sábado, 10 de janeiro de 2015

Ano novo, velhas questões

Já passou uma semana de trabalho. A semana a seguir à entrada de um novo ano, o que significa começar com novas expectativas e propósitos. Intencionalmente definidas, inconscientemente desejadas. Na pausa letiva, planeámos, refletimos em equipa, reorganizámos espaços, aprimorámos os instrumentos e lá começámos. 

E lá fomos, rindo e dando abraços, fazendo coroas e cantando as janeiras, escrevendo no diário, partilhando e...batendo, empurrando, chorando, protestando, fazendo queixas. Como sempre. No final da semana impacientei-me e zanguei-me. Á séria. E numa reunião de urgência (é porquê, Manela?) falei, falei e falei...o silêncio pairou no ar, junto com olhos de espanto. Os meus e dos deles, ainda que por motivos diferentes. 

Falei de mim e da minha dificuldade de os compreender, do meu gosto em ajudar a ter uma sala onde todos se entendessem, da minha recusa em andar permanentemente a gerir zangas e conflitos. Disse isto com palavras que saiam em catadupa, com a emoção à flor da pele, com a verdade de ser quem sou. Pedi que me explicassem, uma vez mais, porque se batiam e se empurravam, em vez de serem gentis e amorosos, como a história que tínhamos lido no dia anterior. As respostas vinham em conformidade com normas de moral decoradas, portamo-nos mal, não partilhamos, não devemos bater...mas quando direcionei, com gestos corporais e muita energia, a questão, o que é que vos acontece no corpo e no coração para baterem...alguns disseram ficamos com raiva...estamos irritados...não nos controlamos.
 
Estava dado o mote para continuar a conversar, agora reorientando as falas, minhas e deles, para a necessidade de crescer com mais calma, tolerância, sentido dos outros, amizade e alegria. Aos poucos os discursos ficaram mais suaves, descansámos todos por encontrar sugestões para os próximos dias, lemos uma história a pedido de alguns Diz-me como é ser grande. E falámos de afetos, de zanga de pais, da violência de alguns adultos, em apontamentos que ficam para nós, não se divulgam. O resto da tarde foi serena, respirávamos de alívio, julgo, por termos conversado sobre coisas que nos moem as ideias e o coração.

Andei em interação com eles, numa vagareza lenta como o caracol, com as palavras que tinha dito a ecoarem em mim, certa que enquanto falava para eles, falava também para a minha deceção, eu que investira em desejos de comportamentos novos, ingenuamente centrados nas minhas conceções de trabalho pedagógico e desenvolvimento do currículo. A acusar a dificuldade de como fazer, para além da utilização de instrumentos de regulação do grupo, dos conselhos para discussão da vida da sala, da leitura de histórias escolhidas a dedo para os problemas de relação, de conversas individuais com empatia, de colos dados todos os dias. E da afirmação regular que posso ajudar quando sentem que vem aí a raiva. E com uma inquietação leve de não saber se tanta emoção pode ter repercussões positivas nas crianças e no seu estar no grupo.

Vim para casa neste final de semana em balanço, mais uma vez. A interrogar-me sobre o significado e  a adaptação do currículo para cada grupo e para o meu, em particular. Com o sentimento incómodo que as estratégias que utilizo andam em contramão com a realidade familiar e comunitária dos meninos e meninas, reforçadas em práticas e conceções de olho por olho, dente por dente. Que a minha persistência em escritas sobre os problemas, no diário, são entendidas como fantasia pedagógica ou adorno engraçado de escolinha, porque tudo o resto, à nossa volta, se estrutura em função de normas e pedagogias autoritárias e pouco negociadas. Esse é o ar que se respira e nos enche, sem pedir licença, as práticas e a intervenção, num processo de osmose quase perfeito. Engole-me às vezes também, ainda que resista como posso.

Vim para casa a pensar se foi legítimo e terá alcance a minha emoção e zanga. Mas nada pude fazer conta isso. Para me aquietar relembro João dos Santos (1991) 

"A criança precisa de ser frustrada para sentir que não pode possuir tudo e para poder pensar em vez de fazer; de ser contrariada para sentir que há outros interesses para além dos seus; de sentir agressividade e também de a manifestar; de ter pais e educadores reais e não seres convencionais, frios e dogmáticos, daqueles que fazem educação pelo manual. Precisa de desobedecer para aprender o que é a desobediência; precisa de fazer experiências dolorosas para aprender a conhecer e compreender a dor; a criança precisa de ser educada com verdade".

Vou reler o livro "A escola faz-se com pessoas" de Pascal Paulus. Já li há uns anos e ajudou-me nestas matérias. Preciso de voltar a pensar nelas. Pelas minhas crianças e por mim.

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