domingo, 5 de dezembro de 2021

Convite de natal

O domingo teve sol e céu azul, apesar do frio. Ainda bem, porque pudeste ir ao jardim, dar uma voltinha, e respirar com mais espaço, largueza e alcance... sei que apreciaste as laranjeiras, olhaste os paus e as pedras do chão e sorriste, com melancolia, para o sol. Julgo que foi assim a tua tarde, por entre livros e relíquias, que é o que tens dentro de ti.

Vai ser natal, sabes, e por aqui dezembro já se impôs, convicto e vaidoso, indiferente ao que o ano foi e o futuro será. Aparece sempre sem ser chamado, certo da legitimidade para atingir os seus propósitos, quer queiramos quer não. Claro que é doce e sedutor, tem cores, musica, enfeites, símbolos, laços, cheiros que nos envolvem e às vezes, consomem. E nós lá vamos, porque nos inebria e encanta a sua promessa de amor incondicional ao mundo e às nossas pessoas.  

E as nossas pessoas, respondem à chamada, e ficam connosco ao pé da lareira, a provar o arroz doce e as rabanadas, com os rostos afogueados e a alegria nos olhos. E nós agradecemos esta possibilidade, de continuarmos juntos, disfarçando pequenas lágrimas de saudades dos que já partiram. Para esses, reservamos também um lugar à mesa, invisível, mas reconhecido por todos, mesmo que não o nomeiem. E depois, acendemos velas, para ter pontos de luz a assinalar um caminho, que confirma que somos, também, o que outros fizeram de nós.
 
E tu, com outros amigos, fizeste de mim outra pessoa. Porque é assim que se desenrola a história da nossa vida, que sendo única e intransmissível, ganha expressão, raízes e sentido partilhado pelo impacto desafiante e poderoso de quem gosta de nós. E quem se gosta, deve estar presente.  
 
Não é? É, claro, tu sabes. Por isso, prepara a tua melhor farpela, compõe o cabelo e a postura, veste de luz o teu coração e instala-te em dezembro, para comemorar o natal. Estamos à tua espera, não te esqueças.  

sábado, 23 de outubro de 2021

Ponto de luz

Gostavas de praias desertas e de mergulhar no mar, deixando o sal e a areia colar-se ao corpo, compondo formas, como filigrana esculpida. Dizias sempre que não irias tomar banho, porque, eu gosto disto e gosto assim, levo o mar comigo não vês? E eu, que me queria logo enxuta e limpa, discordava e teimava... ora levares o mar contigo...mas levavas. Como sinal de liberdade e antídoto para os dias tristes do inverno. 

Porque gostavas do sol, das ruas com gente, da esplanada e do café, dos livros e da companhia dos amigos. Porque esgrimias ideias como quem joga a última carta do baralho, porque a toda a hora era hora de perguntar, pensar, responder, discordar. Porque não obedecias por condição imposta, escolhendo a luta ao descanso morno do sofá. 

Empenhaste-te até aos ossos em muitas causas, projetos e iniciativas, fazendo a tua parte, para se mudar de rumo. Social e politicamente. Sempre desafiadora da ordem e moral vigente. Lembras-te? muda de rumo, muda de rumo já lá vem outro carreiro...

Já não te lembras, eu sei. Só não sei o que fazer com o que sinto, quando te vejo assim ausente e perdida. Tu que eras tão determinada e decidida. E autónoma e independente. E amiga. Profundamente amiga.

Porque perdias tempo, sem tirar dividendos, porque acolhias como ninguém, um bom almoço ou a maça e o copo com água na mesa de cabeceira, porque podem ter sede de noite, quando a tua casa foi porto de abrigo de outros. Ou quando cuidaste dos meus filhos e lhes fizeste o jantar, cá em casa, com a generosidade que sempre tiveste. Sem fazer alarido.

Agora, já não podes ler este meu texto e discutir comigo as ideias principais, como sempre fazíamos entre concordâncias e desacertos. Partiste para outro lugar e ainda que te veja, já não estás cá. Não sei como preencher esta ausência e sobretudo, não sei como zelar pela continuidade da tua inteireza como pessoa e da dignidade que a tua vida agora exige. 

Não sei o que fazer e tenho saudades tuas. E medo do que virá depois. Não podes ficar só mais um bocadinho? E dar-nos um ponto de luz, para iluminar o caminho?


Se tanto me dói que as coisas passem

Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem

                     (Sophia Breyner) 




segunda-feira, 26 de julho de 2021

Tréguas e propósitos

Iremos para o mar ou para o campo, levando uma mala cheia de perguntas e perplexidades. Convocaremos o tempo longo, livre, esse que nos falta desde o ano passado e tem interrompido abraços e risos fraternos, em presença. Pegaremos num livro, nos óculos de sol e na preguiça e partiremos. Queremos outro sol e outro lugar. Os que temos agora estão ainda submersos em aflições. 

Ficaremos à beira-mar a ouvir o bater das ondas e as conversas das crianças, entre corridas e mergulhos. Apreciaremos a sua determinação e brincadeiras ruidosas. Isso nos dará uma tranquilidade imensa. Perto da infância, os dias cumprem-se, desafiantes e amenos. Assim parece, ainda que saibamos que há muitas infâncias, nem todas alinhadas em vidas felizes. 

Deitados na areia, fecharemos os olhos para sentir a brisa do mar, sem avisos de interdição. Estaremos, ainda assim, com todas as cautelas, longe das multidões, perto da nossa gente.Veremos as nuvens, os pingos da água e a areia no corpo. Sentir-nos-emos vivos e inteiros.

Conversaremos muito, matando saudades e ausências. Pegaremos nas palavras e comporemos ideias, partilhando histórias e propósitos. Isso será um ganho para continuar a pensar com os nossos botões e os dos outros.

Mas cuidaremos sobretudo do silêncio, ainda que acompanhado, para ouvir o que temos cá dentro, sem distrações enganosas. Convocaremos quem nos deixou, imortalizando memórias justas. E interrogaremos, sem pressa, o que perdemos e ganhámos, das condições que o mundo nos ofereceu. 

Teremos feito o nosso melhor, sem sucumbir aos devaneios da ignorância, mesquinhez e indiferença? Teremos resistido o suficiente para contrariar o caminho das formigas no carreiro?  Teremos mantido a lucidez e a vigilância? Teremos cumprido a nossa humanidade? 

Em descanso, junto ao mar, tudo ficará mais claro. Assim o esperamos, para ajustar ideias e redefinir estratégias. Para poder continuar, sim. Mais convictos e refeitos. 


sábado, 26 de junho de 2021

Teimosia

Queria sossegar o coração e dizer-lhe que está tudo bem. Uma conversa franca e clara, por exemplo, que há um sol luminoso que abraça o céu azul e que as árvores estão verdes e bonitas e que no jardim, as flores estão viçosas, a cumprirem a sua função. Que o dia já vai andando para o seu fim, mas que a noite vai chegar, serena e igual a si própria, vestida de silêncio e lençóis frescos a embalar o sono. Dizer-lhe que amanha é sábado, o dia a seguir à sexta-feira, podemos ler o jornal e tomar o café, deixando despontar a preguiça, com tempo.

Dizer-lhe assim estas coisas, pequenas, concretas, provar-lhe que tudo está no lugar que sempre esteve e que não há motivos para alarme. E que é uma tolice o seu desassossego. Que a vida segue o seu rumo, meia indiferente aos estados de alma e devaneios de cada um, numa cadência regular, dia após dia, ano após ano.

Mas o meu coração não houve, não se aquieta, faz orelhas moucas, espanta-se com incoerências, pequenos nadas, nega evidências, sonda anacronismos e revezes. E de nada vale chamá-lo à razão, porque se aninha no seu poiso, afirmativo, independente e teimoso. 

E não pára de me contrariar, incómodo e imprudente, a roubar-me o sossego e a serenidade. Cheio de si e das razões que lhe assiste, mede risos e olhares, atenta nas palavras, pesa-lhes o alcance e os incómodos, vigia gestos incautos. E regateia, numa dissimulada guerra fria. Não me dá descanso, o insensato, quer ter razão. Não lhe a dou, assim à primeira. 

Quem manda aqui? ele ou eu? Vai ter que me ouvir e deixar-se das suas minudências.

(...)

Que estranha forma de vida
Tem este meu coração
Vive de vida perdida
Quem lhe daria o condão
Que estranha forma de vida

Coração independente
Coração que não comando
Vives perdido entre a gente
Teimosamente sangrando
Coração independente

(Amália Rodrigues; Alfredo Duarte)

sábado, 22 de maio de 2021

Trocar de lugar

Mãe

Hoje faço anos e sabes, já não vou para nova. Não estás cá para ver, mas já tenho rugas, o corpo a mudar, assim meio à socapa, umas dores que aparecem, às vezes, irritantes e tristes. Olho-me ao espelho e juro que te vejo. Recordo-te o rosto e o silêncio apaziguador. E gostava que cá estivesses, para conversarmos sobre a vida. Esta agora que tenho, passado doze anos da tua partida. 

É que não sei muito bem a quem falar de tudo isto que me acontece, em alguns dias. Não, fica descansada, não é sempre, porque de resto, mãe, e isso é maravilhoso, ainda olho pela janela à procura do voo de um pássaro, ainda saboreio um bom livro com paixão, ainda faço projetos (vou escrever um livro, lembras-te?) ainda acalento sonhos e devaneios. Mas não há como negar, olho muitas vezes para trás, procuro a jovem e a menina que fui, tento compor sentidos e feitos.  E espanto-me, juro que me espanto. Como é que cheguei aqui? Com todos estes anos?

Não, não me sinto velha, mas estou. E como é que podemos estar velhos, sem nos sentirmos, não é? Lembro-me de ti, eu nova e tu da idade que agora tenho, e eu, ocupada com a vida, sem atender às penas do teu coração. Porque eras juvenil, apesar da idade e das perdas, porque eras a mãe, porque sorrias e parecias uma menina, porque recusavas ter a condição que te davam. E lá comprávamos o creme e a blusa nova e tu a querer que tudo assentasse bem. E nós, e eu, a pensar, mas está tão bem, não é? Não devia estar, porque o que tu querias era que te assentasse outro tempo e outra idade. E nós, e eu, sem lucidez para ver a exata dimensão desse desejo.

Agora já sei. Também procuro o creme e o perfume, o lenço no pescoço e o sorriso pela manhã e, devo dizer-te, que nem sempre assentam muito bem. E quando procuro anuência ou discordância, dizem-me, os rapazes cá de casa, deixa-te disso, então, está muito bem... e devolvem-me à minha condição, a que tenho e nem sempre sinto. Porque a empatia é um lugar estranho, moldado pela realidade do que somos no momento. Não é insensibilidade, é dificuldade de tomarmos o ponto de vista dos outros.

Acho que agora, se cá estivesses, podíamos conversar sobre este assunto, que é o de termos muitos anos e de ficarmos aflitos, com medo do tempo que escassa para o que (ainda) falta fazer.  Creio que irias dizer que estou muito nova, mas abanarias a cabeça, e darias tempo para desfiarmos os nossos rosários. E juntarias a tua à minha voz. 

E era isso que eu precisava, hoje. E mais o bolo de anos, o café quente, os parabéns, risos e flores. Por isso e na tua ausência, já fiz a jarra da sala. Está linda. Obrigada, mãe.

quarta-feira, 31 de março de 2021

Amizade e memória

E lá fomos ao médico, tudo organizado no saco, medicamentos e perguntas no papel que a memória, desde há um tempo, anda escassa e atrevida, a brincar ao toca e foge. Por via das dúvidas, tudo escrito e anotado, não vá o diabo tecê-las. No consultório, quis que entrasse, e ali fiquei, primeiro em silêncio, depois numa partilha amigável, sinalizando aspetos e relembrando outros. À pergunta "e como anda a memória?", rimo-nos, sabendo que é mais leve e fácil que seja assim, sem ignorar o facto e a circunstâncias

 

Depois viemos embora, sem antes verificarmos se nada ficara esquecido e compondo no saco todas as coisas, uma e outra vez. Num contínuo movimento, as mãos a compensarem o que a mente não retém. 

Pela rua, muitas paragens, conversas soltas de amigas de sempre, por entre preocupações e perguntas recorrentes. Alguns risos e um café ao postigo, bebido no banco do jardim, que o ar se quer leve e amplo. E o espaço e o tempo, esse escultor da nossa vida, que agora se confunde e se perde, tonto e inquieto. Para o contrariar revertemos-lhe o sentido e convocamos feitos e histórias: férias em conjunto, o trabalho voluntário no bairro, episódios burlescos, discussões acesas, noitadas de amigos, cartas e postais trocados. E os dias e as noites de estudo em conjunto no sótão. E os miúdos a crescerem, por entre graus académicos e amigos solidários. 

Depois de novo, os sacos, os escritos, as perguntas habituais, a vida toda como agora é. Esqueci-me de alguma coisa? não, está tudo.

E está. Tudo é a amizade que perdura e os laços que nos unem, sabendo que nos temos e que isso é uma arma para arredar o medo e a solidão. Um antídoto seguro e eficaz conta o esquecimento. Por agora. E para sempre, assim espero. Saibamos nós, cuidar e atualizar, com sensibilidade e afeto, este património comum. Rico, longo, construído e reconstruído pelos anos. É assim a amizade. E podia ser de outra forma? não, não podia.   


terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Uma pausa

Uma pausa. Preciso de uma pausa, abrandar o correr dos dias, apreciar o sol ao fim da tarde, sentir os cheiros da primavera que tarda, demorar-me, com tempo, no desenho de uma criança. E alcançar um pouco de serenidade, esse estado que talvez nos falte, por agora.

   Desenho da Maria Rita - 3 anos e meio
Preciso de uma pausa. De silêncio para ouvir o bater do coração, procurar-lhe os seus dialetos mais íntimos, restaurar o primado da delicadeza e da atenção. Combater a inflação e o desvario de tanta palestra e opinião. Preciso de olhar os lírios do campo e encontrar a insustentável leveza do ser.

Porque estamos pesados e sem rumo. E falamos sem pensar e pensamos sem falar. E inundamos as redes sociais com ideias e desabafos e senso comum. E discutimos e impomos e esgrimimos. E  corremos à procura de mais, da última ideia certa para este tempo que não sabemos qualificar. Mas qualificamos, às vezes levianamente. Queremos entender e nessa ânsia desmedida, lançamo-nos a tudo e apontamos em todas as direções. Estamos cansados e sem filtros.   

Preciso de uma pausa. Para esquecer a vida que nos cerca? não, para a olhar com mais rigor, humildade e pesquisa. Para esquecer os erros e disfarçar? Não, para compreender e atuar, com intencionalidade e cuidado ético. Para nos tornarmos mais úteis e mais competentes. Mais serenos, resilientes e guerreiros. Mas com as armas certas e pensamento robusto. 

Preciso de uma pausa, para reorganizar, em silêncio, razão e emoção, combate e resistência, amor e rebeldia, liberdade e direitos. E esperança. E futuro. 

Preciso de uma pausa para aprender a lidar melhor com o que sinto, ouço e vejo. Silêncio, por favor. 

sábado, 23 de janeiro de 2021

Dias aflitos

Precisamos de palavras e de coragem. E um café quente, para sossegar, porque estamos suspensos da vida, com frio e medo. Precisamos de calor, para nós e para o mundo, que se move em rota livre, indiferente às nossas preces. Porque rezamos, mesmo que sem terço e ladainhas. À falta de melhor, trauteamos uma canção ou lemos poesia, para amenizar a aflição dos dias. Porque estamos aflitos, entre o caos e a redenção. Não há luz ao fundo do túnel nós que ansiamos pela definitiva claridade dos dias.

Precisamos de silêncio e paz, porque o tempo é de contenção e recato. Em movimentos e poupança de palavras, que às vezes ficam tolas e frívolas, desnecessárias. Porque a realidade é fria e cruel e não sabemos o que fazer com os números e a dor dos que ficam e dos que partem. Sentimo-nos à deriva e inundamos tudo com o nosso lado insensato e ruidoso. 

Precisamos de ficar em casa e se necessário, voar para fora da tristeza, enfeitando a casa de mar, brisa e searas de trigo. Romper paredes sem as tocar, percorrer caminhos sem abrir a porta, determo-nos num abraço amigo. E consolar a aflição no peito aberto de quem nos ama. Porque estamos frágeis e impotentes. 

Precisamos de ficar em casa, mas sabemos que amanhã é dia de sair e ir votar. Não queremos nem podemos juntar mais aflição aos nossos dias, aumentando a nossa perplexidade e inquietação. Precisamos de    manter a nossa democracia e a defesa dos direitos humanos para todos os homens e mulheres da nossa terra. Portanto, munidos de proteção da cabeça aos pés, vençamos o medo e saiamos para exercer o nosso direito de escolher a liberdade, a decência, a hospitalidade, a proteção, o trabalho, a saúde. Para todos. 

E depois continuemos em casa, menos aflitos e mais crentes na nossa capacidade para decidir e contribuir para um bom futuro e uma vida melhor. E apesar de não afastarmos dos dias o peso da aflição, participemos de corpo inteiro na alvorada de um novo dia. Isto nos compete e a isto temos direito.

Tudo o resto vai passar. Com danos e perdas, mas vai passar.