segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Cumplicidade(s)

Podíamos vê-las sentadas à volta de uma mesa ou estendidas no chão, a trocar gestos e  falas secretas, em voz baixa, que as palavras ditas aos quatro ventos, sem recato e pudor, banalizam a vida e espalham leviandades. Coisas menos sérias e comuns, dejá vu, que se escrevem nos muros da cidade ou se postam nas redes sociais, clichés que andam de boca em boca, sem pertença ou identidade. Ao olhá-las, gestos leves e subtis, cabelos tombados e olhos expectantes, atenção focada em quem detinha a palavra, sabia-se que não era isso que as ocupava.
Desejavam, isso sim, à volta da mesa, iniciar a produção de uma obra de autor, coisa única e pessoal, que pudessem assinar, torná-la sua como descoberta, razão de ser e saber, coisa definitiva. Por isso se empenhavam, numa procura mansa mas persistente, em reter e partilhar a indizível natureza do amor e da amizade. Uma missão impossível, se escrita em livro ficaria um texto cheio de linhas interrompidas,  páginas vazias, bocados cortados e recomeços constantes, como se nunca se encontrasse a forma perfeita ou iluminada de a dizer. 


Por isso davam-lhe forma de conversa e nela tentavam decifrar o que sempre as tinha ocupado, desde que se sabiam gente e mulheres. Que coisa é esta, a do amor e da amizade? como descrever, definir, expandir ou reter, ilustrar contornos, encontrar a essência? contentes se embrenhavam nesta tarefa, com fome e sede de conhecer, pegavam em todos os pedaços de vida vivida, juntavam-nos, compunham-nos em peças intelegiveis aos seus olhos e crenças, remendavam, partiam, rasgavam, voltavam a unir e a sobrepor. Depois paravam, cansadas e felizes, olhavam para o que tinham dito e desdito e sorriam, pacientes, certas de que rasgos de inquietação ou desistência não seriam bons presságios para missão tão exigente.

Dizem, quem as via, que assim passavam longas tardes, discretas e belas, a tentar encontrar o sentido do amor que tinham pela vida e da amizade que as mantinha unidas, em torno desta procura e deste mistério.
Quem as ouvia, afirmava ser difícil entender o que diziam, porque falavam de mansinho, quase em segredo. Mas juravam escutar, vezes sem conta, algumas palavras... mãe, pai, filho, amor, amigo, abraço, companheiro, medo, pena, mulher, choro, riso, tempo, liberdade, pão, fúria, coração.


terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Promessa

Não falarei dos espinhos que se cravam nas mãos, sem me lembrar do perfume das rosas bravas que inundam a minha memória dos dias da primavera que surgem depois do inverno.  Nem tão pouco ousarei queixar-me do frio que se entranha na pele, nas manhas de nevoeiro ou da chuva que irrompe pelos caminhos e faz transbordar o leito dos rios.
Afastar-me-ei de todas as fúrias dos mares, cerrarei fileiras contra maus presságios,  não voltarei atrás a certificar-me da justeza de uma decisão.

Pinturas Modernas - 3 telasVer-me-ão atenta e vigilante a todas as manifestações de alegria, risos e murmúrios de crianças a brincar, vozes de amigos em conversas amenas, mulheres inteiras a procurar o mundo, homens doces em sobressalto de duvidas. 

De tudo tirarei um pouco para guardar e amealhar do lado esquerdo do peito, que de agora em diante, apenas escutará o sentido do tempo e das palavras que valham a pena.

Quero-me livre de todas as sobras inúteis de mim. 

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Persistir

Há dias em que nos sentimos transparentes. Transparentes e estrangeiros na nossa terra. Ninguém nos vê, ninguém nos reconhece, não entendem o que dizemos, exprimimos ideias e pontos de vista e... nada. Silêncio absoluto à nossa volta. Procuramos os olhares dos outros, queremos manter-nos ligados, acreditamos no valor do encontro, de sermos mais do que um à volta de uma ideia e de um projeto, mas isso não colhe adeptos nem seguidores. Ficamos sós frente às nossas convicções, sozinhos a pregar no deserto, atores únicos de uma peça sem casa cheia. E espanta-nos a ausência de outros, estranhamos que assim seja, mas é. E no entanto, se bem pensássemos, não ficaríamos assim admirados nem desconfortáveis na nossa pele, no nosso querer e no nosso pensar. Porque sabemos já,  de outras paragens e vidas vividas, que há sempre um preço a pagar pela liberdade de pensamento e pela ousadia de dizermos, com todas as palavras, o que pensamos, sentimos e acreditamos.

Exercício difícil, este, que nos confirma a identidade, traduz a autonomia, garante a autenticidade, mas impossibilita o reconhecimento e a convivência. Não tem solução fácil à vista desarmada. A não ser ficarmos transparentes, mais ou menos sossegados, sem grandes manifestações ou opiniões evidentes. Sejamos então, por escassos dias, contidos e de poucas palavras, para apaziguar a estranheza que se apodera de nós e de quem à nossa volta, se incomoda.

No entretanto, podemos sempre pensar na frase do poema da Sophia vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar , respirar fundo até à próxima vez, em que voltamos a ser quem somos. Sem pedir licença. 

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Palavras emprestadas: "Na ilha por vezes habitada"


Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí que se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raíz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

José Saramago "Provavelmente alegria"

domingo, 10 de fevereiro de 2013

A casa e o mundo

Deu-me um livro pequenino, uma espécie de bloco de apontamentos minúsculo, com uma fita bordada a fechá-lo, igual a outros que tem lá em casa, em cima das estantes, junto a postais, caixas redondas, pisa papéis italianos, panfletos de cinemas antigos ou museus, velas vermelhas, sinos,  fotografias, castiçais, almofadas castanhas com gatos azuis, cortinas cremes, com renda, capas com textos, muitos livros, musica. Muita musica. Um lugar cheio de objetos bonitos, próprios, pessoais, com muitas memórias e outros mundos, que não apenas a rua e os arredores onde foi construída a casa onde vive.

Gosto de ficar por lá, beber o café e conversar, mas gosto sobretudo de olhar e confirmar um dia após o outro que este é um templo, um espaço para se ser, lugar de vida e recolhimento, inquietação e harmonia, liberdade e afeto. Um lugar com tempo. O de ontem, o de hoje, o de amanha. Um lugar com história inacabada, principio e meio. O fim não existe, virá num futuro muito longínquo.

Gosto de casas, sobretudo daquelas onde os objetos são escolhidos e pensados lentamente, a revelar a vida dos que nela moram, a impor uma ordem e uma estética, a traduzir um maneira de ser e estar. O interior das casas são cultura, afetos, ideias, gostos, sonhos. Também alguns desgostos, também algumas dúvidas, também algumas penas. Mostram e escondem. As casas falam uma linguagem muda e no entanto, absolutamente audível e explicita, quando com tempo e curiosidade, nos detemos na sua contemplação.

Porque há casas que são o prolongamento do corpo e do coração dos homens e das mulheres que nelas vivem. Ou viveram. Mesmo. Bonitas e interessantes, cheias de mensagens e recados. E avisos. Dizem por exemplo, aqui mora alguém que ama a poesia, as memórias, que é e já foi feliz, que correu mundo, apesar de pouco ter viajado, que gosta de arte, que preserva os afetos, que teve infância, que amou, que lutou, perdeu e ganhou...

A casa onde hoje estive e estou muitas vezes é assim. Um gosto para os olhos, uma lição de vida. Porque é de vida que falam os objetos que nela estão, numa dimensão longa e envolvente, ainda que a casa não seja grande e a sua arquitetura, absolutamente comum.
Mas se olharmos com olhos de ver, tudo cativa e prende, parece um nicho, um regaço, e contudo, estamos na casa e sentimo-nos na rua, rodeados de imagens de galerias, pedras da praia, estrelas do mar, folhas secas de cor purpura, peças de artesanato, uma camilha muito branca sobre a mesa.
Tudo colocado num lugar exato, que é aquele e não outro, porque tudo está em relação e complementaridade. A poesia da Sophia ao lado do Fernando Pessoa, mais acima Manuel Alegre, Joaquim Pessoa, Natália Correia, Virgílio Ferreira, Jorge de Sena. E outros, muitos outros. E musica, muita musica. Maria João Pires, José Afonso, Carminho, Bethoven.

Eu não disse? Podemos-nos sentar na casa, colocar o CD do filme "Africa Minha"  e viajar no mundo, com as palavras. Bem aconchegados numa almofada com um coração bordado. Posso beber mais um café?   
  

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Dias de verão

Hoje estou cheia de bocados de saudade e réstias de sol no cabelo, como quando corria nos campos da minha infância, pisando, estonteada, tufos de erva molhada e chapinhava, com força, os pés nus nos carreiros de água a deslizar veloz pelo aido. Sinto a falta da terra, do cheiro das sementes, do sol a bater na eira, da sombra do alpendre, das joaninhas e das abelhas que voavam velozes e davam ao verão um zumbido de tempo inteiro.
O tempo não terminava mais e nós, com os corações a bater de tanta correria e descoberta, a mandar o corpo para cima da palha das espigas. Sem medo, tanto pó no ar, nós a sacudir a roupa, com gestos rápidos e as faces coradas de tanta brincadeira e contentamento. Depois a serenar, corpo parado, alma atenta, olhos brilhantes, felizes. Em silêncio, quietos, com cara ainda de riso, a olhar para os grandes, a sondar da sua condescendência e permissividade.

Podemos? Podemos, estão distraídos e ocupados, ceifar o milho, secar a palha, regar a terra, apanhar as uvas, guardar os animais. Recomeçar, novas corridas e gargalhadas, brincar às escondidas, enxotar o gato que atrapalha a corrida, sai sai bichano, danado, não posso parar, já não ganho...e abraçar a árvore, para descansar, por entre a algazarra e gritaria. Onde estão todos? já te vi, sai daí, assim não vale... 
Hoje estou cheia de bocados de saudades, imagens, lembranças, cheiros e coisas assim. Saudades de lugares e pessoas, o cheiro do café, as padas grandes com manteiga, o copo de vinho na mesa da cozinha, a maceira da carne,  o andar da minha avó, o caminho para a ribeira, a venda das nabiças na feira do largo da igreja. E o ceú azul, muito azul. E a eternidade da vida. Assim pensava eu, quando ouvia o cantar dos grilos e o coaxar das rãs junto ao moliço, na beira da ria.

Nunca mais vivi dias assim. Lentos, quentes e preguiçosos. A saber a amoras, ameixas vermelhas e uvas amaricanas, como dizia o meu avô. Ácidas e doces a desfazerem-se na boca. Tenho saudades disso.    


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Contas à parte

Temos a idade que temos. O caminho que percorremos já leva muitos quilómetros de estrada, conhecemos todas as curvas e pedras dos atalhos, o cheiro fresco do rosmaninho, a claridade dos campos a céu aberto e no entanto, ainda nos surpreendemos.

Num dia qualquer em que acordamos contentes e lentos, prontos para saborear mais uma jornada, ficamos de repente atónitos, incapazes de aceitar os sinais e as palavras que nos apresentam, num discurso de justificações claras, como se de uma operação aritmética se tratasse. Dizem-nos tudo, com uma evidência desarmante e no fim, somando e subtraindo ...9 fora, nada. Nada?  Como nada, se somos feitos de mil razões, ideias, sentimentos, ambivalências, crenças, desejos? digo mil, mas poderia dizer mil milhões, tal é a diversidade e complexidade da nossa natureza de pessoas que respiram.

E falta-nos a coragem e a lucidez para dizer que para os enredos da vida, as provas dos nove não se aplicam. A utilização de regras das ciências exatas para decifrar os mistérios de sermos gente são de reduzido alcance e proveito duvidoso. Não se enquadram, não se ajustam. E no entanto, ao nosso lado,  homens e mulheres seguros e incontestados, afirmam com evidência soberana, premissas irrefutáveis então, não vês que é assim? nem há mais nada para dizer, está visto e revisto... Não têm duvidas e raramente se enganam.  Para tudo têm uma explicação. Lógica, dizem, dando a conversa por terminada. São excelentes, dizem alguns, pragmáticos e racionais, dizem outros, com cabeças arrumadas e respostas rápidas.

Pois serão. Apenas não conhecem o tremor dos lábios numa conversa a dois, as gotas de orvalho nas madrugadas frias, o cheiro do pão quente com manteiga, o embargo da voz numa despedida, a cor das amoras a salpicar as silvas...
Apenas não sabem de que cor pintar a vida nem recitar poemas de amor. Atrapalham-se. Nunca dirão, apaixonados e inquietos

"A este desespero azul
de te querer ao pé de mim
chamam os homens amor.

Mas o amor é outra raiva
de arrancar o sol da lua.
É andar com as andorinhas na algibeira
e dependurá-las na chuva..."

José Gomes Ferreira