sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Lições de pedagogia: verdade e consequência

Quando entrou no jardim de infância, ainda não tinha três anos, só os fazia em dezembro. Pequeno, muito pequeno, tinha uma expressão séria e triste. A separação da família, principalmente da avó, era-lhe muito dolorosa e passava os dias a chorar, parando por alguns momentos, quando se concentrava em alguma situação ou companheiro.  Nunca se separava da mochila que trazia fielmente às costas, a prolongar o cheiro e o aconchego de casa. As nossas palavras, atenção e abraços não o consolavam e muitas vezes durante o dia, pedia:
- Manela, vamos dar uma voltinha à rua...
E lá íamos os dois de mão dada, acertando o passo pelo recreio, comigo a falar, para espantar a tristeza e criar vínculos. Nesses momentos abrandava o choro e ficava mais tranquilo, fazia algumas perguntas e distraía-se. Quando voltávamos para a sala, de novo chegava o choro e o desconforto, a tristeza. Com mochila e no meio da sala, parecendo sempre pronto para sair,  a sua participação passava pela atenção que tinha a tudo o que acontecia em seu redor e que seguia muitas vezes, apesar das lágrimas nos olhos.  Sentia-o profundamente atento, apesar de tão pequeno e do choro continuo.
Um dia, no final de novembro, disse-me, pondo a sua mãozinha no meu ombro, chegando-se a mim e sem prenunciar o r
- Manela, esc(r)eve ali no diá(r)io que hoje eu fiz um t(r)abalhinho lindo...
- Mas tu fizeste um trabalhinho lindo? Eu não vi...
- Não...mas esc(r)eve, Manela
- Olha, ali no diário só podemos escrever o que acontece mesmo, só podemos escrever verdades, o que combinamos, o que acontece, o que fazemos... e tu não fizeste nenhum trabalhinho...eu não vi. Fizeste?
- Mas esc(r)eve, Manela, esc(r)eve que eu fiz um t(r)abalhinho lindo pa(r)a minha avó Linda...
- Não posso, tu não fizeste...mas se tivesses feito, onde é que querias escrever?
- Ali Manela, ali...no "gostámos", apontando a coluna correta do diário.

Fiquei a olhar, espantada pelo conhecimento do menino, que no meio do choro, tinha aprendido o nome das colunas do diário e de alguma forma, o seu significado. Fiquei indecisa, tive muita vontade de lhe fazer a vontade, estive quase a fazê-lo para o tranquilizar, para o premiar, para o mimar, para que tudo ficasse bem.  Mas, no respeito pelo M, pelos outros meninos e pelo sentido da utilização dos instrumentos de regulação do grupo, afirmei
- Olha quando é que escrevemos no diário? é quando fazemos mesmo as coisas, não é? e tu fizeste o trabalhinho lindo? ainda não fizeste...
Então, numa decisão que não lhe conhecia, foi buscar um papel, pegou numa caneta, tirou a mochila e de pé, fez um "trabalhinho lindo". Um desenho com traços, bolas...e deu-me.
- É pa(r)a a minha avó. Manela, agora esc(r)eve que fiz

Ainda que de uma forma muito rápida e estratégica, o  menino, tão novo e tão pequeno, tinha compreendido que para "se escrever tem que acontecer", aceitando as regras da sala e o modo de funcionamento do grupo. E eu, apostando nesta situação para valorização do trabalhinho e da decisão do menino, coloquei o nome, a data, vi o desenho, conversámos e depois fomos escrever os dois na coluna do "gostámos" que "o M. fez um trabalhinho lindo para a avó Linda". Á tarde, em conselho, em grupo, mostrámos o trabalho a todos e lemos o que tínhamos escrito.

Nos dias seguintes, a mochila foi sendo retirada aos poucos das costas e deixada esquecida pela sala, até ser finalmente colocada no cabide, aí ficando todo o dia. O M. continuou a fazer t(r)abalhinhos lindos e os períodos de tristeza foram diminuindo, enquanto aumentava o seu envolvimento e participação na dinâmica do grupo.
Estivemos em conjunto mais dois anos e o M tornou-se uma criança muito ativa e interessada, e um elemento fundamental no acolhimento aos que chegavam de novo.  Tenho a fotografia dele aqui no meu sótão, mesmo em frente à secretária, a sorrir, oferta dada quando foi para a escola.

Foi por isso que mais uma vez a olhar para ela me lembrei desta lição: vale sempre a pena manter a autenticidade e o respeito pelo que fazemos na sala e vale ainda mais a pena, agarrar as oportunidades e ajudar os meninos a darem alguns saltos no seu desenvolvimento. No caso, aproveitar o diário, cuja função o M. já tinha compreendido, como estratégia de libertação da mochila e inicio de uma integração mais ativa na vida do grupo. Coisa que só se faz unicamente com verdade.

1 comentário:

  1. Hoje ouvi a Manuela ler esta história. Desta vez foi a ler! Sim, porque já tinha ouvido tantas outras...mas não a ler. Histórias que me têm ajudado a crescer enquanto pessoa e professora do 1º ciclo. Espero em breve que a Manuela as partilhe com muitas mais pessoas.
    Há" pessoas raras" Um beijinho ;)
    Eunice Ribeiro

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