quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Tempos estranhos

                  

 

Os sábados já não são o que eram: comprar o jornal, beber o café na esplanada, tocar na mesa sem medo, sentir o vento bom sobre os cabelos. Se não o podemos fazer? Podemos, mas não é a mesma coisa. Tivemos de nos adaptar, mas estamos mais presos e condicionados. Nos movimentos, pelo menos. E na possibilidade de estender o corpo para além de um espaço seguro. Assético. 

Nesta espécie de suspensão de nós com os outros, a vida tornou-se rápida e veloz, marcada por urgências, para anular distâncias e do longe fazer perto. E se já saímos de casa é ainda em casa que permanecemos, acoitados na tecnologia, esse milagre dos tempos que nos suporta a ausência e repõe a comunicação. Mas nem sempre a relação e nunca a presença. Porque a presença tem cheiros, sons, mil metamorfoses de nós, riso, lágrimas, queixumes, suspiros e palavras. Saem fluentemente, em diálogos sobrepostos, mas vivos e legitimados pelo tempo em comum. E damo-nos ao luxo de jogar conversa fora, de perder tempo com os outros, esses que nos convencem que o mundo é mais confiável e desafiante quando vivido em boa companhia.

Por isso, neste tempo, não é fácil virar do avesso a realidade e descobrir bocados de beleza nos dias, neste outono de cores brandas e sol a desmaiar de mansinho. Apreciar os veios delicados das folhas, medir-lhes as formas e os tons, sentir o vento que assoma de leve, tingido pelo fresco do anoitecer. E o fresco das manhas, suave promessa para dias mornos, a pedir poesia.  

Descobrir a beleza de quem somos e do mundo à nossa volta exige espaço, tempo lento, partilha. Se os não podemos ter? Podemos, mas não é a mesma coisa. Precisamos de resiliência, vistas largas, leveza na alma, sensibilidade e bom senso. E amor, essa espécie de salvo conduto para as viagens ao centro de nós e dos outros. Para que nos possamos inventar para além de mensagens breves, de emails rápidos, de emojis fofos. Não sou contra, mas não chega. Precisamos de tempo e de relação, de beleza e de mundo. De gente, de palavras, de companheiros, de alegria.

Mantenhamos vivo o que nos torna humanos, nestes tempos estranhos. 

sábado, 12 de setembro de 2020

Ideias soltas...sobre a vida (comóda?) que detemos

Estamos bem e assim queremos continuar. Apesar do receio, somos do grupo dos protegidos, desses que a sorte reclamou para si desde que nascemos ou quase, num caminho regular. Temos trabalho, casa, informação, lemos, pensamos e opinamos. Vezes sem conta, a propósito e a despropósito. Com otimismo, somos os primeiros a postar que vai ficar tudo bem. Talvez, mas não para todos.  E nós sabemos, ainda que sem sempre o digamos. Quem gosta de revelar a verdade nua e crua?

Somos do grupo dos protegidos. Do covid? não, das coisas injustas e madrastas da vida. Não precisamos de andar de transportes, não vivemos em guetos, não sobra mês no fim do ordenado, conseguimos mais do que um pé de meia e mudamos os móveis de quando em vez. E compramos livros. E lemos. Não podemos ignorar, como nos disse a poetisa.

Somos do grupo dos protegidos. Tivemos sorte e educação, os nossos filhos são inteligentes, rapazes e raparigas aprumadas e simpáticas, que estão nas turmas certas. Porque os outros, os inoportunos, os sem sorte ou mal-nascidos, estão nas erradas, aquelas que ninguém quer. E atrasam os que sabem. E se atrasam os que sabem, o melhor é ficarem todos juntos. Parece que ainda há disto, por aí. Apesar do decreto da inclusão. Porque decretos são decretos e às vezes a pedagogia fica na gaveta. A realidade é dura e esquecemos-nos.

   imagem do livro "D. Miquelina, o seu filho e a professora"(Sara Monteiro; Catarina Marques; Ambar)

Somos do grupo dos protegidos. E não há mal em assim ser, não seja esta proteção sinónimo de vistas curtas. Porque o mundo não é todo igual e podemos dar como certa aquela que é a nossa condição. Como se todos assim vivessem. E não vivem, não é? Se andávamos distraídos, a pandemia mostrou o outro lado da vida de muitos meninos e meninas, como na história da Maria dos Olhos Grandes e do Zé Pimpão. Há quanto tempo não lemos as histórias certas?  

E agora que vamos voltar à escola, impõem-se planos de contingência e cuidados acrescidos. E neste limbo de contenção com os outros, temos que ser arrojados e saber proteger os mais desprotegidos. Na saúde? sim, claro. Mas sobretudo nos afetos, no cuidado e na atenção. Porque as vidas não são todas iguais e há grupos pouco protegidos do vírus, da desigualdade, do insucesso.

Nada de vistas curtas. Vemos ouvimos e lemos, não podemos ignorar.