quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Retrato de mulher

Tem um sorriso doce, um humor jovial e uma educação atenta. Ri-se vezes sem conta da ironia do destino, ainda que já tenha chorado pelas mesmas razões. Curiosa dos mistérios da vida e de coração aberto, ensaia leituras sobre os enredos que tecem o seu tempo, vendo-se como é e alimentando o que gostaria de ser.

Não pede licença para falar e o medo é uma emoção longínqua, que apenas equaciona quando os sentidos ficam alerta. Utiliza-os quanto baste, no correr do presente, que não dá de mão beijada, nem a preço de saldo.

Não sendo propriamente jovem, investe-se de sonhos possíveis, que cultiva com uma quota suficiente de loucura e otimismo. Da vida quer a sua seiva mais pura, dias de sol e a alegria de ser pessoa inteira.
Não ignora os limites de si, lutando para os exceder em aventuras pensadas, ainda que inquietas. Tem dentro de si, a par do desejo, a cautela inevitável da experiência assinalada. 


Por isso, em alguns dias, ensaia viagens em marés desabrigadas, levando consigo os utensílios necessários para enfrentar o adamastor. Lembra-se de já ter passado o cabo das tormentas e por isso não anda desprevenida. Apesar da persistência dos sonhos.

   

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Propósito

Tento aconchegar-me nas ideias que hoje me chegam e mergulho docemente na maré da minha vida. O futuro é uma bandeira espetada no cume mais alto do mundo, o passado  uma almofada um pouco gasta e velha, mas calorosa, o presente tece-se com tudo o que sou. 

Viajante de mim, nada me impede de percorrer planícies abertas, onde moram todos os que amo, em casas de tardes amenas, com um chá de canela e limão sobre a mesa e pão morno com manteiga. Alpendres quentes convidam a ficar, em boas conversas, essas que deslizam por entre os dedos e fogem com o vento, quando as cigarras cantam pelo cair da noite. 

Assim me quero e me vejo, com tonalidades de laranja e fogo, a acertar o compasso do tempo e das colheitas que tenho que fazer. 

Sem terra e enxadas para trabalhar, colho do tempo o melhor que semeei, com as palavras que caíram no chão e deram folhas, flores e frutos. 
Assim me componho no correr dos dias, ateando com cuidado e leveza a maravilha de estar viva e rodeada dos que amo. Espero, com atenção, a chegada do outono, mantendo acesa uma fogueira quente para quebrar os primeiros frios de setembro e as noites longas de chuva do inverno. 

Ele vai chegar. Quero que me encontre preparada e corajosa para o receber, sem medo de gelar. No corpo e no coração.  

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Encontro

Mãe, vou-te contar uma história verdadeira. Sei que ias gostar. 

Fui jantar a casa de uns amigos, no sábado passado, com várias pessoas, umas conhecidas, outras não. 
Chegámos e cumprimentámos-nos, depois das devidas apresentações. E uma cara doce, num sorriso claro disse, em voz baixa, como quem conta um segredo

- Eu conhecia a sua mãe, ela falava comigo todas as semanas. 
E os olhos riram-se, com mil subtilezas e uma proximidade quase física. 

A surpresa apanhou-me desprevenida e estarreci, como se diz na minha terra (e era lá que estava). Uma alegria estremecida entrou-me no coração, alargando de imediato o meu campo de afetos, numa simpatia genuína. Sem mais quê nem para quê, gostei da pessoa. Trocámos algumas palavras e situámos a sua relação contigo. Acertei desde logo sobre os marcos, o tempo, os enredos e as confidências. Confirmei o seu nome e a sua função. Falavas-me dela, quando relatavas timidamente as tuas histórias de solidão no Bunheiro, terra que apenas deixavas por curtos períodos, apesar da insistência para te fixares na nossa casa em Almada. E dizias, meia ambivalente, como quem pensa em voz alta

- Sim está bem, gosto de estar convosco, mas e a minha casa e o meu canto? quem vai cuidar do jardim, e da campa dos avós...e da casa? 

E assim vivias entre cá e lá, sem resolver os teus amores e a tua fidelidade, sempre enrolada em mil novelos de bem querer. E zangavas-te, estando cá e sentias a solidão estando lá. Então arranjavas aliados, gente especial, que te sabia ouvir e que gostava de ti, para tornar as tardes de vento do Bunheiro menos agrestes e mais temperadas. Povoadas de pessoas afetivas, de coração aberto e sorriso pronto. E ritualizavas estas relações com o teu cunho, perguntas, telefonemas e algumas confidências de mulher habituada, mas não conformada, à solidão da viuvez e de uma terra que custava a largar, por ter sido tão vivida e esculpida no teu corpo de menina ainda pequena.

Não falámos muito mais de ti, nessa noite. Mas ficou-me a ideia e a convicção que esta pessoa te foi fundamental no correr dos dias e algum pudor me impediu de fazer (mais) perguntas. A semana, mãe, também não tinha sido fácil e este convívio, uma oportunidade de conversas leves, alegres, amigáveis e muito divertidas. Temi abrir uma porta onde as revelações me pusessem de lágrima no olho. Andei sempre de lágrima fácil, toda a semana, e a noite não era para tristezas. 

Regressámos a casa já tarde e eu a pensar nos encontros que a vida proporciona e como tudo isto é uma aldeia. Grande, mas uma aldeia, onde apetece viver quando, por acaso, encontramos quem bem fez a quem muito queremos. E isso é bom. Faz-nos ficar eternamente agradecidas. 

E a pensar na frase de Saramago "Nós vivemos num lugar, mas habitamos uma memória". Foi exatamente isto que me fez encontrar-te nessa noite.  
   

  

domingo, 25 de agosto de 2013

Semana cheia

Regressei hoje da nossa casa, depois de uma semana de descanso. 
Vi de novo as terras de milho alto, agitado pelo vento, os braços da ria, os juncais, o mar bravo da Torreira, o cair da tarde e o inicio da manhã. Tomei o pequeno almoço na eira, reguei o jardim, compus uma jarra de flores, coloquei quadros na parede, alindei de novo a casa, ficou bonita. Mais ainda. Por lá andei, a saborear os últimos dias de férias. Na minha terra.

E foi bom. As palavras é que mingaram, porque não fui capaz de as utilizar em textos, como regularmente faço. Sem saber bem como, desapareceram e todas as tentativas foram em vão. Acho que me enchi de imagens, poderosas e ténues. Retive-as o mais que pude dentro de mim, mesmo aquelas que me tocavam de raspão e malandras, desapareciam num ápice. Velozes e matreiras, andaram abraçadas a mim, em abraços nem sempre amistosos, num jogo de toca e foge, que em alguns dias me deu um cansaço infinito e noutros uma alegria reconfortante. Um aconchego. 

Talvez por isso me ocupei em demasia, e as palavras, que sempre me acompanham, não encontraram nem poiso nem guarida para fazerem coro e sentido para os textos que escrevo. Senti falta delas, mas o espaço ficou todo preenchido com imagens que indiscriminadamente, brotavam do fundo da memória. Em qualquer dia, hora ou lugar. As ameixas lindas da casa da minha avó, as amoras que apanhei e me pintaram os dedos como quando era menina, as fotografias esquecidas no fundo de uma gaveta, o cheiro antigo de um lençol de linho, o xaile preto sem pontas de traça, o meu vestido de renda, tão pequeno, do dia do meu batizado. Eu já fui assim? E a tua fotografia, mãe, junto à porta de nossa casa, pouco tempo antes de partires. Um sorriso meio triste, com olhos no fim do mundo. Lá longe.

Tudo tão forte, tudo tão surpreendente, tudo tão inquieto, tudo tão doce. Não houve lugar nem tempo para aceitar e escolher palavras. Ficou tudo preenchido e o silêncio foi de ouro. O silêncio, a ria, o mar, o vento, o jardim. E tu e a avó, e eu e o meu irmão, e os filhos, e tias e amigas e amores. Em imagens e memória. Semana cheia. 



sábado, 17 de agosto de 2013

Bocados de vida

Nesta jornada de arrumação de caixas antigas, colocadas há muitos anos na garagem, impusemo-nos deitar fora o muito antigo, que já não era utilizado. E assim fizemos. Mas quando os livros apareceram, aos montes, ficámos sem saber o que fazer, de tão ligados que estávamos neles, assim sentimos mal os vimos. Os clássicos todos, que lemos na juventude e que nos fizeram ser como somos: Beauvoir, Sartre, Gorki, Anais Nin, Marguerite Duras, Soeiro Pereira Gomes, António Aleixo, Manuel Alegre, Virgílio Ferreira, Fernando Namora...e tantos outros...limpámos o pó, arranjámos uma estante e demos-lhes o destaque que merecem. Ainda hoje. Não se deita fora o que para nós foi um marco e uma revelação e chão para a caminhada de nos tornarmos pessoas.  

Depois, os textos e desenhos dos rapazes, letra tremida e erros, muitas coisas de meninos em crescimento, redações da primária, cartas das primeiras namoradas, dedicatórias de amigos, postais de natal, cadernetas de recados da escola, prémios do andebol. Guardámos o que nos fez rir e emocionar, deitámos fora os testes e os apontamentos e resumos de aulas. Coisas sem importância, agora.

Depois encontrei os meus cadernos e a minha capa vermelha, gasta e escura. Lá dentro poemas, cartas de amor (quem as não tem?), páginas de um diário, alegrias e lamentos. Tudo muito forte e muito sensível, entre os dezoito e os vinte anos. Fiquei sem respiração pela pessoa que ali estava, à procura do mundo e da vida.
Fiz um intervalo na arrumação e reli alguns dos escritos. Depois de me banhar nas palavras, reconheci-me, embora não tenha sido possível vislumbrar-me na totalidade. Senti, por momentos, o cheiro da praia da Barra, o vento das tardes secas no Bunheiro, a estação de Aveiro e a respiração ofegante para apanhar o comboio no ultimo minuto. Tudo longe e ao de leve, apesar das palavras intensas e da letra incerta. E sorri pela menina de então e estranhei-me na minha identidade. Eu, fui aquela? Pois fui, claro e por ter sido assim, hoje posso ser como sou. 

Guardei o caderno e a capa vermelha.Trouxe-os para o sótão. Não se deita fora os bocados do que fomos e da vida que vivemos. Deixo aqui um poema de então, sem censura ou preconceito. Escrevi o que senti, tal como agora o faço.  

Amor, de que cor és?
Procuro-te.
Amor, vives onde?
Eu quero-te.

Querer é ficar entre as árvores e fazer rosas
Com os dedos de luz e paz.
Querer é mais
É ir para além do mar, pisar as ondas
E rir.
Querer amor é querer vida
Que vida é amor.

Amor é ter ruas. largas. E correr com desejos nas mãos. 
Amor é tempo, verde e paz
É acreditar numa forma de ficar mais justa.

Amor és tu, quando chegas, com sol nos olhos.
Tu, inventado no escuro e desenhado na luz.
Amor é rir, continuar e ser.
Amor são ninos de olhos a chorar e
Mãos a querer quente.

maio 1976 (19 anos)                                                                                                                                                            

     

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Rápido e económico: poupar nas palavras

Levei um bocadinho de tempo a adaptar-me às sms e a utilizá-las com regularidade. Creio que os filhos foram um grande empurrão, porque não suportava os olhares condescendentes perante a resistência e sobretudo, perante a não apetência por máquinas, mesmo pequenas e simples. E depois havia a necessidade de com eles comunicar. Tive que me render a entrar nos novos meios de comunicação. Tanto quanto. Este blog é o mais avançado que me permiti ter, facebook, não, obrigado. Mas sei que não posso negar as enormes vantagens de estar conectado, a muitos amigos, on line. Sim, compreendo os benefícios e respeito a sua eficácia, no mundo atual. Se não, porque teria criado este blog?

Apenas me inquieta e surpreende a vulgaridade da comunicação, a brevidade dos posts, as amizades rápidas, os parabéns que se dão, porque a máquina nos lembra, as janelas escancaradas para o mundo, daquilo que somos. Perdão, daquilo que mostramos ser. Sei que podemos controlar o que escrevemos, escolher e barrar amigos e perservar a nossa intimidade. Sempre? 

Sendo meios poderosos de comunicação, marcam cada vez mais as nossas relações com os outros e substituem-se às formas mais convencionais de interação. E eu continuo a gostar de receber cartas, postais ilustrados, parabéns de outros que escrevem na agenda o meu dia de aniversário. Continuo a gostar das palavras por inteiro, com todas as letras a que têm direito, sem abreviaturas rápidas e socialmente aceites. Fico sempre a sorrir quando me enviam assim um sms. Dantes preocupava-me porque achava que os meninos e as meninas iam perder a capacidade de escrita. Entretanto, habituei-me, embora dificilmente utilize abreviaturas.

Não posso ser simplista, nem gosto de ser radical ou conservadora, vou pensando nestas coisas à medida que elas vêm ter comigo. E hoje recebi uma sms quase indecifrável, pela economia nas palavras. E nas palavras eu não poupo. Uso e abuso. Também ainda não pagam imposto, o que para mim é uma sorte, para a carteira e o coração. 

Por isso criei este blog, onde despejo palavras e textos à medida que me chegam à ponta dos dedos. O meu irmão, primeiro responsável pela criação deste blog, continua a dizer que devia estar ligado a uma rede social, para que muitos mais lessem. Respondo que a qualidade não é assim tão evidente e que alguns já me descobriram e me lêem.   
E para mim, é já um atrevimento e uma inovação, esta adaptação aos novos meios de comunicação. Passei anos e anos a escrever em cadernos de apontamentos. Só para mim. E sempre me bastou. 
Mas é claro que fico sempre contente quando me escrevem comentários. Alimentam as minhas longas palavras, isso não posso negar.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Renovar a vida

É jovem e está grávida. A barriga começa a despontar, numa bola pequena e redonda, as ancas um pouco mais largas e o peito a preparar-se para dar um leite morno e doce, que vai saciar a fome e o afeto do seu filho(a), quando nascer. 

E eu espanto-me. Definitivamente emociono-me com este mistério tão comum e tão único. Porque de cada vez que uma mulher engravida, tudo recomeça e tudo se renova, principalmente a esperança, o amor e às vezes, em certos dias, o medo, pelo futuro. Gerar uma pessoa dentro de nós é construir para todo o sempre um vinculo e um amor, dos quais somos, em primeira mão, os responsáveis. Projeto de vida arriscado, que nos desafia, apaixona e inquieta. É assim com (quase) todas as mulheres, mas esta é especial. 

Conhecia-a ainda menina, tinha quatro anos, uma pele clara e um sorriso tímido, estava à porta do jardim de infância onde a mãe trabalhava e não era de muitas falas. Depois, com o correr dos anos e uma amizade forte a selar a relação com ela e a família, fui vendo-a tornar-se menina, jovem, acompanhei alguns amores e (des)amores, assisti à sua decisão de ser educadora, apoiei a produção de alguns trabalhos académicos e a a progressiva consciência de ser o melhor que pudesse ser, como profissional. Fui, com orgulho, a sua madrinha de curso. 

Pelo meio, ficou a sua presença atenta quando com a mãe, pela noite fora, falávamos de educação e preparávamos reuniões de pais. Creio que tudo o que ouviu, em menina e jovem, lhe deixou lastro para a maturidade e o investimento que tem hoje, como profissional de educação de infância. Uma qualidade reconhecida por colegas, famílias e crianças, boa de se ver. 

Pelo meio, com a idade próxima dos meus filhos, ensinou-me muito, sem que disso tenha eventualmente consciência. Ensinou-me o sentido e necessidade do cuidar, a importância de respeitar opções, o mundo de dentro para além do que vemos por fora. E brincou com os meus filhos, como vizinha, companheira e amiga. Alargou o seu mundo e introduziu-lhe diversidade, coragem e persistência. Sendo um dos seus pares, é ainda hoje, uma referência para eles.   
Agora está grávida e eu emociono-me. Espera este filho, com o companheiro, numa casa que construiu com sonho e pulso, num projeto de amor resistente. E eu que a vi menina e a acolhi nos meus afetos, espanto-me com o correr do tempo, com a barriga que cresce e com a alegria do futuro.

Que quero acompanhar, numa festa de homenagem à vida e ao amor, aquele pelo qual nunca desistimos.   


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Arrumar a casa

De novo em casa.
Não se poderá dizer lar, doce lar, porque em tempo de férias, a casa de todo o ano vira uma gaiola e nós uns pássaros doidos, a bater as asas, sedentos de liberdade.

A nossa casa é um ninho de aconchego, um porto seguro, uma réstia de sol em dias frios. Mas em agosto, enche-se de coisas por fazer, arrumações e limpezas há muito prometidas, pinturas de paredes que ficam amarelas, renovação do jardim esquecido ao longo do ano. 
E há também o sótão que acumulou muitos livros fora do lugar e sacos e recordações e tudo o mais que nos lembramos de aqui arrumar. 

O que acumulamos e guardamos numa casa! Tudo o que achamos que nos faz falta e muito mais do que necessitamos. Enchemos-la de vestígios de nós e mantemos-los durante anos, incapazes de os deitar fora, porque quem sabe, talvez um dia nos dê jeito...e o jeito nunca acontece. 


Então, em dias de férias, num rasgo de racionalidade, iniciamos um longo percurso de arejamento das coisas supérfluas, acrescentos sem significado, bocados de antigamente que nos vedam o caminho e atrapalham a necessidade de espaços livres, brancos, organizados e funcionais. Ficamos até contentes quando cumprimos este propósito. 

Até lá, ruminamos zangas e espantos com tanto que guardámos. E prometemos mudar este comportamento de acumulação da vida, feito corpo em objetos e matérias físicas. 

Como se isso resolvesse o que quer que seja do nosso conforto e da nossa identidade.    


sábado, 10 de agosto de 2013

Fome de livros

Vive rodeada de livros, viajam com ela para todo o lado, dentro do saco onde mete tudo a preceito, embora nem sempre encontre o que quer quando necessita. 

Os livros, sim, sabe exatamente onde estão e o que dizem, pesquisa e percorre os seus conteúdos com cuidado e afinco, folheia-os e amacia-os com as mãos e o olhar, como se fossem folhas de alecrim no alto do monte.

De lápis na mão, sublinha as ideias que a surpreendem ou emocionam, em riscos leves e contínuos, como um arado a tratar da terra, fazendo sulcos para receber a semente do trigo que há-se dar folha e fruto e alimento para a fome.

Porque é isso que procura nos livros que ama. Trata-os como coisa sua, essencial e imprescindível para a vida, como do pão para a boca se tratasse.   


Amores eternos

Colam-se à pele, alteram-nos o cheiro e o sabor, ficamos lentamente mais intensos e radiosos, mudam-nos os sentidos e as palavras. Quase sempre aprisionam o olhar, tornando-o mais subtil e doce. Menos severo.

Os amores eternos são feitos de matéria indiscritível, quase sempre se acomodam em memórias de infância, espraiam-se em sonhos de juventude, ganham raízes e história nos propósitos de adultos livres.  

Os amores eternos não são descartáveis, quando passam e porque são eternos, persistem num sono profundo dentro da alma. É raro darmos por eles, aceitar a sua existência é pertença de gente madura e livre, negá-la, a forma mais simples e comum de gente pequena e assustada. Os amores eternos são habitualmente alvo de escárnio e zombaria, escondem-se em gavetas do passado e não têm permissão para ver a luz do dia.

Mas os amores eternos são persistentes e acompanham-nos para todo o lado. Em silêncio lá estão, escondidos e reservados. Não incomodam o correr dos dias e do futuro, sabem viver na sombra, entre o coração e a cabeça, no espaço que lhes foi reservado. Aí ficam para sempre e outra condição não procuram. São eternos. São assim.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A fotografia

Não tirámos fotografias, ainda que alguns tenham falado nisso. Não sei se alguma voz interior sussurrava, muito baixinho, que talvez não fosse seguro, sendo a matéria em causa tão inconstante e eventualmente temporária. Mas naquele dia, todos estávamos absolutamente certos da sua eternidade. Sem falsos pensamentos ou motivos.

Estivemos juntos e foi tudo verdade. Tenho as imagens em mim, as conversas que se entrelaçaram como as cerejas, os sorrisos dados sem conta e medida, a beleza de estarmos juntos, por nós e por outros. Relembro mãos elegantes, uma mesa comprida, um rio na paisagem, flores nos canteiros e um vinho muito elogiado. A comida também. Um almoço de príncipes e um manjar de deuses.

Como acontece em algumas histórias, esta também foi circular. Iniciou, deu a volta à aventura que pôde e terminou.

É por isso que queria uma fotografia. Para olhar de novo e saber que estivemos mesmo lá. E também para nos ver felizes, como que a zombar do destino, sem saber que ele se sentou à mesa. (In)discretamente e sem ser convidado. 

Saudades

Em Lagos, o vento é uma constante. E a saudade, não sendo constante, é recorrente.
Lagos não é a terra de origem, mas é quase sempre destino de férias, desde há muitos anos, ainda os rapazes eram pequenos. Já cá passaram férias muitos dos seus amigos, namoradas e amigos nossos. Agora o casal sénior, viaja quase sempre sozinho. E tem saudades da casa cheia. Pelo menos a mãe.

Saudades das noites em que os rapazes se compunham frente ao espelho, bonitos, morenos do calor do sol, cheirosos de tanto perfume, luminosos de tanta alegria, paixão e liberdade. O coração às vezes sobressaltado, para onde vão até de madrugada, coisas de mãe preocupada e esquecida do seu tempo igual de vida, pela noite dentro. A preocupação era uma ocupação, um bem-querer, uma coisa de mãe.

Nessas alturas, da parte da tarde, partíamos à descoberta de praias menos conhecidas e tranquilas. Observávamos pedras e rochas, saltávamos à corda, jogava-se raquetes, davam-se mergulhos e fazia-se a baleia branca. Regressávamos a Lagos ao som do Rui Veloso ao vivo, no coliseu. Sabíamos de cor todas as músicas e cantávamos em conjunto. Desafinadamente, mas em uníssono.

Nesse tempo, o tempo corria mais veloz e cheio de vida, os silêncios eram raros e os programas, inicialmente mais familiares, começaram com cardápios mais individuais, feitos à medida de cada um. Mas estávamos cá todos. E era bom. Por aqui se acompanhou inícios de paixão, fins de namoros, reforços de amizade. Por aqui, se comeram pratos de massa divinais, peixes frescos do mar, croissants frescos pela manha, gelados gostosos à meia-noite.

Por aqui, todos os anos, os rapazes cresceram mais um pouco, em autonomia, liberdade e compreensão da vida. Às vezes com alguma dor, quase sempre com muito amor e jovialidade.

Tenho saudades dessas férias, desse tempo de verão e dessa(s) companhia(s).  

Os teus olhos de amor

Abraçaste-me e disseste que estava bonita, com aquele vestido. Espantei-me e sorri, ultimamente não estás muito dado a elogios. E discordei, enumerei todas as regras enunciadas nas revistas sobre o bem vestir: os vestidos largos e curtos, com flores, acentuam as silhuetas e as formas menos elegantes, evidenciando aquilo que, com o tempo, se acumula em nós e das quais gostaríamos de nos vermos livres… não quiseste saber, estava muito bem assim, com ar jovial e descontraído. Por isso, bonito. Respondi-te isso são os teus olhos de amor.

E fui para a praia a segurar esta frase, a remoer à volta dela, como tantas vezes faço quando me surpreendo com o que digo e penso. Os teus olhos de amor, sim, aqueles que te permitem ver o que queres e podes ver, em detrimento da realidade, nem sempre bela ou consonante com a tua zona de conforto. É assim com todos nós.

Todos temos olhos de amor. E com eles varremos os outros de muitos adjetivos, tantos quantos conseguimos construir num tempo comum. Os olhos de amor bastam-se a si próprios, têm carta branca e raramente admitem questionamentos ou dúvidas metódicas. É assim, porque sim. Crescem à medida que cresce o amor e tornam-se quase inabaláveis, porque incorporam como coisa natural o que decorre do olhar do coração. Em alguns casos, os olhos de amor são eternamente fiéis, apesar da ausência de luz que os alimente.

Com o tempo, alguns olhos de amor cansam-se, ficando com cegueira passageira ou definitiva. Incapazes de verem o que sempre viram, ficam estupefactos e assutados, com episódios de escuridão completa. Não se conhece remédio certo para esta manifestação, recomendando-se renovação de lentes e afastamento temporário. Nem sempre resulta.

Alguns estudiosos tentam, numa investigação regular, encontrar os motivos que levam a este cansaço. Parece ser difícil obter leis concretas e fazer generalizações, os olhos de amor são difíceis de estudar. Sendo pertença de todos, têm configurações únicas. Cada caso é um caso.





quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Doce balanço

O mar à nossa frente e um cheiro forte a maresia. 
Percorremos vezes sem conta o caminho livre na praia, entre a toalha e uma bóia que escolhemos, ao longe, para meta. Vamos e vimos numa cadência diária, rotina instituída, a conselho de algumas dicas de bem-estar. É importante fazer caminhadas à beira-mar. Façamo-las, já não somos jovens. 

E também porque ao andar, em silêncio, com a música de fundo do mar e vozes dispersas, fazemos balanços breves do ano e projetamos o que aí vem.  Sem pressas e tempos curtos, apenas deambulamos por aquilo que fomos e aquilo que está para vir. Uma espécie de balanço anual, não é dezembro, mas para quem é educadora, este é um tempo de viragem. Sobretudo se vamos iniciar um novo percurso. E assim vai ser. Regresso em setembro, à companhia dos meninos.

Esta ideia e esta realidade inquietam-me um pouco, tanto quanto me alegra. Vou receber um grupo de crianças, com idades e experiências diversificadas e com eles vou embarcar numa viagem rumo ao seu desenvolvimento e aprendizagem. Penso na adaptação, na minha idade, em tudo o que terei que fazer, dizer, pensar e escrever e tenho medo. Inventario algumas dificuldades, parece que talvez elas estejam agravadas, tenho receio de não ter força, discernimento, saber e competência para educar e ensinar como acho que as crianças têm direito.  

Depois sorriu com eventuais descobertas, revejo a minha metodologia e inventario o que posso fazer, por onde vou começar, o que não posso esquecer. E acalmo-me, digo que vai ser possível e que tudo vai correr bem. 

E assim há-de ser com a minha aposta, o envolvimento das crianças e a participação das famílias. E o apoio da equipa. Tudo irá dar certo, pois claro. Conto com eles e eles comigo.
Para começar, é um bom início…pois não é?


Conversa na esplanada

Sentamo-nos e pedimos um café.
A esplanada junto ao mar está quase vazia. As cadeiras e os bancos corridos são confortáveis, num castanho quente, há garrafas de muitas cores, quadros e imagens discretas, plantas. O café é agradável e cuidado, convida ao descanso. Uma música de fundo, calma e bonita impregna o ar e confere à manha uma tranquilidade magnífica. De onde estamos vê-se o azul do mar, o areal grande e dourado, a vegetação das dunas, que se agita com o vento. Não muito forte, apenas capaz de nos acordar de algum sono que ainda cobre o corpo.

Com os livros de férias abandonados na mesa, começamos a falar de outros livros, aqueles que nos marcaram e conversa puxa conversa, aí estávamos nós trocando confidências e ideias sobre as nossas vidas, que a amizade que nos une é longa e cimentada num cuidado permanente às histórias de cada uma. Conhecemo-nos e zelamo-nos, num respeito profundo pela individualidade e diversidade de pessoas únicas. É assim que mantemos uma amizade forte e um apoio atento, há já muitos anos.

Nesta manha, vieram para a mesa, ao lado dos livros interrompidos a meio, paixões e amizades de cada uma, pequenas histórias de mulheres livres, coisas de mãe preocupada, episódios de casas de retiro, cenas de filhos (in)dependentes, lutas de gente valente, sorte(s) e acaso(s) de amigos ausentes. Caldeámos tudo com o sabor do café, o calor do sol, o azul do mar, risos soltos e umas quantas lágrimas. Ou seriam salpicos do rebentar das ondas?  
Uma coisa eu sei: não conheço melhor menu para degustar numa manha de férias, na praia.  

terça-feira, 6 de agosto de 2013

O verão e as crianças

No verão as crianças crescem. Ocupam as ruas e as praças até altas horas da noite, em gargalhadas felizes, ninguém as manda cedo para a cama, os horários estão esquecidos no fundo das gavetas fechadas das obrigações.

O mesmo acontece na praia.
Chegamos cedo e elas já lá estão, com o corpo salpicado de água fresca e a energia plena de quem tem muito para viver nos dias que correm devagar. Arrastam os baldes pela areia, molham as mãos e chapinham os pés com força nas poças de água, gritam, batem palmas, entram dentro das ondas e espantam-se com a força do mar. Por perto, pais e avós olham-nos enamorados pelo seu vigor e ensaiam jogos conjuntos, brincadeiras ruidosas e infantis, numa alegria descontraída de gente contente.

Alguns são muito pequeninos, pegam nas mãos dos grandes e puxam-nos, para correr com mais segurança, a distância entre a toalha e o rebentar as ondas. Vão decididos e mudos, espantados com tanta largueza de areia que sentem nos pés minúsculos e no entanto, capazes de andarem tempo sem fim. E sentam-se, levantam-se, caem, correm, amassam a areia, olham as gaivotas, e sentem o vento na cara. Às vezes choram e pedem colo, aninham-se no peito do pai ou da mãe e adormecem embalados pela cadência do bater das ondas na areia. A chucha cai da boca e serenos recuperam o bem-estar e a energia até às próximas brincadeiras.  

E os adultos que delas cuidam e as amam ficam tranquilos a ver o mar, agradecem o silêncio, sabem-no fundamental para a renovação da disponibilidade. Em breve será necessária e quer-se quase inesgotável, para alegria das crianças e satisfação dos grandes.

No verão as crianças crescem e com elas os crescidos também. Alimentam-se de tempo livre, cultivam a atenção e tentam reparar o tempo preso e a pressa desmedida dos outros meses do ano.


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Promessa junto ao mar

Seremos novos e empenhados no correr dos dias, buscaremos a juventude como estado, mesmo que a velhice nos alcance o corpo e a saudade se instale no coração, relatando em surdina as histórias que vivemos antes de sermos assim.

Procuraremos as razões pelas quais valha a pena lutar e diremos a outros a lonjura dos caminhos e a água e o pão que terão que partilhar para não desistirem antes do fim. Não nos esconderemos das inquietações, elas serão o fermento com que alindaremos o chegar dos dias e as noites escuras do desespero.

Confirmaremos a beleza de estarmos vivos e atores da edição da nossa vida, aquela que começa a minguar em energia e propósitos arrojados. Esqueceremos sempre que possível esta condição, não por negação ou falsa consciência, mas por opção de pessoas disponíveis no presente e empenhadas no futuro.Diremos as palavras mais abertas e incitadoras para erguer cedo e confundirmo-nos com o orvalho e a seiva das flores, no alto das madrugadas estivais.

Seremos mel, água no deserto, sombra de árvore à beira da estrada, manta de lã nas tardes agrestes de vento norte.    

E esperaremos por ti, que chegarás cansado e pronto a mandar para o chão todo o peso guardado no saco que transportas ao ombro. Acenderemos uma fogueira, estenderemos uma manta macia no chão e protegeremos os teus sonos de anjo perdido.
No dia a seguir a esta jornada, saudaremos o nascer do dia e a tua vinda. Ficaremos mais fortes e seguros para cumprir as nossas promessas.


A preciosidade da pedra

Era uma vez uma pedra, junto ao mar.
Branca e luminosa, redonda na forma, suave e inteira, linda. Nunca antes se vira outra assim, envolta em águas mornas e transparentes, despojada, perfeita, à mercê do olhar e das mãos de quem nela reparava. Rodeavam-na algumas algas, em forma de colo e adorno, cama e encosto. Ali estava a meio do caminho do mar, ao lado de conchas e búzios. Pedra rara.
Ninguém lhe tocava, a sua cor e brilho ofuscava o gesto mais descuidado e imprudente para a prender. Era demasiado bela. Mesmo as crianças que por ali passavam, observavam-na admirados pela luz que imanava e espantados deixavam-na ficar, perfeita e recolhida no verde das algas.

Diz-se que um dia um rapaz atento e discreto, guardador de sonhos, se encantou com a sua beleza e num gesto deliberado a tirou do mar para a juntar à sua coleção de pedras preciosas. Apesar de todo o cuidado e empenho colocados na mudança de lugar, a pedra começou lentamente a escurecer, até que perdeu, para sempre, o brilho e a luz. Tornou-se uma pedra igual a tantas outras e nesse dia, o rapaz, num lamento conformado, retirou-a da sua coleção de pedras raras. Devolveu-a ao mar, confundido com a vulgaridade da sua aparência.

Já não foi possível voltar à sua imagem anterior. Ao fim de algum tempo, a pedra perdeu para sempre a sua preciosidade. O rapaz nunca mais teve coleções e o mar ignorou por completo, o regresso da pedra.
Não houve tempo para confirmar se algum mistério lhe poderia ter devolvido a luz e a beleza.




Voos rasantes

Água azul a perder de vista, tépida no corpo, fresca para os olhos, suave, límpida. Perfeita, neste primeiro sábado de férias. Sentimo-la a banhar o nosso corpo, ouvimo-la bater levemente na areia, música suave para os ouvidos e o coração.

Ao longe e ao perto, as gaivotas fazem voos rasantes de pássaros livres, cinzentas e brancas, o contorno das asas e do corpo no azul do céu, o bico rápido a capturar um peixe distraído. Queríamo-nos assim, igualmente decididos para ensaiar, com bravura, itinerários de peregrinos afoitos. Sem medo das alturas e do calor do sol em tardes tórridas, amantes do vento, poderíamos sair por aí à procura de alimento para a fome, feita do cansaço dos lugares comuns da vida e sedenta de outros manjares e repastos. Por exemplo, uma sobremesa de poesia, um risttreto com conversa, uma salada numa galeria, um bailado à ceia, um filme de autor a seguir ao almoço. Viver com arte, salpicar de sons, cor, tempero e criatividade o tempo que ainda temos fora e dentro de nós, estrangeiros que andamos do nosso ser completo.


Fazer voos rasantes de gaivota livre, abrir as asas e voar, em equilíbrio perfeito no azul do nosso céu, esse que pintamos todos os dias com aguadas de silêncio, promessas e devaneios. E depois sobrevoar as imensas praias da nossa vida, as areias douradas a perder de vista, as pegadas deixadas para gente perdida, os corações desenhados em dias de paixão, os tesouros escondidos das grutas dos nossos segredos.

Ser gaivota nos dias longos do verão. Poder continuar a sê-lo no frio do inverno e na temperança da primavera e do outono. Gaivota sempre.

Isto tudo penso e acalento, nesta manhã, com o corpo molhado pelas águas da Meia Praia. Em Lagos.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O primeiro dia

Finalmente, férias. De tão esperadas, entontecem-nos  os sentidos, as rotinas, os hábitos.
Acordamos de manhã prontos para mais um dia de trabalho, autómatos que estamos das obrigações e do relógio e temos que dizer ao nosso corpo para parar, uma ordem que demora a ser cumprida porque há muito está esquecida na confusão dos dias cheios e apertados.

E este é um dia longo, demoramos a tomar o café, olhamos as árvores da janela, a manta em cima do sofá, os gatos a dormirem, descansados, ouvimos e sentimos o silêncio. Por toda a casa. Que se enche de luz, aumentado os objetos que nela estão, como se fossem coisas de postal ilustrado.
E é apenas a nossa casa no primeiro dia de férias, as fotografias são as de sempre, mas parece que o rosto da nossa mãe está mais aberto e próximo e os filhos, pequenos, irradiam felicidade, em risos e abraços quentes.
Demoramos o olhar em cada detalhe, porque as horas não são urgentes e as tarefas hoje são escolhidas por nós. A qualquer hora. Por exemplo, dar colo ao gato, que nos olha estarrecido por este súbito tempo livre, em plena meia manhã. E deixa-se estar, aninhado de contente, a ronronar ternuras esquecidas. Nós também.

E assim estamos, a desfrutar de tanto tempo. De vez em quando o corpo ainda se agita, estranha a calma e a apatia que o inunda. Porque assim estamos neste dia, confundidos, em balanços sucessivos entre os sons ensurdecedores de ontem e o cheiro de maresia que se aproxima a passos largos. Vamos remar até ao sul, espera-nos uma praia com pedras, água límpida e areia quente. E uma varanda com vista para o mar. Azul.

E sobretudo tempo. De utilização livre.