Sei que se encosta, calada e triste, aos pilares das suas memórias antigas e estremece, de medo, quando as palavras lhe faltam, numa conversa solta, à mesa do café. Volta-se do avesso e retoma o prumo, brinca e graceja, por entre uns laivos de surpresa triste que assombram os olhos cansados. Talvez se estranhe e se inquiete, porque foi sempre um rio de palavras, uma cascata forte, um mar incansável para os sentidos da vida.
Sei que teima, todos os dias, para repor o que sempre foi e já não é, mas sobram espaços em branco e tempo atabalhoado. Perde-se em pequenos recantos, manuseia objetos e sente-lhes o cheiro, na ânsia de se encontrar, de novo e para sempre. Compõe, com precisão lenta, objetivos e propósitos diários, reafirmando a si e aos outros, a sua liberdade e autonomia, princípios de que nunca abriu mão. Lê, passeia, escreve e reescreve, para tornar imutável o que lhe escapa e não retém.
E sofremos com ela e por ela, negando a fragilidade que nos esconde, mas que escorrega, teimosa e ilícita, pelo seu corpo e pelos gestos. E sentimos saudade dela e da sua experiência em nós, porque foi sempre uma amiga certa, uma casa cheia e um colo amigo. Porque foi sempre rebelde, lúcida e socialmente comprometida com a vida e com o mundo.
Como aceitar agora que se esconda em lugares remotos e deslaçados, a que dificilmente acedemos? Como conciliar o seu desejo de liberdade e a nosso dever de proteção? Olhamo-nos ao espelho e o que vemos incomoda o que tínhamos como dado e garantido. Não sabemos ser nem fazer. Olhamo-nos ao espelho e o que vemos, assusta, porque nos revemos hoje e no futuro.
Sem o poder de voltar atrás no tempo e nas circunstâncias, resta-nos acreditar no poder do amor, da amizade e do compromisso. Resta saber e sentir que amor com amor se paga. Será suficiente? Tentemos.
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