domingo, 21 de abril de 2013

Lições de pedagogia: dói-me...tenho que gritar!

Lembrei-me dela na quinta-feira, quando vinha de Setúbal, depois de ter dado a aula na ESE. Lembrei-me do seu rosto bonito, olhos e cabelo preto, uma postura contida. Silenciosa, a andar pela sala de um jardim de infância onde estive, há muitos anos.
O ano tinha iniciado há cerca de um mês, estávamos todos em adaptação e a conhecermo-nos mutuamente. Um dia, da parte da tarde, um pequeno grupo de meninos perguntou-me onde tinha almoçado, por certo a tentar descobrir a educadora para além da sala. Respondi e devolvi a pergunta, que depressa se espalhou pelo grupo, gerando animação, muita partilha e conversas sobrepostas. As crianças falavam dos almoços com as mães, os avós, outros familiares. A N. estava em silêncio, a observar e eu, numa tentativa de lhe dar a palavra, de a incluir no grupo, perguntei-lhe:
- E tu, N. onde almoçaste?
Com uma expressão que nunca lhe tinha visto e uma voz também estranha, muito alterada, quase aos gritos, disse:
- Ai achas? achas que almocei com a minha mãe, achas?

Fiquei absolutamente surpreendida. A expressão do rosto, dura, o tom de voz, alto e acutilante, mostraram-me uma menina que não conhecia, furiosa e zangada. E comigo, parecia-me. Sabendo que não tinha pais e que vivia com uma tia, disse, num tom de voz o mais natural (?) possível
- Não, N., eu sei que não podias ter almoçado com a tua mãe, tu já não tens mãe, eu sei, ela faleceu e o teu pai também.
Falei pausadamente, escolhendo as palavras, um pouco a medo, sabendo-me a pisar terreno movediço, com os outros meninos muito calados a olhar para mim e para a colega, julgo que também a estranhar o seu ar resoluto e assertivo, quase desafiador, para comigo. 

Numa tentativa de amenizar a situação e torná-la mais leve - achava eu - perguntei-lhe:
- Tu lembras-te da tua mãe, tens fotografias dela?  
Olhou para mim, com os olhos muito abertos e num tom de voz ainda mais alto,  falando muito depressa, disse:
- Ai achas? achas que vivia numa barraca, velha e suja, e que tinha uma máquina fotográfica para tirar fotografias?

Acho que gelei, com a força das palavras e com o insucesso da minha pergunta pedagógica. Tinha-a feito para estabelecer pontes, suavizar o ambiente, reduzir a dor, restabelecer o diálogo. E tinha falhado. A N. parecia ainda mais zangada e triste. Com o silêncio em nosso redor e as caras espantadas dos outros meninos, falei a seguir, desta vez sem pensar muito. 

- Não, N. eu não sabia que tinhas vivido numa barraca, mas às vezes não temos máquinas fotográficas e alguém tira uma fotografia. Isso já aconteceu comigo, uns amigos tiraram fotografias a mim e aos meus filhos. Poderia ser que também tivesse acontecido contigo. 

Desta vez não adociquei a voz e não me preocupei com o tom pedagógico, utilizei a minha emoção e pensamento, com a clareza que pude  e  com a (in)certeza de que para tanta fúria eu teria que surgir e aparecer naquele momento, como alguém forte, seguro, que aguenta um embate de uma zanga profunda com o mundo, por parte da uma menina.   
Nesse dia não conversámos mais e a N. vagueou pela sala, o resto da tarde, triste e calada, sem falar com ninguém e quase sem me olhar. Tentei aproximar-me dela, mas recusou e eu respeitei o seu desejo.

No dia seguinte, quando cheguei à escola, a N. já lá estava sentada na soleira da porta, como às vezes acontecia, quando chegava mais cedo. Disse bom dia e olhou-me com os olhos calmos e doces. Perguntei-lhe se me podia sentar e ela abanou afirmativamente com a cabeça.  Ficámos assim um tempinho e depois, a N. olhou para mim e disse-me:
- Queres saber coisas da minha mãe?

E eu disse que sim. E ali ficámos à conversa, em voz serena, a N. a partilhar lembranças, com olhos tristes, mas um coração aberto, tanto quanto a idade dela o permitia. E eu em silêncio, ou com pequenos diálogos, a alimentar e a amparar as confidências que brotavam da sua boca e do seu coração de menina pequena. Quando outros meninos começaram a chegar, fomos para a sala e iniciámos o nosso dia. Lembro-me que tudo correu como de costume e que a N. se manteve atenta, silenciosa, com o seu sorriso doce, que aparecia quando olhava para mim ou interagia com os colegas.

Nesse dia e durante muito tempo, lembro-me de pensar que tinha sido bom alguém ter perguntado pelo meu almoço e eu ter devolvido a pergunta à N. Foi isso que permitiu os seus gritos e  a explosão da sua dor, escondida - julgo - há demasiado tempo dentro de si.
E as dores necessitam de ter tempo, lugar e gente para se dizerem. Mesmo que comecem com sete pedras na mão e alguns gritos. Terão que ser entendidas e acolhidas como uma forma legítima e imperiosa de expressão. Para que abram caminho para uma certa reconciliação com a vida. Antes que seja tarde.

1 comentário:

  1. Li e reli esta passagem com as lágrimas a aflorarem... Quantas crianças nos passam pelas mãos escondendo tristezas e revoltas e não as conseguem solta, deixando que as vão corroendo dia após dia...

    Maria La-Salete Sá

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