domingo, 16 de dezembro de 2012

Conto do mar

Está frente ao mar, a olhar para ele e não se vê rasto de coisa nenhuma. 
Regressou há pouco de uma viagem arriscada, tinha partido com a bagagem necessária, preparara-se meses a fio e no entanto desistiu antes do tempo, conta-se, por não ter forças para nadar e recusar obstinadamente os utensílios de sobrevivência em alto mar.  Quando chegou, viram-lhe um rosto sombrio e lamentos disfarçados, mas fechou todas as janelas, calafetou-as com energia determinada, decidido a não ouvir o soprar do vento e a brisa marítima, nem os gritos das gaivotas em terra. Ficou em silêncio durante muitos dias, entrando e saindo de casa em terra firme, com os olhos no chão. Não queria ver o azul do céu, esse gesto confrontava-o com a lembrança da cor da água, suave e doce, que pensara encontrar quando partira em viagem. Apesar de avisado de eventuais riscos, não acreditou e assim, cedo os conheceu, justamente quando a tranquilidade das águas se agitaram e ameaçaram varrer tudo em seu redor. Não soube ou não quis aguentar a surpresa da tempestade que subitamente chegou e desanimado, desistiu. Os que puderam, falaram-lhe em retomar o barco e o sonho, lançar-se de novo, aconselharam-no a ser mais afoito e resistente, mas olhou desconfiado para as palavras e o propósito, fechou o rosto e ensurdeceu ainda mais.

Pela primavera alguns viram-no rondar a praia, apreciar as gaivotas, lançar pedras para a água,  em gestos tímidos de pacificação. Um burburinho correu na vila, andava de boca em boca a ideia que talvez tentasse de novo, animados alguns decidiram recolher coisas que o ajudassem na próxima partida, tal era o desejo e a convicção que isso seria um bom (re)começo. Mas desistiram passado tempo, quando o viram de novo trancar as portas, deixar de procurar a linha do horizonte e de seguir as pegadas das gaivotas.

Hoje vêem-no decidido a sair de casa em terra firme, sorri sempre que necessário e reúne-se às vezes ao fim da tarde, no café, falando da vida da cidade e de partir para longe. Ninguém se atreve a dizer-lhe que esse parece um destino pouco ajustado para quem ama o sal do mar e o cheiro das algas. Mas ficam perturbados, não lhe vêm rasto de vestígios no corpo ou na memória da  partida que um dia encetou: um pouco de areia a sair dos bolsos, odor de maresia no cabelo, saudade trauteada em canções do mar. Nada. Confundem-se, nem sequer sabem já confirmar se um dia chegou a partir, tal é a ausência de qualquer rasto naquilo que é.
Apenas a mulher mais velha da vila afirma a pés juntos que anda a falar do que não quer e  que a boca não diz o que o coração sente.      


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