domingo, 12 de julho de 2015

Dias de Encontro

De novo em casa. Um domingo cheio de sol e o sentimento de dever cumprido. De novo no meu sótão, para agradecer as palavras que responderam à chamada e com ar composto, foram o meu chão e o meu céu para partilhar o trabalho com as famílias. Acho que se saíram bem na revelação das práticas de envolvimento e participação que a muito custo e sem desistir, fui fazendo, neste mar revolto, em terras da Trafaria. Obrigada às famílias por me terem confirmado que a persistência é o único caminho. 

Dois dias de encontro, em Coimbra, no meio de comunicações, risos, palmas, concordâncias, discussões, assim e de outro modo, talvez, mas, claro, claro, aos poucos e sempre... E sempre esta ideia e esta prática justa de educadores que se juntam e se dizem, e ao dizerem-se, reafirmam a sua profissionalidade, ou como disse a Assunção, falam sobre a coisa da profissão, esta coisa de ser educadora de infância.

https://chicponto.files.wordpress.com/2012/08/unic3a3o.jpgFoi isto que fizemos todos lá em Coimbra. Uns sentados, a pensar e a argumentar, outros a tomar a palavra e a dizerem de sua justiça, que a profissão se constrói na divulgação e visibilidade das práticas, entrelaçadas em referências e convicções, essas âncoras imprescindíveis para alimentar e enquadrar com ideologia e princípios, a pedagogia e a construção do currículo. Em contexto e em comunidade, sempre.

Os que subiram ao palco, partilharam as coisas da profissão. Projetos, crianças, familias, intencionlidade educativa, articulação curricular, competências e qualidade, creche e jardim de infância, documentação, polticas educativas, Justiça e direitos. De tudo se falou e se deu provas, que não basta ter intenções é preciso forjá-las ao serviço de espaços de aprendizagem e desenvolvimento. Os educadores como gestores e intelectuais do currículo.  Capazes de dizer, sim, capazes de dizer não, capazes de chamar a si a construção da sua profissão.

Fiquei cheia e ainda assim estou. Cheia de palavras, de pensamentos, de imagens, de cansaço. Um cansaço bom, sim, um cansaço contente, por continuarmos a ter coragem para desocultar o que fazemos, acreditamos e sonhamos. Por acreditar e não desistir de tomar a palavra e desassombradamente, revelar os mundos da infância e os mundos da profissão, como espaços para crescerem crianças, familias e profissionais, pessoas de corpo inteiro, gente com direitos, projetos, emoções, poder e legitimidade.  

E lembro-me de Vinicius de Morais, que a Joana citou "Quer? então faça acontecer que a unica coisa que cai do céu é a chuva".
É isso mesmo. E nós fizemos. Obrigada a todos e à APEI.

sábado, 4 de julho de 2015

Maturação

Já não escrevo há muito tempo. As palavras têm ficado amarrotadas na ocupação excessiva do ultímo mês, longas horas de trabalho, festas de final do ano, avaliações, reuniões, sínteses, coisas assim para ficarem registadas em processos, arrumados e organizados. As palavras, no ultímo mês, viraram prova e memória e perderam a sua projeção de futuro. Então retaliaram. Não te acompanhamos mais, estás a ser seletiva, fazes prosas formatadas, não nos deixas livres e belas. E desapareceram.

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhHk2RDg-aAsa6rCC3fV90MoJcHwIbZyh3P7Xt606E1fSwKLxrATDxtD_S9MuZhJ4sNOBVVn9k00Ln7ViRaw7Dw2C-OU5SY6V7V-SGbakO-PZva7SI0bRbH3o-L-NsqiJlHsu5D7VxlZWI/s1600/word_cloud.pngHoje decidi enfrentá-las e pedir-lhe de novo namoro. Estão a fazer-se rogadas, ainda que as sinta a desprenderem-se aos poucos, com alguma cerimónia, ensaiando passos tímidos de donzela. Estão desconfiadas, sabem bem que preciso delas, fortes, precisas e destemidas. Sabem que as vou convocar para traduzirem um percurso de relação e envolvimento e depois oferecê-las a outros, para que vejam e pensem e discutam o que são e fazem como pessoas e profissionais. 

Amedrontam-se claro, acompanham os meus receios e as minhas dúvidas de serem capazes de traduzir, com clareza e fidelidade, a viagem realizada, num mar revolto, aquele que banha a terra onde estamos e as pessoas que nela vivem. Meninos, meninas, pais, mães, comunidade.

Dizem-me que ainda não estão prontas, precisam de mais tempo e maturação, sabem que este compromisso é para cumprir e elas são os mestres da cerimónia, as que abrem as portas, acolhem quem chega, constroem o cenário, provocam o pensamento, convocam a experiência. Tenho que as ter de feição, à medida do que somos e vivemos no nosso lugar. Foi tanto. Foi muito. Foi pouco.

Espero que não me falhem. Sexta-feira, em Coimbra, preciso que estejam do meu lado, a revelar a verdade do caminho, os percalços da viagem, as vezes que lançámos as redes e as recolhemos sem peixe e danificadas. E que mostrem, sem receio, as tentativas de as remendar para voltarem a ter uso no mar revolto.

É sábado. Espero que respondam à chamada e logo logo, estejam prontas a revelar a vida vivida. Já falta pouco para o encontro. 


quarta-feira, 10 de junho de 2015

Procura

Um vento morno anda pelo ar, algumas folhas voam leves pela manhã, do sol resta-nos um pouco de luz a compor o dia de primavera. Algumas raízes permanecem no chão, a lembrar que somos o que fomos e mais o que há-de vir, podemos alcançar a lua, mas sabemos não ser fácil libertar o corpo para dançar com as estrelas no topo do céu. 

Entretanto, arrumamos a casa e algumas palavras, abrimos gavetas para arejar saudades e apaziguar o desejo de infinito. 

http://images.forwallpaper.com/files/thumbs/preview/26/267016__starry-night-sky_p.jpgProcuramos o poema e deixamo-lo aqui ficar. Queremos-nos irmanar com a beleza do mundo e comungar de outras palavras. 
As nossas, hoje, não chegam para sonhar madrugadas. 


Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço - 
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer 
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor

que te procuram.  

Helberto Helder 
(excerto do poema "Tríptico") 

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Infância guardada


Tambéu eu, tambéu eu

http://images.artelista.com/artelista/obras/fichas/5/3/1/8665872844407418.jpgTambém eu, também eu,
joguei às escondidas, fiz baloiços,
tive bolas, berlindes, papagaios,
automóveis de corda, cavalinhos…

Depois cresci,
tornei-me do tamanho que hoje tenho;                    
os brinquedos perdi-os, os meus bibes
deixaram de servir-me.

Mas nem tudo se foi;
ficou-me, dos tempos de menino,
esta alegria ingénua
perante as coisas novas
e esta vontade de brincar.

Sebastião da Gama


sábado, 23 de maio de 2015

Andar aos dias

Ainda tenho em mim o gosto pelas madrugadas frias, enrolada num cobertor à espera do sono, entre rios de memórias e praias desertas. Ainda percorro, sem lamentos, a geografia dos dias passados, elegendo o melhor que pude fazer, acomodando em gavetas um pouco desarrumadas, o que fiz sem jeito, engenho e arte. Ainda me esboço bailarina num palco imenso, esse sonho escondido de menina, que o futuro não quis ver em cena mas que o coração nunca esqueceu.

https://sacudindoasideias.files.wordpress.com/2014/01/mulher-escrevendo_3_thumb2.jpg?w=540Ainda me lembro de ti, de ti e de ti. E mais de ti. Levo-vos para todo o lado, colados à história do que sou, mistura certa para suster a respiração e renovar com fé, a construção dos dias na terra. Ainda pego nos utensílios que conheço e cultivo o amor e a amizade como combinação perfeita para afastar os feitiços da dor e do desalento. Ainda me quero amiga, mãe, companheira, profissional e cidadã do mundo. Convosco perto de mim, para ser corajosa e não ter medo.  

Ainda me abraço às palavras, num namoro permanente, amassando os dias desencantados, compondo pequenos textos, adjetivos e verbos mais que perfeitos, num exercício de resistência, para repor a rebeldia e escapar à morte lenta da vida, em vida. Ainda me sinto a andar aos dias, catando-lhes todas as possibilidades, numa procura quase física. Ainda  me embriagam os odores, as memórias e os sonhos. 

Apenas vão mudando em mim pequenas parcelas do corpo, o contorno da face, as rugas disfarçadas nos olhos, algumas cicatrizes da passagem do tempo, que as promessas de renovação celular não conseguem resolver. 

Não é pouco, mas ainda não é o suficiente para esmorecer em mim a comemoração da vida, (quase) todos dias. Assim me mantenha, hoje e por muito tempo, convosco por perto. 

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Famílias

15 de maio, dia da família, dizem. Pois que seja e pensemos nelas. Lá pela sala, não por ser este dia, mas porque assim estava combinado, tivemos a mãe de um menino connosco, a ajudar-nos no "projeto dos bebés". Não sei bem se assim o posso chamar, mas não vou agora deter-me em questões de rigor científico e pedagógico sobre trabalho de projeto. Para além da correção das fases e do seu desenvolvimento, este é um projeto, sim, que nos envolve por todos os lados (a uns mais do que a outros, claro) e envolve muitas famílias, sim. Entre janeiro e fevereiro nasceram dois bebés e agora mais seis mães estão grávidas. Algumas barrigas, grandes e lindas, entram-nos pela sala todos os dias, outras ainda pequenas, também avançam destemidas. 

Com tanta barriga, os bebés entranharam-se nos nossos dias, e andamos à procura de os conhecer um pouco melhor, que é o mesmo que dizer à procura de nos conhecermos, a nós e aos outros. Um bom motivo neste contexto. Já temos um espaço reservado na sala, uma mesa com livros sobre bebés, uma caixa forrada pelos meninos, que guarda objetos de bebés (chupetas, fraldas, biberons, roupa pequenina, brinquedos...), pinturas e desenhos de mulheres grávidas e muitas conversas com mães que vêm e passam um bocado connosco.

Hoje a mãe do M. respondeu a perguntas dos meninos e meninas e depois fez o desenho da família para um livro que estamos a fazer e se chama "nós somos assim...". A mãe do M. mostrou a barriga e a bebé (é uma menina) deu pontapés e todos se riram, entre surpreendidos, encantados e alguns um pouco nervosos, pareceu-me. Depois foi ajudar a "vestir" a mãe da L., que na semana anterior se prontificou a ser o nosso modelo e deitada no chão, deixou que os meninos a desenhassem de perfil.

Desenhou-se um bebé, colámos na barriga, em cima de algodão e com o cordão umbilical. E agora tinha que ser vestida. Já está, com a ajuda da mãe do M. e de um grupo de meninos. tem as unhas pintadas, flores numa mão, um vestido de pano cru que pintámos com canetas de tecido, uma saia preta, curtinha, umas meias às riscas e uns ténis também às flores. Ah e um colar e os lábios pintados. Está muito gira, dizem. Também acho.

 A mãe da I. foi lá com a filhota, de 3 meses e também nos contou como tinha sido o nascimento. E ainda faltam ir as outras mães. Os bebés entraram-nos pelos dias e assim andamos. E falamos do que precisam para nascerem e crescerem bem. Entre nós e com as mães.

É claro que é uma alegria e um rebuliço, e uma tempo meio caótico, na nossa sala e creio, na vida destas famílias. Um rebuliço meio infantil,  às vezes surpreendente, às vezes meio difícil, às vezes meio por acaso, pressinto. Mas vejo-lhe os olhos e sinto-as determinadas e doces, a carregar o peso de sonhos e afetos, profundamente amarrados ao seu corpo e à sua sorte de mulheres muito jovens.
 Entram na sala e ficam meias estarrecidas, sorriem para o estendal de desenhos e pinturas, livros e objetos, que colocam os bebés, os seus, no meio da vida da sala, no meio da vida dos outros filhos, os que ali andam e esperam os manos e manas. E descansam as mãos na barriga, em silêncio, a rir ou a brincar. Há de tudo, porque as mães e as familias são todas diferentes e todas iguais.

É claro que muitas outras coisas havia para dizer, neste dia da família e de tantos bebés por nascerem. Mas hoje não vou escrever sobre isso. Não me apetece discorrer sobre necessidades, direitos, vidas justas e outras tantas matérias desta realidade tão complexa e tão simples que nos dá a todos o primeiro colo e o primeiro leite. Pão e amor. Eu sei que nem sempre é assim, mas também sei que as famílias que vemos na televisão, essas lindas e e perfeitas e serenas e tudo... não existem. Ou se existem, também têm os seus achaques, como diria a minha avó.
E lembro-me do poema de Adriana Calcanhoto a Ciranda da Bailarina. Porque todo o mundo tem, só a bailarina é que não tem. Aqui fica.

Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
(...)
Só a bailarina que não tem
(...)
Todo mundo tem
Um irmão meio zarolho
Só a bailarina que não tem
Nem unha encardida
Nem dente com comida
Nem casca de ferida ela não tem
(...)
Medo de subir, gente
Medo de cair, gente
Medo de vertigem quem não tem?
Confessando bem
Todo mundo faz pecado
Logo assim que a missa termina
Todo mundo tem
Um primeiro namorado
Só a bailarina que não tem
Sujo atrás da orelha
Bigode de groselha
Calcinha um pouco velha ela não tem
(...)
Sala sem mobília
Goteira na vasilha
Problema na família quem não tem?
Procurando bem
Todo mundo tem


sábado, 2 de maio de 2015

Dia da mãe: o essencial

Maio chegou. Lembro-me do cantor e do poema maio maduro maio, quem te pintou e encanto-me de novo com a doçura do mês. Tem cheiro de flores, cores de primavera, lutas de abril que ainda o salpicam. É um mês maduro e fecundo, assim o sinto. E foi nele que nasci e foi nele que foste mãe, minha mãe. Sinto-te a falta, para olhar para ti e celebrar a vida, esse sopro pequeno que cresceu em ti e fez de mim o que sou. Com outras histórias, pois, que mãe não dá conta de tudo. Mas dá conta do essencial.

E o essencial talvez fosse, hoje, sentarmo-nos à volta da mesa e lancharmos as duas, o sábado é perfeito para umas torradas e um café quente, aquele da cafeteira, a fumegar com cheiro da infância. Depois sacudir as migalhas, arrumar a loiça, sentarmo-nos no sofá a comentar as notícias. Tu a dobrares umas meias dos rapazes, parando a ouvir, a tua curiosidade a desafiar as minhas explicações de filha informada. Gostavas disso, ainda que criticasses o meu tempo gasto na rua e na profissão e as rotinas domésticas esquecidas. 

http://www.wikinoticia.com/images/www.jardineria.pro.feed/www.jardineria.pro.wp-content.uploads.2010.02.Ramos-de-flores1.jpegO essencial hoje, talvez fosse ver umas quantas roupas no teu quarto, espalhar as blusas e as saias e passá-las a pente fino, eu a pressionar a sua renovação, tu zelosa, a fazeres comentários sobre cada peça, relembrando o seu bom estado e a inutilidade da mudança. Quando cedias, um riso breve inundava-te o rosto e a alegria de mulher cuidada aparecia junto a um leve contentamento, esse de ser tratada com afeto e atenção, tal qual fizeste durante o tempo em que fui menina e em que mulher me tornei. Porque amor com amor se paga.   

O essencial hoje, era, talvez, voltarmos a ver o álbum de fotografias que te ofereci num aniversário e rirmos a bom rir com as caras dos rapazes, doces e atrevidos, comentando cada graça e cada pulo de crescimento. Os beijos e abraços de bebés, as poses atrevidas da adolescência, as fotos das primeiras namoradas...E tu a rematares, entre suspiros, tão lindos que eram...já cresceram, pronto, já estão homens.

O essencial hoje era que estivesses por cá, cirandando pela casa, permanecendo entre nós, como aconteceu nos últimos anos da tua vida. E que amanha, dia da mãe, recebesses um ramos de flores e te sentasses à mesa para um almoço melhorado. Um prato do teu agrado, aletria e um bom café, por entre o essencial do dia: a alegria de estarmos em conjunto, a celebrar a vida. 
Não sendo possivel, aqui fica o essencial de mim, a escrita da minha saudade e da tua recordação boa.