terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Quanto custa a vida?

Quanto custa a vida?  Hoje acordei com esta pergunta, em jeito de balanço. É fim de ano, somos dados a sínteses e promessas.

Quanto custa a vida? quanto de nós se esvai na liquidez dos dias e na luta de ser gente, entre iguais e diferentes? quanto pagamos pelo pão e pela comida na mesa? quanto pagamos pelo amor no coração e na alma ardente? quanto damos, recebemos e recusamos?

Quanto custa a vida? quanto pagam as crianças que vivem na pobreza e espreitam um futuro que foge desalmado? quanto pagam os sem casa, pela praça deserta e o cartão que não cobre o frio?  quanto pagam as mulheres maltratadas? e os outros, marginalizados?

Quanto pagamos pelos sonhos desfeitos, pela procura da verdade e a alegria da liberdade? quanto pagamos pelas nossas ideias? quanta força despendemos no içar das bandeiras que colocamos ao alto? 

Quantas lágrimas derramamos no correr do tempo, quantas rugas se formaram e se tornaram pele, quantos ensaios rasgámos e reescrevemos, quantas palavras se foram, sem verbo e conjugação?  

Quanto nos custa rebeldia e a alegria? e a solidariedade a bondade? o canto e o poema? quanto nos custa ser gente de corpo e alma inteira? 

Que 2020 possa ser um ano livre de pagamentos coercivos. A pagar, que seja em cestos de géneros livres de impostos: igualdade, direitos, justiça, pão, saúde, trabalho para todos. Sem distinções.
E amor e rebeldia. Muito. Sempre. 


sábado, 21 de dezembro de 2019

Sentir a falta...

Aqui estamos de novo e de novo me fazes falta. Este ano, ainda mais, estou deslaçada com este tempo, eu que aprendi a gostar tanto do natal. Perdi-lhe o encanto? Não, aumentaram as perguntas e as cismas, como dizias, quando te querias referir aos meus silêncios disfarçados.

E no entanto, queria sentir esse gosto bom do cheirinho a natal, uma espécie de alegria secreta e calorosa, salpicada de risos e afagos. Por isso, fazes-me falta. Não que fosses muito pronta na expressão dos afetos, a educação moldou-te em contenção e pudor, mas eras a minha mãe, de rosto doce e menineiro e por isso te queria aqui. Para me olhares com olhos de interrogação e anuir, contente, com as minhas decisões. E eu a ficar mais amparada nesta eterna necessidade de obter aprovação. Coisas de menina pequena que o tempo não apaga.
foto J.I. Trafaria

Queria-te aqui, neste natal, para ficar menos só, apesar da casa cheia. Queria ainda ser filha, e mesmo que não pudesses cortar-me o cabelo e deixar a franja curta ou dar o laço, a preceito, nos bibes de andar por casa, queria-te aqui para sentir que tudo está bem e certo e por isso, tudo é justo e promissor.  


Queria-te aqui por casa, para irmos comprar as couves e o bacalhau, medir-lhe a altura e discutir os preços, sacudir o sal e meter no saco e depois, cansadas, tomar um café com uma broa de mel. E regressar a casa, cirandar contigo, dispondo as velas e os pratos e sacudindo com jeito, as migalhas do pão com manteiga, que comíamos, satisfeitas, no intervalo destas lides. 

Queria-te aqui, para me ficares a ver, meia embevecida, a embrulhar os presentes e a alindar-lhes os contornos, com jeito, confirmando o meu gosto por pessoalizar cada um, com detalhe. E depois havíamos ainda e de novo, de discutir o trabalho que isto dá, tu a tentares convencer-me que talvez não fosse necessário, eu a saber que acreditavas, tal como eu, que é isso que faz toda a diferença nas dádivas que damos uns com os outros.

Vês porque te queria aqui neste natal? para o fazermos e vivermos na cumplicidade boa que este tempo construía em nós. De mãe para filha. 
De novo, no natal e sempre, fazes-me falta.


terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Recato e pensamento.

Refugio-me no meu coração, que o tempo é de recato. Chove lá fora e a casa quente diz-me que tenho sorte. Alguns dirão que é justo, que a ela tenho direito, porque trabalhei a vida inteira. Pois sim, mas outros também o fizeram e casa não têm.  Não sei resolver esta equação, mas sei-lhe o sentido e a injustiça. Hoje permito-me não pensar nisto, apesar do frio.

Refugio-me no meu coração, para não me perder. Quero-me inteira e capaz de pensar, com a razão e a emoção. Dá trabalho esta conjugação, acertar os pesos da balança, que de instável, pende, às vezes, para uns dos lados. E poucas coisas são binárias, ainda que na nossa pequenez gostemos de arrumar a vida entre "isto ou aquilo". Não chega, face à dissonância do mundo.

ilustrações do natal - JI Trafaria
Refugio-me no meu coração e sou procura e consumação. Uma espécie de criança pequena espantada no tempo e com os homens que o habitam. Do lugar onde estou, o que vejo perturba e inquieta. Campeões de corridas, queremo-nos rápidos e invencíveis. A velocidade como meta, mesmo sem saber o caminho. E importa? Depende, não me sinto capaz de discutir cenários.

Refugio-me no meu coração e tento sossegar. Aquietar-lhe as razões e os desvarios, contê-lo, para que não se distraia com as luzes cintilantes da época. Reter apenas o essencial, nas noites frias do mês presente. Um agasalho, uma chávena de café, um pão quente, um abraço presente. Nós com os de casa e os da nossa vida, que são esses e outros. Quantos? Não importa, hoje não faço contar de somar, hoje as contas são de acertar.

Refugio-me no meu coração e acerto-me. Eu comigo, entre as vozes e as nozes, que o tempo é de natal e frutos secos, exige recato e contenção. Ser outra coisa, no meio do desatino e do comércio, ser essência e frugalidade, ser conduto na mesa e braseira para o frio. Suficiente? não sei, apenas me ensaio e me experimento, acertando duvidas e certezas, querendo-me inteira e a pensar. Para não me perder, neste natal. Por mim e pelos outros.

   

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

De que matéria somos feitos?

 De onde nos vem a luz que temos cá dentro e ilumina os cantos sombrios da vida? de onde nos chega a convicção e o encanto, a beleza e a alegria, a raiva e a cobardia? porque teimamos na vela acesa, como sinal para o caminho? porque rimos e choramos e ainda assim, continuamos, trémulos e prontos para o que amamos? de onde nos chega o amor pela liberdade, ultimo reduto da nossa verdade? de onde nos vem a rebeldia, a fé sem rumo na ousadia, o querer ir e apostar, o partir e procurar? porque nos mantemos de pé, firmes e capazes de muitos feitos, quando estamos, às vezes, desfeitos? porque queremos, acreditamos e vamos?

desenho da Sara -  JI da Trafria
De que matéria somos feitos, neste mundo dividido? os que discursam e os que fazem, os que insistem e os que desistem, os que escutam e os que falam? os que tudo têm e os que nada terão, os que adoçam a boca com broas de mel e os que suportam a fome e o fel?

De que matéria somos feitos, para aplaudir de pé vitórias breves, obedecer e anuir, esconder a voz e o porvir? O que nos leva a iludir  a nossa vidinha, rodeados de tanto ter, a consumir e a inventar o que ainda há para arrecadar? De que matéria, sonhos, convicções e enganos somos feitos?  

Neste natal, tantas perguntas, a inquietar o lado mítico da época. Por entre estrelas e luzes cintilantes, um estremecimento no corpo, uma alegria insatisfeita, uma ternura com medo. E ainda assim, o contentamento por tudo se repetir, mais uma vez. E ainda assim, a beleza do presépio, o cheiro do musgo da infância, a alegria de estar vivo, pensar, sentir e escutar. E ainda assim saber ouvir a aceitar as vozes de dentro, sem assombrar as de fora, feitas palavras, risos e abraços daqueles que amamos. 

Que seja natal, com e para lá da matéria de que somos feitos. 

sábado, 2 de novembro de 2019

Tempo e intimidade

Um sábado de outono. Céu cinzento, campos molhados, gotas de chuva a salpicarem de mansinho os dias que vamos vivendo. Chegou novembro. Gosto deste regresso, a prometer o cheiro de castanhas assadas e a intimidade boa de uma sala quente. Com sofá e livros. E conversas longas. 

Gosto deste tempo e da possibilidade de recato e interioridade. O tempo ameno, às vezes agreste e frio, a convidar-nos para olhar para os nossos botões, em boa companhia. Uma espécie de hibernação dos dias fartos de sol, que puxam para o terreiro e para o estonteamento da vida.

Gosto deste tempo e de poder refazer a roda dos dias, mexer-lhe na direção e nos contornos, cimentar o sentido do que somos. Gosto de conversas longas à volta da lareira, ou na mesa de um café, com amigos que, como nós, apreciam o desfiar das palavras para a composição do mundo. Gosto de falar de crianças, de pedagogia, buscar os sentidos da profissão de educar crianças, tarefa sempre sujeita a perplexidades e desafios. Gosto de partilhar livros, comentar filmes que nem vi, pegar na minha alma e mostrar duvidas e medos pouco confessados. Desnudar-me e reinventar-me. 

Mas para isso, é preciso ambiente e luz certa, contemplação, retraimento e pudor, que há uma diferença entre "dizer coisas ou ter coisas para dizer". Por isso, gosto muito do outono, a escorregar de mansinho para o inverno e do tempo fusco, sem luzes da ribalta, num aceno discreto à companhia das palavras e conversas boas. 

Como a poesia. Aqui fica. 

Os ritmos

Inventei a dança para me disfarçar.
Ébria de solidão eu quis viver. 
E cobri de gestos a nudez da minha alma
Porque eu era semelhante às paisagens
esperando 
E ninguém me podia entender. 

Sophia de Mello Breyner in Coral 1950

sábado, 19 de outubro de 2019

Memória e afetos

Sei que se encosta, calada e triste, aos pilares das suas memórias antigas e estremece, de medo, quando as palavras lhe faltam, numa conversa solta, à mesa do café. Volta-se do avesso e retoma o prumo, brinca e graceja, por entre uns laivos de surpresa triste que assombram os olhos cansados. Talvez se estranhe e se inquiete, porque foi sempre um rio de palavras, uma cascata forte, um mar incansável para os sentidos da vida. 

Sei que teima, todos os dias, para repor o que sempre foi e já não é, mas sobram espaços em branco e tempo atabalhoado. Perde-se em pequenos recantos, manuseia objetos e sente-lhes o cheiro, na ânsia de se encontrar, de novo e para sempre. Compõe, com precisão lenta, objetivos e propósitos diários, reafirmando a si e aos outros, a sua liberdade e autonomia, princípios de que nunca abriu mão. Lê, passeia, escreve e reescreve, para tornar imutável o que lhe escapa e não retém.

E sofremos com ela e por ela, negando a fragilidade que nos esconde, mas que escorrega, teimosa e ilícita, pelo seu corpo e pelos gestos. E sentimos saudade dela e da sua experiência em nós, porque foi sempre uma amiga certa, uma casa cheia e um colo amigo. Porque foi sempre rebelde, lúcida e socialmente comprometida com a vida e com o mundo. 

Como aceitar agora que se esconda em lugares remotos e deslaçados, a que dificilmente acedemos? Como conciliar o seu desejo de liberdade e a nosso dever de proteção? Olhamo-nos ao espelho e o que vemos incomoda o que tínhamos como dado e garantido. Não sabemos ser nem fazer. Olhamo-nos ao espelho e o que vemos, assusta, porque nos revemos hoje e no futuro. 

Sem o poder de voltar atrás no tempo e nas circunstâncias, resta-nos acreditar no poder do amor, da amizade e do compromisso. Resta saber e sentir que amor com amor se paga. Será suficiente? Tentemos. 


sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Dias de outono

Há dia assim, acordamos suspensos por uma pontinha de saudade, a preencher, intermitente, o bater do coração. Como um fio leve, uma gotinha de água, um sopro de vento, uma pedra lisa. Coisas breves e talvez ligeiras, simples, inócuas, mas ainda assim, inteiras e presentes. E ficamos mudos, meio perdidos e inquiridores, nas emoções que se entranham nos dias. Saudades de quem e de quê? do riso longo das crianças da escola? das vozes tranquilas dos amigos de sempre? dos filhos grandes que voaram do ninho? da mãe que partiu e já não está presente? de alguns passos de dança e de um entardecer lindo? dos sonhos de sempre e de tantas quimeras? da juventude que foi e que já não é? 

E ficamos assim, inundados de uma saudade sem nome, à procura de um sentido para as histórias que persistem em nós, neste outono que chega de mansinho. Dias amenos, infinitamente belos, deslizam, sem pedir pelos nossos lugares, antecedendo as noites curtas e frescas, a pedirem castanhas quentes e boas para os corações cansados. E um casaco de lã, e um lugar junto à lareira e um sorriso de amor. E um canto e uma alegria e um poema. Sim, um poema, para reter a beleza dos dias e a melancolia do que não sabemos, mas permanece em nós.
Aqui fica. De Eugénio de Andrade.

O Espírito do Outono

Terei de falar do espírito do outono

agora que setembro

chegou ao fim. (Espírito

é palavra suspeita: não há

hipócrita que não se abrigue

à sua sombra.) Será

a embriaguez? O vento matinal

arrastando folhas

raparigas canções?

O sopro frio das estrelas?

Será a beleza,

o espírito do outono? Há um limite

para o homem, um limite

para suportar o peso do mundo.

Da beleza, da bárbara

orgulhosa beleza, quem sabe defender-se

sem medo do coração lhe rebentar?


In "O Sal da Língua"
 

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

A companhia dos livros

Livros rimam com férias, tempo sem horas e corpo descansado. Os livros...com palavras alinhadas a revelarem vidas, ideias espalhadas em páginas brancas e lisas, bonitas, algumas com cheiro, por certo a desprenderem-se das pessoas que nelas habitam e nos contam histórias de si e dos outros e que ficam nossas também. Às vezes quase em espelho, às vezes quase a doer. 

Os livros, essa companhia perfeita para silêncios desejados, metemos na mala, pegamos na mão, deixamos no sofá, saímos à pressa e voltamos para trás, para os levar connosco, porque se tornaram uma espécie de prolongamento de nós, do qual não abdicamos: capa, título, tema. Vivem connosco e sentimos-lhe a falta, todos os dias.

Gosto desta dependência, deste compromisso inteiro com as palavras, deste reino onde estou eu e o autor e a sua (re)construção da escrita e do pensamento, um ato de cultura e exposição, que me deixa, tantas vezes, em suspenso, pela audácia e inteligência das palavras escolhidas, que se tornam quase perfeitas - assim pensamos - para dizer o que tem que ser dito, naquela página, lugar, tempo e contexto. E abrimos a boca, estarrecidas, pela confirmação de tanto talento, sensibilidade e conhecimento. E agradecemos por sabermos ler, interpretar e prolongar as palavras na nossa vida. E agradecemos o acesso a este bem, que não sendo de primeira necessidade, assim devia ser considerado.   
 
É claro que não falo de todos os livros, mas daqueles que elejo para companhia e diálogo, os meus livros, que procuro com saudade, autores que conheço e me mostraram a claridade dos dias, outros que descubro e me espantam, alguns que me são sugeridos e partilhados por amigos. Lendo-os, afeiçoo-me e integro-os em mim, cativa das suas propostas e benefícios, reforço a minha convicção e alegria na diversidade do mundo e dos seus autores. 

Por agora e nestas férias, acompanho e comprometo-me com "O regresso a Reims" (Didier Eribon); "Eliete" (Dulce Maria Cardoso) e tenho guardado, para iniciar, "Sem fins lucrativos" (Martha Nussbaum).
Pelo meio (e no fim e no princípio e sempre...)  leio de novo Sophia de Mello Breyner e descanso na sua poesia. Aqui fica, pelo mar e pela liberdade.


Liberdade

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

(in No Mar Morto, 1958)  

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Em tempo de verão, sorte e amor para a menina

Neste tempo quente e de mar por perto, nasceu mais uma menina na família. Podia perder-me nas águas do mar, lavar a alma do tempo cansado, refrescar-me nas horas do amanhecer, mas tudo apela a que pense nela, menina nascida em terras de Escócia, de mãe Polaca e pai Português, que é meu sobrinho, brincou comigo em pequeno, partilhou conversas sérias no sótão, passa, ainda hoje, a consoada na nossa casa. 
   
Olho para a foto da menina e enterneço-me pelo rosto lindo, em sono tranquilo. E o casaquinho azul, com lacinho cor-de-rosa. E penso nos pais e no seu amor, antevejo-o às vezes surpreso, às vezes frágil, às vezes inquieto, mas sempre intenso, desmedido e do tamanho do mundo. E confirmo mais uma vez que o mistério da vida se cumpre e que sendo comum e tão antigo, ganha novos sentidos, renovando uma espécie de fé no destino. E de novo tudo pode ser construído, a beleza do amor em beijos macios, a pele suave num corpo pequeno, os primeiros risos e  choros, as noites suspensas pelo cheiro do leite, que a mãe dá para alimentar a filha, no corpo e no coração. E parece-me que não há dádiva maior nem mais intrigante, transformadora e difícil de levar a bom porto. Porque é preciso, para além do amor, muita sorte e coragem para este desafio de fazer alguém ser a sua melhor promessa. 
Por isso, para a nossa menina, eu desejo, daqui do sol e do mar, uma vida longa e cheia de boas marés. Com búzios e conchas de muitas cores, dias lentos para saborear a infância, brincadeiras alegres em dias felizes, abraços grandes para amarrar os laços do amor sem fim. E para os pais, desejo a persistência para fazer a vida acontecer, astucia para descobrir o norte nas noites mais cansadas, saúde e capacidade para educar e amar, sem fim à vista. Porque é disto que se trata, quando temos um filho: embarcar, com convicção, numa viagem sem retorno, onde quase tudo depende de nós e da sabedoria para içar a vela e velejar ao sabor do vento. Sem medo e com muita alegria.
Que seja bom, desafiador e promissor o futuro da nossa menina e dos seus pais.
Parabéns, beijos grandes e muita sorte na vida!

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Amor e autonomia

O sol lá fora a inundar o mundo e eu, cá dentro, cativa de mim.Tento clarear ideias, enxotá-las do mofo, conceder-lhes a primazia para arrumar emoções confusas, que sorrateiras se apresentam hoje, por entre as malas que fazes, para partires de novo. Continuas firme na procura de um lugar ao sol, ainda que digas que este é o melhor sol que podes ter. Mas não chega para cobrir toda a geografia dos teus sonhos.    

Não é fácil aceitar a autonomia no amor. Bem que a podemos proclamar aos quatro ventos, defende-la como condição da vida humana, a única via para ser gente. Quando a nós toca, o conceito perde força e adquire um sentido ambíguo, que aproveitamos, em segredo, para explorar. Um pouco ingénuos, banalizamos a sua utilização e sentido, ignorando os impactos da sua presença nos nossos dias. Nos desafios que ousámos enfrentar no nosso crescimento e no crescimento dos nossos.

Não é fácil entender e aceitar a autonomia no amor. Percecionar o outro fora de nós, alimentar os seus intentos para longe do nosso chão, pressentir a sedução de desafios improváveis e mesmo assim, continuar crente na espera da sua revelação. Não é fácil apoiar este percurso e esta liberdade, que vai sendo escolha, consciência, palavra e ação. Connosco, mas sobretudo para além de nós.

Não é fácil aceitar a autonomia no amor. Porque exige reconfigurar o calor do colo da infância e o sentido de proteção que nos impusemos quando, convictos, inaugurámos em nós a construção de outro(s). Porque implica reconhecer a sua existência como sujeito autónomo, a sua essência e identidade, num compromisso ético pelas suas escolhas.

Não é fácil aceitar a autonomia no amor. Porque nos idealizámos como bússola, ponto cardeal e caminho a seguir. Porque nos apropriámos de um papel definitivo e revelador para a vida do outro(s).  Como se fosse possível cumprir essa odisseia, em redoma e para sempre. Apesar de todo o amor.  
  

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Bilhete de identidade


Aqui estou, frente ao espelho e à vida. 62 anos de mim, sem saber como. O corpo a encaixar-se no tempo, a alma a querer outros rumos. E mudos de espanto nos quedamos, entre memórias e sonhos fatigados, que como o corpo, se aconchegam à cadência do tempo. O tempo com brisa suave e pouca urgência. Já nada renova o prazer do que vem a seguir. O futuro parece perto, desfiado em palpites breves e viciados.

E, no entanto, de vez em quando, o som trémulo da alegria e a paixão de ainda ter, por entre a pele, uma janela para a lonjura do mar e dos sonhos. De vez em quando o prazer de um livro, o espanto de saber que homens e mulheres compõem inteligentemente a cultura, produzindo saber e compreensão do que somos. Uma felicidade imensa por pisar a terra, abraçar a vida e o porvir, acreditar na coragem de gente boa. 

De vez em quando, o esquecimento do caminho feito, por se almejar, com todas as forças, um novo nascer e uma terra prometida. Como se criar fosse a única possibilidade para os dias que nos cercam. Hoje, como sempre, desafiar o medo da morte lenta, que nos confina a noites escuras e abafa os dias claros. 

Aqui estou frente ao espelho, olhando-me por todos os lados, procurando uma nesga para alvitrar poemas certos para corações cansados. Porque a cegueira à beleza dos dias é moléstia feia para alimentar. Continuemos, pois do lado certo do desassombro. Apesar dos 62 anos. 

sábado, 23 de março de 2019

Inclusão, compromisso e ética

Mais um sábado pedagógico. Desta vez sobre a inclusão e o novo decreto. Muita gente quieta e inquieta, a ouvir o que se diz e a pensar no que se faz. Sentadinhos nas cadeiras, não dissemos como no poema da Rosa Colaço, Senhora olhe p´ra vida, deixe as contas de somar! A vida, a nossa, de professores e educadores, estava ali, pronta a ser revisitada numa escola que só pode ser lugar de equidade e diferenciação. Por todos e para todos.

Uma comunicação clara, argumentos audazes, palavras desassombradas, a provar que a força das ideias e dos princípios é o chão e o céu que precisamos para nos pormos ao caminho. E mudos de espanto, convictos e resolvidos (por agora?) aderimos ao discurso e lá vamos nós, contentes e animados, somos muitos e não estamos sós, podemos mais do que julgamos, se é para ser que seja já.

Por entre a elucidação do que já foi feito e do que falta ainda cumprir para uma escola inclusiva, nós, em silêncio, com a cabeça à roda, perdidos e achados nos educadores que somos. E confrontamos o que fazemos, compromissos e cuidado(s) com os que na escola connosco vivem em jornadas de aprendizagem. E recordamos meninos e meninas, iguais e diferentes, famílias com rostos e histórias, equipas empenhadas e outras que nem tanto, projetos e conversas, reuniões, acertos e desacertos. E respiramos, entre o medo e a alegria.

E tentamos desatar o que nos espartilha, despimo-nos de velhas roupagens, mesmo aquelas que não usadas diariamente, ainda pegamos em dias de sol pardo. Porque os há. Dias pardacentos, traiçoeiros e manhosos, em que sem saber como, destilamos algumas crenças apreendidas pela força das circunstâncias pessoais, sociais e políticas. Porque somos também e ainda a escola que nos coube, por legado e tradição. Porque somos, sem quase nunca querer, o poder e a decisão, a norma e o padrão, o certo e o errado.Assim, porque sim.

Inventar uma outra escola, a partir do que já fazemos bem, urge deitar fora o que nos aprisiona e distorce. Urge estar alerta, para não cairmos nas rasteirinhas da prática, aquelas que nos segredam que a inclusão de todos, esta agora, sim, é quase impossível. Não, é tarefa de monta, sim, exige estar e trabalhar com outros, em cooperação e coletivo, equipas multidisciplinares, autónomas e ativas, éticas e capazes de trabalhar sobre o trabalho. E crentes. E corajosas, para poder, às vezes, dizer que o rei vai nu. E o rei são todos os meninos e meninas e famílias que aprendem lá na escola onde todos vivem, muitas horas por dia. E o rei são todos aqueles que a escola ainda deixa para trás, por alienação, desigualdade, elitismo.

Fácil? não, viver com os outros é difícil, como nos disse a Ariana Cosme, a dinamizadora do nosso sábado pedagógico. Obrigada por este dia e esta reflexão. Obrigada pelo entusiasmo e pela possibilidade de poder ser. Obrigada às colegas pela partilha das práticas de cooperação entre profissionais e meninas e meninas do 1º ciclo e jardim de infância. Obrigada por acreditarem e fazerem.
Obrigada a todos os que, apesar das dificuldades, insistem e persistem.