domingo, 27 de janeiro de 2013

Gente rara

Ainda bem que temos gente que é capaz de olhar à sua volta e ouvir o silêncio das dores dos outros. É gente capaz de se apresentar de corpo inteiro para o que der e vier, ainda que raramente digam ao que vêm e nunca façam alarido da sua amizade e solicitude.

Discretos, sensíveis e pouco palavrosos, deles recebemos o sabor do mel, o calor do olhar, a alegria do riso.
Estão onde sempre necessitamos de os encontrar, quando já não sabemos lidar com noites longas de solidão, tardes de tédio, dias cinzentos de chuva.
Chegam e não cobram nada. Apenas aceitam um café, um chá de limão ou um chocolate quente. E assim ficam. Despojados de si e concentrados em nós.

É gente rara, mas existe. Com eles as manhãs são recomeços desejados e os sonhos ideias a alimentar e a perseguir. E isso é bom.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Dia inesquecível

Queria-me agora como há 27 anos.
Estar à tua espera, com a barriga muito grande, curiosa e calma, que medo nunca tive, não me perguntes porquê. Ir para o hospital no dia 25,  exatamente quando o médico disse que nascerias, ter o avô e a avó à tua espera e alguns amigos também. Com chocolate e sumo. E o jornal "sete", para eu ler na cama do hospital onde te fui acolher. Da minha barriga para o mundo, primeiro para o nosso, aquele que à partida te foi dado, por teres nascido de mim e do pai.

Queria muito que a avó estivesse agora aqui connosco. Lembro-me dela a entrar no hospital, com o braço do tio por cima dos seus ombros. A sorrir, parecia atrapalhada.  Amou-te desde o dia em que te viu e assim continuou pela vida fora. Foste o neto preferido, não que o dissesse, mas via-se na maneira como descansava os olhos em ti. Admirava a tua maneira de ser e a tua disponibilidade. Esperava que viesses da faculdade, para almoçares e contava-te todos os seus segredos e lamentos. Achava-te um bom ouvinte. E ria-se a bandeiras despregadas quando, a brincares com ela, imitavas o seu jeito de andar. Gostava que ela aqui estivesse e te olhasse de alto a baixo, encantada, a sorrir. E depois de um silêncio longo, sentada no sofá, dissesse  "é bonito, não é? está feliz, não está?". Se te sentisse triste, entristecia também.

E queria ter-te de novo a nascer. Ou pelo menos, sentir o calor da tua pele contra a minha e os teus bracinhos à minha volta. E os risos e as  brincadeiras e a tua atenção. Sempre extrema, sempre presente, sempre aguçada e inteligente. Olhavas para as coisas à tua volta e sabias exatamente o que elas queriam dizer. Sabias, mesmo sem saberes dizer. E eu sabia que sabias. A nossa comunicação sempre foi intensa, suponho que isso acontece entre todas as mães e filhos. Talvez com uns mais do que com outros. Pelas mães e pelos filhos, claro, e pela forma como conseguem "exercer" essa condição.

Queria voltar a sentir o teu cheiro de bebé, as covinhas que fazias quando rias, o teu ar lindo vestido de cor de rosa. Sempre quis contrariar os esteriotipos e os meninos de azul não tinham assim tanta piada. Quer dizer, ficavas muito mais bonito de rosa, uma cor suave que contrastava com a tua pele morena. Tenho muitas fotografias dessa altura, tu a sorrires, muito fotogénico. Pudemos tirar muitas, ainda não dizias que não, só começaste a recusar fotografias muitos anos mais tarde.

Como não podes voltar a nascer, nem eu posso voltar a ter uma barriga enorme, amanha, vou dar-te um beijo, ver muitas fotos tuas e deixar que a saudade me invada. Ando saudosista, eu sei, à procura de mim e de nós, na vida e no futuro. Sempre fui assim, continuo assim. É uma espécie de projeção, de voo direto para a frente, uma espécie de lançamento de dardo, uma corrida de fundo. E ninguém, nem mesmo uma mãe, se aventura para o futuro, sem pegar balanço no passado, arquear o corpo e lançar-se.

Nada melhor para este golpe de asa que relembrar os dias inesqueciveis da vida. Como aquele em que nasceste, 25 de janeiro, um sábado com chuva e vento, em Lisboa. Parabéns, filho. 

domingo, 20 de janeiro de 2013

Tarde demais

Não houve tempo para deitar as sementes à terra, regá-las com cuidado, apreciar o seu desabrochar e vê-las crescer. As folhas, as flores, depois os frutos. Não passámos do frio do inverno, embora tivéssemos sonhado com a primavera e desejado o verão. Mas não houve tempo.

E assim ficámos. Tristes, resignados e vencidos. Sem nada. Apenas uns livros e uns poemas, para levar debaixo do braço enquanto percorremos o jardim, que sem flores é uma paisagem inócua, neutra e limpa.

Não soubemos dar tempo ao tempo.

Hoje temos tempo de sobra para limpar todos os trilhos e canteiros do jardim, mas não há folhas, pétalas, bocados de troncos ou raízes. Está tudo absolutamente arrumado e certo, a nossa tarefa afigura-se inútil e o tempo de que dispomos, também.
Veio fora de tempo, como sempre acontece quando não podemos ou sabemos dar tempo ao tempo, no tempo certo. 

Não soubemos fazer como diz Eugénio de Andrade


Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Convite

Queria convidar-te para te aproximares e te sentares à soleira da porta, como a minha avó fazia quando comigo queria ter uma conversa séria. Séria porque reveladora, assim achava eu, admirando a sua pouca tendência para falsos moralismos e atitudes conservadoras. Falava e eu compreendia, ficando mais sabedora da vida e dos seus mistérios. Ouvir a minha avó era ouvir para além dela, porque ela parecia conter o mundo todo. Assim queria eu que acontecesse comigo. Aceitavas o meu convite e sentavas-te na soleira. Com tempo. E falaríamos de quase todas as coisas que não podem ser ditas, mas que florescem com força, junto de afetos profundos e apoios incondicionais. Dão-se bem em locais e com gente assim.

E eu passaria a mão pelo teu cabelo, dar-te-ia um abraço e o meu colo, para que pudesses repousar do cansaço e adormecer um pouco, aquietando a respiração e o desalento. Ficaríamos assim, quietos e mudos, apenas o corpo amparando o ser um do outro, porque assim é que deve ser. Então,  talvez à nossa volta fosse possível vislumbrar umas pequenas heras, trepando sem parar por todo o lado, confirmando que o amor, quando quer, é um movimento perpétuo, crescente e contagioso. Alastra em muitas direções, marca terreno, infiltra-se e ganha raízes. Fica condição de gente madura e livre. De gente sem medo. De gente competente, lutadora e resistente.  

- Quem, o amor? por favor, é coisa pouca, relativa e passageira. Sei que dirias isto, abanando a cabeça, naquelas verdades de juventude que tudo sabe e pouco acredita. E irias embora, impaciente, pensando de ti para ti que não há solução para a minha teimosia. E eu ficaria na soleira, ainda a sentir as heras, juro, a vê-las a alastrar em muitas direções e a querer chamar-te para te mostrar a minha ideia e convicção. E as heras. E lembrar-me-ia de novo da minha avó e desejaria ter a sua capacidade para conversas a dois, que sendo a dois, envolviam quase multidões. Por isso eram tão especiais.

E ao ver-te partir, teria vontade de te falar de novo do princepezinho e da raposa, do "essencial é invisível aos olhos, só se vê bem com o coração" e "ficas para sempre responsável por aquele que cativaste"...Mas sei que não ouvirias. E contra minha vontade, sei que talvez desistisse.

Também,  este é um tempo onde existem poucas soleiras de porta, eu sei, talvez este convite não deva ser feito, ou pelo menos impõe-se a mudança de local. Tomando esta providência, achas que já seríamos capazes de conversar?   

sábado, 12 de janeiro de 2013

Encontro

Combinámos tudo bem combinado - quer dizer, a nossa organizadora de serviço, que somos todas diferentes e uma de nós é a expert em decisões rápidas e ações em consequência  - acertámos horas e local, escolhemos restaurante, trancámos a noite na agenda e lá fomos para o jantar. Chegámos sem grandes intervalos de tempo, apenas uma, serena e radiosa, apareceu mais tarde, segredando que entre o fim do trabalho e o inicio da noite, descansou um pouco no sofá e vá-se lá saber porquê, os olhos fecharam-se...concordámos com a situação, trocando frases sobre a nossa juventude, que não sendo recente, não nos deixa ficar mal hoje, no corpo e na cabeça que temos. Pelo menos assim achámos e enquanto nos abraçávamos, com gestos quentes e risos fraternos, íamos-nos mimando, confirmando, que não mudaste nada...ah, não!! estás igual...talvez um pouco mais magra...e as rugas? Ah, nada disso....Passado 20 anos, dos anos loucos da faculdade, onde já entrámos mulheres feitas, com família, profissão, trabalho associativo, filhos pequenos, estávamos razoavelmente na mesma ou eram os nossos olhos e os nossos afetos que de tão contentes, apenas viam o que queriam ver. E viamo-nos agora com o lastro do tempo de então.

E esse tempo veio para a mesa, provocou gargalhadas fortes e descontraídas e o desfile de peripécias que nos pertenceram como alunas e grupo coeso: a professora que nos fazia chorar de tanto rir, as noites de trabalhos de grupo, com os filhos pequenos impacientes e a nossa permanente oferta de bolachas, os exames que não soubemos como passámos, a vontade de desistir e o apoio do grupo para que tal não acontecesse, a partilha dos apontamentos, o estilo de estudo de cada uma, as pipocas e o pequeno almoço na maratona da cadeira de Estatística...e a diferencial, demorei tanto tempo a fazê-la...e a psicologia do desenvolvimento? e aquela negociação do trabalho de grupo? 

Depois falámos da profissão e da reforma, da situação politica e social, dos filhos e sobrinhos, de outras amigas...demos a volta ao tempo da nossa vida, entre risos, fotografias, trocas de presentes simbólicos, promessas de novos encontros 
E assim estivemos, saboreando a comida e a presença de cada uma, numa conversa solta e bonita, que saltava entre umas e outras, confirmando a espantosa força da solidariedade e da amizade perpetuada até hoje, passado 20 anos de nos termos conhecido.

Quando saímos, ficámos ainda à porta em amena cavaqueira, acertando novos jantares que a nossa expert terá que agendar. Até porque temos que deslindar um aspeto em que não estava reunido o consenso: terminámos a licenciatura em 92, 93, 94?
Ainda não fui confirmar, nem vou! Quero esperar por novo encontro e confirmar a data. É um bom motivo para nos juntarmos e nos revermos.  

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Liberdade

É preciso entender porque anoitece todos os dias e quando a noite já vai alta, necessitamos de dormir, fechar os olhos e fugir das horas agitadas que nos atropelaram as horas do dia. E depois entender porque não dormimos sempre da mesma maneira e porque há sonos que são descanso e outros lutas sem tréguas, das quais acordamos cansados e incapazes...

É preciso entender porque choram os nossos olhos de saudade, numa teimosia inútil, quando a memória já está esquecida e o futuro se apresenta convidativo para empurrar a vida p´ra frente, porque prá frente é que é caminho. E assim entender  as manhãs em que o olhar fica preso a uma raiz, pequena e promissora que apareceu no caminho e nos fez tropeçar numa qualquer ideia batida... 

É preciso entender porque aceitamos sem reclamar quase tudo o que nos impõem e apesar dos protestos que ecoam dentro de nós, nos vestimos com as roupas que nos deram, convencendo-nos que só assim é possível ter lugar no teatro que andam a ensaiar. E depois entender, alguns gritos que nos saem da boca quando alcançamos o papel principal na peça que engendrámos num rasgo de ousadia...   

É preciso entender porque os outros nos olham sem nunca nos verem e apesar das longas e delicadas palavras de aclamação, nos reservam um lugar sombrio e fechado, sem horizonte ou ponta de luz, húmido e não respirável. E depois entender porque procuramos sem parar um lugar ao sol numa terra verde, com água a correr e flores silvestres que salpicam a paisagem de tons de primavera...

É preciso entender a força que temos, os sonhos que nos perseguem, a loucura que nos resta para sonhar o futuro.É preciso entender e empreender a aventura arrojada de sermos pessoas e não números ou multidão.

É preciso procurar uma terra prometida. Sem medo ou guilhotinas que nos aprisionem o pensamento, a convicção, a ação.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Intimidade

Ao fim da tarde,  no regresso a casa, por entre a multidão, senti falta do meu caderno. O caderno das minhas escritas que guardo no sótão e onde, em alguns dias, escrevo. Sempre tive cadernos e sempre gostei muito deles. Primeiro os da escola, comprados porque a professora mandava, onde fazia os deveres e onde as redações eram uma das tarefas prediletas, contra a surpresa e o protesto das colegas, que não entendiam tamanho gosto. Mas era assim, um prazer imenso, encher as linhas de palavras, à procura da maneira mais bonita de falar da primavera. O tema era imposto, claro, mas com sete anos eu sentia-me dona e senhora do sol e das flores, pela possibilidade de as descrever no caderno. 

Mais crescida, na adolescência, tive um diário, branco, com uma chave dourada, que o meu irmão me deu. Encantei-me com tudo, principalmente com a possibilidade de o fechar, trancando no seu interior as minhas palavras, secretas e impróprias para outros lerem. Não por causa da caligrafia, bem entendido, mas sobretudo pela liberdade com que alinhavava as emoções e os segredos de menina a crescer.

Quando me tornei educadora, o caderno foi material obrigatório por opção e estratégia de registo das aventuras vividas na sala, um apoio e um conforto para me aguentar com lucidez e entusiasmo na profissão. Desafio tremendo, o medo de falhar, de não ser capaz, a escrita como ponte para o sentido pedagógico. Guardei-os até muito tarde, gostava de reencontrar a jovem educadora que fui.

E por aí continuei, sempre com cadernos e escritas, que o papel é um rio claro onde podemos navegar sem receio e a água uma benção tremenda para aquietar a alma. Muitos cadernos me acolheram e me revelaram, de mim para mim, em diálogos intensos e onde, com muitas palavras, fui dando corpo ao que sou, penso, desejo e recuso. Em todas as dimensões da vida. 

Gosto de cadernos e sempre gostei. Fazem-me falta, gosto do cheiro, da cor das folhas, da letra meia descomposta, dos textos inacabados, das palavras rasuradas, dos  papéis que ficam lá dentro, do marcador que assinala a página onde ficámos. Mantenho este lado de escrita de infância.
O caderno...Já não se usa muito, eu sei, agora é mais fácil e adequado escrever no computador, mas eu mantenho este gosto e este compromisso. Ou melhor esta necessidade. E se estivesse agora a escrever no meu caderno, o texto não seria este. Este é um texto de computador. Os textos do caderno são diferentes. São apenas para mim.  

domingo, 6 de janeiro de 2013

Palavras emprestadas: Não me queixarei...

Domingo, de novo. Dia difícil, vamos lá nós saber porquê...
Não, não é assim, sejamos verdadeiros: saber, sabemos, não ousamos é dizer. Calamo-nos. Neste balanço entre vontade de calar e necessidade de escrever, sirvo-me de palavras emprestadas para limparem a água salgada que impede os olhos de avistarem futuros.  

"Não me queixarei da onda
que entrou violentamente,
mas da praia
que se mostrou demasiado acolhedora"

Murasaki Shikiba  

sábado, 5 de janeiro de 2013

Madrugar ao sábado

Madrugo para sentir o dia e o dia está lindo e cheio de luz. Com o olhar pode-se alcançar a serra da Arrábida lá longe, se for para o lado da praia pode-se ver o mar calmo e azul. Se olhar mais de perto e para cima, vê-se a forma das casas e das árvores, parecem recortadas e coladas na paisagem.  Como se de um desenho ou de uma pintura se tratasse.  Tudo no lugar certo e cuidado, ainda é de manhã e aos sábados as ruas ficam assim silenciosas, limpas do seu agitado movimento dos dias de semana.  Claras, absolutamente claras e brancas. Tranquilas. É bom.
E cheia deste sentido, percorro os espaços vizinhos de mim e da minha casa, que quieta ficou no lugar, com toda a gente a dormir. É apenas uma casa, embora lá dentro se encontrem todos os enredos de uma família, história que vai sendo escrita quotidianamente há mais de vinte cinco anos, com personagens reais. Não há na casa gente inventada, nem varinhas de condão ou passes de magia.

As ruas que percorro também são apenas ruas e no entanto hoje, neste sábado, parecem avenidas largas, amplas e com um convite explicito para que nos percamos nos seus atalhos.Atravesso-as de lado a lado, num gesto atrevido de liberdade. O vento, que é apenas uma brisa, toca nas folhas das árvores que moram por aqui e dá-lhes vida. Movimentam-se para cá e para lá, numa dança lenta e descompassada.

Tomo o café, agora sem açúcar, aprendo o sabor sem o doce, parece que é mais saudável, embora vá demorar um pouco, dizem-me os cá de casa. Aceito. Espero para ver, sou paciente e determinada. Às vezes, claro. E depende.

Depois vou comprar o jornal, sou fiel a este gesto, define os meus sábados e apesar de fazer contas à vida, neste dias de poupança obrigatória, não me desligo do jornal e do prazer de o ler. On-line não, obrigada. Pois, eu sei, é mais económico e até moderno, mas neste aspeto sou uma conservadora, faz-me falta o cheiro e o toque do papel, gosto de ler as letras gordas e as magras e de as ter impressas. Para além do conteúdo dos textos, gosto de olhar para o grafismo, as cores, as imagens. O rosto familiar do jornal.

Regresso a casa. O dia continua lindo, lembro-me do filme "A cidade branca" e embora não esteja em Lisboa, adapta-se bem ao que vejo e que tento colar a mim: luz, claridade, silêncio e frio, numa manhã belíssima de sol. Abro a porta. Silêncio. Continuam a dormir. O meu gato faz-me as honras da casa, encosta-se às minhas pernas e ronrona. Quer comer e sabe que responderei ao seu apelo. Assim faço e abro o jornal. Lerei apenas e por agora as gordas e deixo para a noite o resto. A manhã já vai a meio e impõem-se algumas tarefas. Tiro o casaco e penduro-o no cabide.
Certifico-me que o sol e a claridade continuam dentro de mim.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

História simples

Recomeçar. Apanhar o comboio e olhar o Tejo, azul e imenso, bonito, com a luz do sol e o frio do inverno. Ver a cidade, sentir-lhe o movimento, apressado e constante, com gente que entra e sai, que  anda e corre, fala, ri e ama. Sentar à mesa e mexer nos papéis, rever compromissos, ideias e projetos. Retomar o fio à meada. Fazer conversas soltas e sérias, consultar calendários e agendas, atender telefones que tocam, tomar apontamentos e acertar reuniões. Assim foi o dia, neste início de ano e de trabalho. Um dia longo.

No final da tarde, já sem sol, encontrei-os. Jovens e silenciosos, davam as mãos e sorriam entre si, num código pouco percetível, mas exposto. Julgo que não nos viam, tão absortos que estavam um no outro, apesar de um aparente cansaço que os obrigava a fechar os olhos e a dormitar, numa espécie de vigília. Não tinham malas, nem livros, nem coisa nenhuma, apenas as mãos entrelaçadas, os cabelos a tocarem-se, os corpos abandonados, as roupas largas e discretas, lisas, sem enfeites e cuidados. De vez em quando mimavam-se com gestos e sorriam, a confirmar que cada um ainda estava onde o outro o tinha deixado. 

No meio do burburinho de final de dia e regresso a casa, ali estavam, escudados do rebuliço que acontecia à sua volta e que pareciam não dar conta. Por isso os fixei, como imagem de luz e contraponto ao cair da noite e aos ruídos constantes do movimento dos comboios em hora de ponta. E também por serem bonitos, jovens, amorosos e despojados. Sem desperdícios e cenários montados, a não ser o calor e a tranquilidade que permanecia em seu redor.

Lembrei-me do poema do Eugénio de Andrade "Os amantes sem dinheiro". Aqui fica.       

Os amantes sem dinheiro

Tinham o rosto aberto a quem passava.  
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas sobre a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam o sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços  

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

"Se parasse de medo..."


Está sol, amanheceu o dia do ano que começou e aqui estamos iguais a ontem, cheios da vida que temos e ausentes do que está para vir. O ano apresenta-se difícil, temos medo das promessas e teimosias politicas dos que nos governam, não sabemos se o pão vai chegar e receamos perder a voz, com o peso de tanta obrigação e obediência. Se ainda temos casa, lareira e vinho sobre a mesa, sabemos que outros já pouco têm e muitos não sabem como distribuir o feijão que cozeram na panela. Assim estamos e com isto querem que imaginemos o futuro dos dias que estão para vir. Querem que continuemos fortes, atentos e cumpridores do menu que apresentam como prato único, para comer e calar. 

Desconhecem que nos sabemos guerreiros, não da guerra que inventaram, mas da vida que queremos e que por condição temos direito. Resta-nos manter a lucidez e uma espécie de resiliência ativa, para sem pieguices e falsas solidariedades, construirmos redes de resistência e apoio partilhado.  

Neste primeiro dia do ano, o desejo que não nos falte a voz nem as convições para lutarmos pela nossa vida e pela nossa dignidade. E todos seremos ainda poucos para cumprir este desígnio.
Como mote e inspiração, aqui ficam as palavras de Miguel Torga

Universalidade

"(...)                                                                                

Se parasse de medo no meio do caminho
Também parava a vela do moinho
Que mói depois o pão de toda a gente"