Já não escrevo há muito tempo. As palavras têm andado silenciosas, certamente inebriadas pelo sol e pelo calor que se tem feito sentir. Hoje, com a chuva e o vento como companhia, escapo-me para o sótão, lugar de trabalho e reflexão, lugar de aconchegos e intimidade. Eu comigo, eu com os outros.
E hoje é domingo, 4 de outubro, dia de eleições. Já fui cumprir o meu direito e vi muitos também a fazê-lo. Fico sempre emocionada com esta possibilidade de reafirmarmos o que queremos e desejamos, ainda que muitas vezes, os resultados não me satisfaçam o meu sentido de mudança. Mas é uma possibilidade vital para a democracia que os homens e as mulheres, de caneta em punho, escolham o que querem. Dizer sim e dizer não, para uma terra de todos e para todos. Com liberdade, autonomia, igualdade, sucesso, bem-estar e dignidade, trabalho, uma casa, pão e vinho sobre a mesa, educação, saúde. Sem ciclos de pobreza e exclusão que recaem, sem dó nem piedade, sobre os mais vulneráveis: idosos e crianças. Os que nos deram cultura e afeto, construíram parte do nosso mundo, participaram n a nossa história pessoal e coletiva. E as crianças, como pessoas de corpo inteiro, que necessitam de o ter quente e cuidado, num coração com promessas e dias longos, felizes e completos.
Emociono-me sempre, ver este direito em ação, nas filas de gente a votar. E lembro-me da minha mãe que se vestia de novo nestes dias e lá ia em silêncio, contente desta oportunidade para expressar a sua opinião. Olhos brilhantes e voz em sussurro, como se ainda duvidasse deste poder, depois de tantos anos de ditadura e de opressão da liberdade e do pensamento. Ela, mulher, a quem foi negado, a decisão e a livre escolha. Nas eleições e na vida. Como tantas outras, durante mais de 40 anos.
É por isso que estou assim, aconchegada neste sótão, a olhar o tempo e a pedir que não limite as idas às urnas. Porque isso é um ato de vida conta a morte, a indiferença e a estagnação. Afirmemos o direito a um tempo e uma terra diferente, a favor e com as pessoas. Todas.
E por aqui vou ficar, para ao fim da tarde me colocar junto à televisão. Espero que a única tristeza que me invada seja já não poder telefonar à minha mãe, para comentarmos, entre risos e palavras soltas, os resultados eleitorais.
Fico com a poetisa e com as suas palavras certas, neste dia.
Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo
Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia"
Mais uma vez: espetacular.
ResponderEliminarVai servir, também, como meu apelo ao voto.
Obrigado.
obrigada, eu. E que muitos votem...e bem, não é?
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