Chamava-lhe a Teresinha das ternuras, porque era uma menina doce e também porque nesse ano, em tom de brincadeira e de afeto, quase todos tinhamos outros nomes acrescentados aos que nos tinham dado à nascença. Eu por exemplo, era a Manela aguarela, derivado de termos andado a compor rimas. Ah e claro, também a experimentar aguarelas. Melhor dizendo, pinturas "aguadas". A Teresinha tinha 4 anos e até janeiro, nunca quis fazer desenho. Também nunca insisti muito, fazia muitas outras coisas, principalmente andar agarrada a um urso, seu companheiro fiel dos dias da escola.
Depois do ano novo iniciámos um projeto e um dia fomos todos ver o rio Tejo, os barcos, andámos à beira rio e apreciámos os voos das gaivotas, durante muito tempo. Lindas que eram, cinzentas e brancas, a voar em muitas direções. De regresso à escola e com tanto entusiasmo propus que fizessem o desenho das gaivotas, "ou de outra coisa que tivessem gostado", lembro-me de ter dito, numa tentativa de não condicionar muito. Pensava eu. As crianças procuraram diferentes papéis, lápis, canetas, deitaram-se no chão, cobriram o espaço todo da sala e começaram a fazer gaivotas. Eu, jovem educadora, estava maravilhada com tanta liberdade de traços, riscos e rabiscos e com as formas diferenciadas das gaivotas. Eram grandes, muito grandes.
Cirandando pelo meu deles, de repente dou com a Teresinha a chorar em silêncio, sem um unico risco ou rabisco na folha branca. Rápida, ajudei-a a lenvantar-se, sentei-a no colo e perguntei-lhe porque chorava
- Mas oh, manela, eu não sei desenhar
- Teresinha, claro que sabes, então, fazes como quiseres, cada um faz à sua maneira
- Mas eu não sei, eu não sei! E continuava a chorar, agora já a soluçar.
Poderia te consolado um pouco mais a Teresinha e depois tê-la deixado ir ter com o seu urso, como tantas vezes acontecia. Mas o choro da Teresinha, a recusa em sair do meu colo, a sua quase aflição perante tanta competência dos outros meninos, levou-me a continuar junto de si e ouvi-me dizer
- Tu queres desenhar?
- Não, eu não sei...mas eu gostava de desenhar
- E o que é que querias saber desenhar?
- Olha uma casa...gaivotas não, uma casa.
- Queres que te ajude?
Então, contra muita coisa que tinha aprendido, peguei num lápis e na mão da Teresinha e juntas, comigo a comandar o traço, fizemos uma casa. Rudimentar, daquelas que todos fizemos na infância e que é um retângulo e um triângulo por cima, a fazer de telhado e outro retângulo a fazer de chaminé. Não fizemos só uma, fizemos várias, todas iguais. A Teresinha acalmou o choro e seguia os traços com interesse. Quando as gaivotas dos outros meninos começaram a chegar para que as vissemos, eu e a Teresinha mostrávamos as nossas casas, que ficaram expostas com os nossos dois nomes, junto das gaivotas.

E assim aconteceu. Com o passar dos dias e semanas, foram aparecendo em papéis brancos, muitos outros desenhos da Teresinha, nada rudimentares, sem casas e com coisas que ela queria e gostava. Nunca mais me pediu ajuda. A que tinha sido dada, parecia ter sido a necessária, ainda que metodologicamente ao contrário do que tinha aprendido e continuo a acreditar: cada um faz a casa como sabe e não como os crescidos querem. Mas há meninos, ainda que não muitos, que precisam de um colo e de um envolvimento significativo com o adulto, para desembrulharem o fio da criatividade e combaterem o medo. Hoje, julgo que fiz bem. Principalmente por ter acreditado no poder do afeto e nas capacidades da Teresinha. Ainda que durante algum tempo me tenha perguntado se deveria ter agido mais cedo ou se a tarde do passeio ao Tejo fora o momento exato. O tempo que levamos a entender como é cada criança. Não fossem as gaivotas e as lágrimas da Teresinha...
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