sábado, 28 de setembro de 2013

Poesia, precisa-se

Sábado de chuva. Nada a opor, o dia está de bem comigo, hoje

Olho lá fora o cinzento do céu e o verde das folhas molhadas das árvores. Retenho o correr da água que cai e imagino o calor das casas pela manhã. Não de todas. Quero-me quieta e em silêncio, aquecida por uma chávena de café quente, embrulhada numa manta de algodão. Preciso de me aconchegar, sinto o corpo desamparado e o coração trémulo. Uma inquietude, ainda que leve, assombra-me o dia, necessito de me recompor com palavras belas e promissoras. 

Temo que a poesia me tenha abandonado e se assim for, não tenho outras armas para me abeirar do mundo e entendê-lo. Necessito de voltar ao principio, rever o mapa, confirmar o ponto de partida e assegurar o ponto de chegada. Reconfigurar a viagem, com pão, sol, água, amigos, sonho, loucura, esperança e precisão. Alguma mestria, se possível e toda a arte de que for capaz. Necessito de me orientar e assegurar de que permaneço com a força de sempre.   

Ainda assim sei que não posso prosseguir sozinha, desprovida que estou de um dos meus utensílios de maior alcance para o sucesso da viagem. A alegria de pegar em palavras e desenvolver as ideias e a esperança com que alimento a vida que me alimenta. Preciso de me traduzir. 

Aqui fica, por Ferreira Gullar    


Traduzir-se

Uma parte de mim 
é todo o mundo:
outra parte é ninguém
fundo sem fundo

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza 
e solidão

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte 
delira

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte se sabe
de repente

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte, 
linguagem

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Ferreira Gullar

1 comentário:

  1. Gostei muito desta poesia de uma(?) poetisa que desconhecia. Tenho andado encantado com outra poetisa de nome Cecília Meireles. Denxo aqui uma quadra apenas do epigrama nº 2.
    És Precária e veloz, Felicidade.
    Custas a vir,e, quando vens não te demoras.
    Foste tu que ensinaste os homens que havia tempo,
    e, para te medir, se inventaram as horas.
    Um abraço fraterno
    Jsarmento

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