domingo, 26 de maio de 2013

Sol e Luz

Uma tarde de sol luminosa, um céu azul a perder de vista, umas árvores floridas a pintar a paisagem. Tudo (quase) perfeito.

E nós inquietos com a vida, a tentar dar-lhe sentido. Alinhamos mais uma vez as razões para o nosso descontentamento e não encontramos nada de significativo a assinalar, que não esteja desde há muito na gaveta dos "impossíveis". São coisas perdidas, uma espécie de recortes, fatias de tempo, em que a vida não correu de feição e por isso, ficaram penduradas na janela do coração que de vez em quando se abre e deixa antever a saudade.

Uma imprudência, uma distração, não mantivemos a nossa vigilância discreta e lá de dentro saem sons e cheiros, princípios e fins de palavras, imagens imprecisas, coisas inúteis, mas ainda assim, poderosas, quando em rota livre, para tomar conta da nossa alegria em dias de sol e claridade como este, o que agora acaba. E pronto, contrariados mas racionais, lá vamos nós fechar o que não é para abrir. Fazemos todos os gestos necessários, alguma perícia acumulada facilita-nos a tarefa,  arrumamos tudo onde estava.

E suspiramos de alivio. Ainda estamos a tempo de não desperdiçar o sol que inunda a paisagem.  Claro, luminoso e intacto. Belo e convidativo. Tal qual o queremos, neste domingo. Para inaugurar a semana que aí vem, sem gavetas abertas e coisas inconvenientes.   

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Herança

É de madrugada e há 56 anos foi o dia em que nasci, mãe. Sei que foste ao lavadouro com as mulheres que estavam a trabalhar com a avó, comeste muitas cerejas e foste para casa já com dores. Depois eu nasci, no quarto da casa que já não existe, mas que muito amei. Parece que fiquei ligada a ti, perto da avò Carmina à espera da avó Rosa, a tua mãe, mulher da aldeia que ajudava a nascer as crianças. O mesmo fez à neta e bem. Dizem que o meu irmão, sentado ao colo do avô, no quintal, ia perguntando quando é que eu nascia e o avô dizia "à noitinha, com a lua cheia". E foi. Aquece-me esta ideia de ter nascido em casa, perto de todos.

Depois fui crescendo e como dizias, não te deixei dormir muito, menina rabina e chorona. Ainda sou. Menina é que parece que já não, mãe. Estou uma senhora - de idade, dizem os mais novos -  tal e qual eu dizia quando jovem era e me sentia capaz de mudar o mundo. Joan Baez, Moustaqui, Jacques Brel. Ouvir "Ne me quite pas", ler Simone de Beauvoir e sonhar com Paris. Ser escritora, mãe e correr mundo. Em liberdade. Tu sabes. Sempre com a cabeça noutro lugar. E tu em muitos dias, a dizer "mas porque não és como as outras raparigas?" e eu a encolher os ombros e a ir embora, fazer teatro e tu, entre o preocupada e o conformada. Como parece ser condição de mãe de uma jovem mulher. 

Agora tenho muitos dias em que não sinto a idade, apenas me sinto. Procurante, inquieta, apaixonada por causas e ideias, capaz de desbravar mundos e rematar conversas, reflexiva e intransigente, chata e obsessiva.  Assim sou eu. Herdei de ti uma alegria infantil e um sentido positivo da vida, o desejo de brincar, o interesse pelas pessoas, uma curiosidade que faz bem ao coração e ao futuro. Herdei também outras coisas, que são nossas, mãe, tu sabes, não vou falar delas. Passaste-as através do teu sangue, do teu ser, da tua juventude de mulher de 25 anos, da tua história. Assim se faz a vida. Assim se fez a minha. Parte dela, claro, porque a outra parte, fi-la eu, com a sabedoria que fui capaz de construir, a sorte que me aconteceu, os amigos que fui encontrando, os filhos que fiz e eduquei, a profissão que escolhi, os amores e desamores.Tu sabes, mãe.

Aqui estou eu. A fazer anos, neste dia, 22 de maio. Queria que estivesses aqui, porque a solidão é uma dor grande e o aconchego dos meus, uma equação incompleta. Faltas tu e fazes-me falta. Não há forma matemática nem milagrosa de resolver esta ausência. Já não sou jovem, mãe, já tenho rugas, já me dói o corpo e tenho cabelos brancos. Queria muito que os visses. E sobre eles conversássemos. Podia ser sobre a cor que melhor me fica quando os disfarço. E depois ríamos, de certeza. E eu veria os teus olhos castanhos, mornos e luzidios. E ficaria bem melhor. E tu também.

terça-feira, 21 de maio de 2013

De novo, a casa e os objetos

Voltámos lá, para fazer a ultima arrumação.
Vazia, a casa lá estava estática e muda, sentiam-se alguns ecos e vislumbravam-se imagens desfocadas, na sala de trabalho e nos quartos, assim me parecia. Pelo chão e na mesa, sacos, muitos sacos e dentro deles papéis, livros e dossiers. Tudo organizado e etiquetado, porque a amiga que viveu na casa, gosta de cada coisa no seu lugar e cada lugar com a sua coisa. À minha pergunta "e isto"?, com cara de quem devia rasgar ou deitar fora, ouvia mil explicações da sua utilidade para o futuro. Ou do seu significado face ao passado. Eu, em silencio obedecia, certa da sua absoluta lealdade para com os objetos que a tinham acompanhado. Por isso os queria ainda consigo. Para prolongar memórias, aconchegar sentimentos, inquirir futuros, aninhar-se em colos e réstias de saudade.


E de novo me espantei - ainda que talvez não devesse - com a sua admirável relação com o mundo, feita de gestos sossegados de bem querer e afagos eternos. É assim que é. Espraia-se pelas coisas, torna-as suas e cultiva-as, numa relação fiel com o(s) seu(s) sentido(s) e as suas histórias. Para todos tem enredos, pequenos apontamentos dispersos e no entanto profundamente colados à razão e emoção que a impele a amar. Porque é este o verbo que apoia e sustenta os objetos que guarda no templo da sua vida larga e grande. Como expressão de ter sido e ainda poder vir a ser, enquanto é. E assim entrelaça, num fazer continuo, pessoas, palavras, paisagens, tempo, passado, presente e futuro. E disso retira a filosofia com que alimenta o sonho, produz ideias, inicia e encerra capitulos do livro do seu viver. Que é grande, às vezes dificil de manusear e compreender, porque escrito em mil idiomas e grafias permanentemente inventadas.

Voltámos lá, para fazer as ultimas arrumações. Mas com tanta história e tanto desejo de a perservar, ainda muito lá ficou. Ou melhor, trouxemo-las para outro lugar. Para continuar a fazer contos e escritos da vida. Enquanto vida houver.

domingo, 19 de maio de 2013

Palavras emprestadas: uma conversa de almofada

Há dias assim.
Sentimos vontade de limpar a vida, retirar-lhe os pedaços inuteis, o que não vale a pena, as ervas daninhas. Um desejo de campo limpo, com trilhos marcados, numa rota direta ao essencial. Sem mais porquê ou para quê. Para que não nos confundamos, alheados e perdidos, em pequenas coisas de nada, que aniquilam os sonhos e a ternura que guardamos no lado esquerdo do peito.
Nestes dias, ao chegar à noite, cansados, procuramos poemas e pedimos palavras emprestadas a outros que disseram, de forma completa, o que andámos a remoer de nós para nós.

Assim:

Revoltavas-te, as tuas costas dobradas,
inclinadas para a frente, os seios tocando
nas pernas enquanto procuravas uma meia
debaixo da cama e franzias as sobrancelhas
numa cara de criança que acorda tarde:
"não percebo porque é que a poesia
tem de ser tão absurda". E eu respondia-te 
que tem de ser assim, porque o mundo
já está cheio de coisas concretas e práticas
que não fazem sentido nenhum 

Pedro Tiago in Comportamento das Paisagens

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Declaração

Aqui estamos nós. Tu a fazeres anos.
Olho para ti e vejo todo o tempo que já vivemos. A estrada ao longo dos dias, os atalhos e as pedras, as papoilas nos campos do Alentejo, o azul da ria, coisas que aprendemos a amar, porque pertença de um e de outro.  
Olho para trás e alcanço o inicio. Novos que éramos, todos os sonhos dentro de nós, combativos, inquietos, inconformados. Eu mais que tu. Tu mais que eu, quando foi necessário amaciar o medo em noites de vigília. Desta mistura, fomos fazendo uma casa, dois filhos, acolhemos os pais, enchemos o sótão de livros, fizemos mestrados e doutoramentos, tu lá eu aqui. Escrevemos postais e moldámos com paciência a solidão, numa espera amena de outros dias por vir. Acreditámos. E plantámos um jardim, comemorámos com amigos, dançámos até de madrugada. 

Desta jornada a dois e a quatro, nem sempre te dei guarida, nem sempre me deste também. Somos imperfeitos. Mas chamaste-me gaivota e entendeste o meu mar e a minha ocupação pela liberdade. E eu chamei-te colo e aninhei-me nele, nos dias em que as lágrimas me secaram a coragem.    

Olho para trás e vejo tanto tempo. Temos hoje rugas e cabelos brancos e aqui estamos. Quero continuar a acolher o teu ar cansado, nos dias em que não acertas com a vida. Em que olhas à tua volta e entristeces, tu, tão pouco dado a tristezas. Tu, pessoa ética, integra, fiel aos teus princípios e convicções, honesto e dedicado.Talvez seja por isso.

Olho para trás. Entre o tempo que passou e aquele que há-de vir, quero inaugurar dias mais limpos de imposições, para podermos olhar as giestas do Alentejo. E voltarmos lá, todas as primavera. Tu mereces. E eu também.
Parabéns.   

quinta-feira, 9 de maio de 2013

História de amor

Vai ser para a semana, disseram-me.
Um jovem casal vai finalmente buscar o seu filho, depois de o ter concebido meses a fio, num ato de amor prolongado, que fez cama e tomou forma no  lugar do coração e no projeto de vida a dois. A espera foi longa, muito para lá dos nove meses da barriga, porque este filho foi escolhido entre aqueles que já nasceram e esperam, também eles, muito tempo por um pai e uma mãe. Por isso, de tanta espera acontecida e tanto desejo retardado, imagino um encontro trémulo, encantado e um pouco receoso. Olhar-se-ão pela primeira vez e a mãe sentirá talvez umas pequenas dores na parte esquerda do peito e não saberá dizer, claramente, se é do correr da alegria no coração ou do susto doce deste parto a céu aberto. O pai talvez sorria e sem precisar de agarrar na mão da mãe para suster a força, não deixará de ficar estonteado pela chegada do filho, que virá sem o primeiro choro, mas igualmente coberto do muco do amor que foi envolvendo, camada sobre camada, o sonho de uma criança por cuidar. Um filho.  

O filho, um menino lindo, não sei como virá.  Mas terá dentro de si e na mochila transparente onde guardou todas as coisas vividas, um desejo (in)contido de chamar aos quatro ventos "pai, mãe...", e sentir o calor de um abraço que permanece e de um colo que acolhe.  E de uma casa, de uma cama com lençóis a cheirar a ternura, de domingos de manha com torradas, de tardes de passeio no jardim.  Por isso, entre olhares curiosos, sorrisos tímidos, gargalhadas frescas e palavras por dizer, o filho,  sentirá uma alegria imensa e a vontade de que tudo seja verdadeiro, mesmo a sério e  para sempre.

Para a semana apenas será o primeiro dia de uma longa espera do amor, que tardou a chegar, mas chegou. Em casa, o pai e a mãe já alindaram tudo. A avó também ajudou e anda com os olhos brilhantes e o coração suspenso. Prepara-se para contar histórias ao neto, em noites de luar. E ele vai gostar de ouvir. e dizer: "Pai, mãe, a avó contou-me uma história linda...".
Com final feliz, como desejo e sei que esta será.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Fim de tarde

Devagar percorro a rua empedrada e vou a pé até ao pôr do sol.
Nesse lugar em tons de fogo, permaneço inteira a perguntar por ti, ainda que nos meus lábios nenhum som seja percetivel. Evito perturbar o cair da noite e o romper da madrugada, espero a promessa do nascer do dia.  Assim fico, quieta e calada em cima da pedra lisa, agarro os joelhos e neles descanso a cabeça. Do fim das coisas apenas desejo saborear o mel e teimo em ignorar o fechar das portas, em tardes de despedida com fim à vista. O meu lugar é junto à esperança, a  vencer ondas de marés altas, conheço de cor o cabo das tormentas, já fui e voltei. 

De onde estou invento o mundo, com tons de fogo e azul da ria. Ouço o bater das águas nos barcos, o  barulho leve das garças, o vento em redor dos pinheiros, vozes de homens para a apanha do moliço. Nomeio-te e procuro-te nos lugares mais simples e completos, porque da vida se deve recusar apenas a sua metade. Assim te espero. Por inteiro.     

domingo, 5 de maio de 2013

Dia da mãe

Se estivesses cá, poderia dar-te um abraço e um ramo de flores e ver a tua cara sorrir, enquanto ias buscar uma jarra para colocares na mesinha do costume.

Depois, com tanto sol, de certeza iríamos tomar um café e tu vestirias a tua blusa mais bonita. Esperaríamos ainda pela chegada do teu filho, meu irmão, que viria - atrasado -  com a cara iluminada pelo amor e aquele ar de menino, meio traquina, que te levava a dizer vezes sem conta "não sei a quem é que ele sai, assim..." E rias, numa confirmação de amor eterno. 

Como isso não é possível, olho para os malmequeres que inundam os campos que vejo da janela e fico-me pela saudade.
Não há como voltar à tua presença. Isso dói um bocadinho neste domingo de sol, mãe.