segunda-feira, 29 de julho de 2019

Em tempo de verão, sorte e amor para a menina

Neste tempo quente e de mar por perto, nasceu mais uma menina na família. Podia perder-me nas águas do mar, lavar a alma do tempo cansado, refrescar-me nas horas do amanhecer, mas tudo apela a que pense nela, menina nascida em terras de Escócia, de mãe Polaca e pai Português, que é meu sobrinho, brincou comigo em pequeno, partilhou conversas sérias no sótão, passa, ainda hoje, a consoada na nossa casa. 
   
Olho para a foto da menina e enterneço-me pelo rosto lindo, em sono tranquilo. E o casaquinho azul, com lacinho cor-de-rosa. E penso nos pais e no seu amor, antevejo-o às vezes surpreso, às vezes frágil, às vezes inquieto, mas sempre intenso, desmedido e do tamanho do mundo. E confirmo mais uma vez que o mistério da vida se cumpre e que sendo comum e tão antigo, ganha novos sentidos, renovando uma espécie de fé no destino. E de novo tudo pode ser construído, a beleza do amor em beijos macios, a pele suave num corpo pequeno, os primeiros risos e  choros, as noites suspensas pelo cheiro do leite, que a mãe dá para alimentar a filha, no corpo e no coração. E parece-me que não há dádiva maior nem mais intrigante, transformadora e difícil de levar a bom porto. Porque é preciso, para além do amor, muita sorte e coragem para este desafio de fazer alguém ser a sua melhor promessa. 
Por isso, para a nossa menina, eu desejo, daqui do sol e do mar, uma vida longa e cheia de boas marés. Com búzios e conchas de muitas cores, dias lentos para saborear a infância, brincadeiras alegres em dias felizes, abraços grandes para amarrar os laços do amor sem fim. E para os pais, desejo a persistência para fazer a vida acontecer, astucia para descobrir o norte nas noites mais cansadas, saúde e capacidade para educar e amar, sem fim à vista. Porque é disto que se trata, quando temos um filho: embarcar, com convicção, numa viagem sem retorno, onde quase tudo depende de nós e da sabedoria para içar a vela e velejar ao sabor do vento. Sem medo e com muita alegria.
Que seja bom, desafiador e promissor o futuro da nossa menina e dos seus pais.
Parabéns, beijos grandes e muita sorte na vida!

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Amor e autonomia

O sol lá fora a inundar o mundo e eu, cá dentro, cativa de mim.Tento clarear ideias, enxotá-las do mofo, conceder-lhes a primazia para arrumar emoções confusas, que sorrateiras se apresentam hoje, por entre as malas que fazes, para partires de novo. Continuas firme na procura de um lugar ao sol, ainda que digas que este é o melhor sol que podes ter. Mas não chega para cobrir toda a geografia dos teus sonhos.    

Não é fácil aceitar a autonomia no amor. Bem que a podemos proclamar aos quatro ventos, defende-la como condição da vida humana, a única via para ser gente. Quando a nós toca, o conceito perde força e adquire um sentido ambíguo, que aproveitamos, em segredo, para explorar. Um pouco ingénuos, banalizamos a sua utilização e sentido, ignorando os impactos da sua presença nos nossos dias. Nos desafios que ousámos enfrentar no nosso crescimento e no crescimento dos nossos.

Não é fácil entender e aceitar a autonomia no amor. Percecionar o outro fora de nós, alimentar os seus intentos para longe do nosso chão, pressentir a sedução de desafios improváveis e mesmo assim, continuar crente na espera da sua revelação. Não é fácil apoiar este percurso e esta liberdade, que vai sendo escolha, consciência, palavra e ação. Connosco, mas sobretudo para além de nós.

Não é fácil aceitar a autonomia no amor. Porque exige reconfigurar o calor do colo da infância e o sentido de proteção que nos impusemos quando, convictos, inaugurámos em nós a construção de outro(s). Porque implica reconhecer a sua existência como sujeito autónomo, a sua essência e identidade, num compromisso ético pelas suas escolhas.

Não é fácil aceitar a autonomia no amor. Porque nos idealizámos como bússola, ponto cardeal e caminho a seguir. Porque nos apropriámos de um papel definitivo e revelador para a vida do outro(s).  Como se fosse possível cumprir essa odisseia, em redoma e para sempre. Apesar de todo o amor.  
  

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Bilhete de identidade


Aqui estou, frente ao espelho e à vida. 62 anos de mim, sem saber como. O corpo a encaixar-se no tempo, a alma a querer outros rumos. E mudos de espanto nos quedamos, entre memórias e sonhos fatigados, que como o corpo, se aconchegam à cadência do tempo. O tempo com brisa suave e pouca urgência. Já nada renova o prazer do que vem a seguir. O futuro parece perto, desfiado em palpites breves e viciados.

E, no entanto, de vez em quando, o som trémulo da alegria e a paixão de ainda ter, por entre a pele, uma janela para a lonjura do mar e dos sonhos. De vez em quando o prazer de um livro, o espanto de saber que homens e mulheres compõem inteligentemente a cultura, produzindo saber e compreensão do que somos. Uma felicidade imensa por pisar a terra, abraçar a vida e o porvir, acreditar na coragem de gente boa. 

De vez em quando, o esquecimento do caminho feito, por se almejar, com todas as forças, um novo nascer e uma terra prometida. Como se criar fosse a única possibilidade para os dias que nos cercam. Hoje, como sempre, desafiar o medo da morte lenta, que nos confina a noites escuras e abafa os dias claros. 

Aqui estou frente ao espelho, olhando-me por todos os lados, procurando uma nesga para alvitrar poemas certos para corações cansados. Porque a cegueira à beleza dos dias é moléstia feia para alimentar. Continuemos, pois do lado certo do desassombro. Apesar dos 62 anos.