqui...
- Para me falares de sonhos?
- Sim. Não, deixa. Queria só que viesses, a andar lentamente, e depois tomávamos café com leite, na cozinha, enquanto faziamos o jantar. Tu arranjavas os grelos e eu descascava as batatas...e falávamos de coisas simples, talvez da chuva que cai há tantos dias, sem ponta de sol a sério...
- E a casa, na terra, há-de estar tão húmida! Tenho que telefonar, para que a vão arejar...

E depois a água da panela fervia e punhas lá o bacalhau e provavas de sal, para ficar saboroso, à tua moda.  E era à tua moda e contigo que hoje queria estar, a escorregar pelo dia que se aproxima da noite, sem estrelas e luar... 
- Está escuro como breu, nunca mais os dias ficam compridos. Quando chegam os rapazes?

Ias espreitar a rua e o seu regresso a casa e porias a mesa, desalinhando os talheres, como sempre fazias. Uma marca tua, criativa, que nos fazia rir. A ti também. Depois jantávamos e ias depressa ver um debate televisivo, sentada no teu sofá. E atenta, farias os teus comentários habituais, que inundariam de interrogações a sala morna com a nossa presença. 

Era assim que eu precisava que fosse o início de abril, tu connosco, para espantar este inverno que vem de longe e não me dá folgas. Nem folgas nem alentos, deixando os sonhos em suspenso, como bolas de sabão que ao minimo movimento, rebentam. Os sonhos são coisas muito frágeis, mãe. Mas acho que não te diria nada sobre isto. A tua presença a cirandar pela casa bastaria para aquietar o tempo.
- És sempre a mesma, preocupada com tudo. Eu acho é que estudaste muito. E lês muito e escreves muito. E pensas muito. Se calhar teria sido melhor teres ido para costureira...

Se calhar mãe. E se calhar abril seria mais fácil e a vida também. E se calhar não teria tantas noites como esta em que precisava que estivesses aqui. Para aguentar o dia que amanhã vai chegar.