Tenho um sótão na minha casa, cheio de livros, muitos livros, estantes, mesas, computadores, sofás, quadros nas paredes, fotografias, desenhos de crianças, sacos e malas, peças de artesanato, uma máquina de escrever antiga, um estirador, dossiers, caixas de charutos, canetas, mantas no chão e muitas outras coisas. Mesmo muitas. É um sotão grande, local propicio à acumulação de coisas, tudo se trás cá para cima e existe uma desordem de sitio de trabalho até tarde, local de inúmeras conversas, intimidades com amigos, gente da casa e família. Espalham-se por todo o lado esses testemunhos, encontro no meio dos papéis, cartas, postais, prendas pequeninas, caixas, escritos e produções de crianças, números de telefone, recados, dedicatórias, lembranças, sonhos. É um sótão dificil, nunca está arrumado, enche-se com uma facilidade vertiginosa dos vestígios da vida, coisas pequenas, quase inúteis, mas que teimo em guardar, porque são parte de mim e do caminho que tenho feito. É neste sótão que penso, preparo aulas, procuro poemas para as crianças, desenho, escrevo, choro, deslumbro-me, converso ao telefone, leio, pesquiso, amplio ideias, fecho-me em mim ou fujo para longe. Sem nunca de cá sair. Foi e é neste sótão que desenvolvi longas conversas, fáceis, difíceis, bonitas, surpreendentes, repetitivas, desafiantes. Este sótão está cheio de palavras e gestos de vida, muito para além dos objetos e também por causa deles.
Às vezes zango-me e irrito-me com esta diversidade estonteante, procuro dominar e endireitar o pulsar quase autónomo deste espaço e torná-lo mais regular. Normalizá-lo, assim como uma qualquer outra divisão da casa. Dou uma volta na sua organização, imponho regras, cada coisa no seu lugar, livros de educação ao pé de outros de iguais conteúdos, os dossiers todos seguidos, as revistas juntas nas prateleiras, as fotografias perto umas das outras. Deito fora papéis antigos, rascunhos de reuniões, capas de encontros antigos, recados, canetas que não escrevem, pequenas peças de lego da escola... e suspiro de alivio. Fica tudo como deve de ser, direitinho, mais controlado e capaz de ser identificado ao primeiro olhar. Tudo certo e tudo exato. Mas passado algum tempo, tudo volta ao mesmo: sai-me, sem que saiba como, de um lado qualquer, uma gaveta ou coisa assim, um texto escrito num dia cinzento, uma carta de saudade, um escrito sobre as crianças, um poema de amor, uma fotografia minha antiga, uma despedida ou um reencontro. E sento-me no chão e leio e observo e penso e detenho-me...espalho as coisas no chão, vou buscar outras, recomponho e recomeço, reaprendo e revisito memórias e outros lugares. E desisto de arrumar este sótão à semelhança de qualquer outro espaço da casa. Não é isso que ele é, não é assim que o vejo, não posso domar a sua natureza quase selvagem. Porque ela traduz uma parte significativa de mim, nós e laços que fui atando e destando ao longo da vida, num dedilhar errante que ainda hoje se cumpre. E sem alternativa, conformo-me com a sua principal função na casa: um lugar de recato e trabalho, memória, projeto e criação. Que assim seja, pois.
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