quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

História simples

Recomeçar. Apanhar o comboio e olhar o Tejo, azul e imenso, bonito, com a luz do sol e o frio do inverno. Ver a cidade, sentir-lhe o movimento, apressado e constante, com gente que entra e sai, que  anda e corre, fala, ri e ama. Sentar à mesa e mexer nos papéis, rever compromissos, ideias e projetos. Retomar o fio à meada. Fazer conversas soltas e sérias, consultar calendários e agendas, atender telefones que tocam, tomar apontamentos e acertar reuniões. Assim foi o dia, neste início de ano e de trabalho. Um dia longo.

No final da tarde, já sem sol, encontrei-os. Jovens e silenciosos, davam as mãos e sorriam entre si, num código pouco percetível, mas exposto. Julgo que não nos viam, tão absortos que estavam um no outro, apesar de um aparente cansaço que os obrigava a fechar os olhos e a dormitar, numa espécie de vigília. Não tinham malas, nem livros, nem coisa nenhuma, apenas as mãos entrelaçadas, os cabelos a tocarem-se, os corpos abandonados, as roupas largas e discretas, lisas, sem enfeites e cuidados. De vez em quando mimavam-se com gestos e sorriam, a confirmar que cada um ainda estava onde o outro o tinha deixado. 

No meio do burburinho de final de dia e regresso a casa, ali estavam, escudados do rebuliço que acontecia à sua volta e que pareciam não dar conta. Por isso os fixei, como imagem de luz e contraponto ao cair da noite e aos ruídos constantes do movimento dos comboios em hora de ponta. E também por serem bonitos, jovens, amorosos e despojados. Sem desperdícios e cenários montados, a não ser o calor e a tranquilidade que permanecia em seu redor.

Lembrei-me do poema do Eugénio de Andrade "Os amantes sem dinheiro". Aqui fica.       

Os amantes sem dinheiro

Tinham o rosto aberto a quem passava.  
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas sobre a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam o sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços  

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