Olho-me ao espelho. Procuro-me para além da imagem que vejo. Procuro a menina que fui. Julgo que mora algures em mim, espalhada nas coisas que fiz, contida neste corpo que é meu e que tu me deste, há 60 anos, neste dia de maio. Vim cheia de primaveras, com cheiro de flores e promessas de futuro, que se foram cumprindo, apesar de tantos sobressaltos. Por isso te quero agradecer. Por me teres dado guarida na tua barriga, no teu colo, nos teus sonhos de jovem mulher. Por nunca teres desistido, por teres vencido o cabo das tormentas, por teres cuidado dos dias e amparado o sono das noites, aconchegando-me os lençóis para não ter frio. Para ser forte e persistente, apesar das dores. E fui. Por ti e contigo. Mas também por outros e com outros.
Com a minha avó e a sua ternura e bravura. Um exemplo de autonomia, liberdade e mestria. Histórias de lobisomens, milho na eira, pés na água da rega, brincadeiras infinitas em tardes a perder de vista. Agradeço-lhe o amor e a rebeldia, essa convicção profunda de que querer é poder e que a solidariedade é um bem a promover.
Com os meus rapazes, esses que vieram por amor e encheram o tempo de uma alegria maior, salpicada de inquietação e receio. Olho-os e relembro o mistério do seu crescimento em mim, inspiro a saudade da sua meninice, acalento a lonjura de tantos desafios. Orgulho-me do que são, homens lindos, gente inteira, cabeça e coração em compassos acertados.
Com o meu companheiro, que soube apreciar os meus voos de gaivota solta e sem construir gaiolas, persistiu na recolha de paus e folhas para o ninho, que dura até hoje, resistindo ao sol escaldante do verão e ao frio rigoroso do inverno. Com ele e por ele, a certeza do amor como compromisso e liberdade incondicional.
Com os meus amigos, esses que foram e ainda são companheiros de vida e lugares de descanso e que me ensinaram as leis da lealdade e do bem querer. Que nunca me deixaram desistir, que confiaram, que me ouviram e desafiaram a ser mais, a pensar melhor, a continuar e a resistir. Obrigada ao meu mano, um amigo especial, que fazia o presépio comigo em cada natal frio e hoje me dá abraços quentes e flores, em dias de festa.
Com as crianças e a profissão, por quem continuo apaixonada e envolvida. Obrigada pelo seu amor e pelos seus ensinamentos. Por me fazerem acreditar, convictamente, que podemos fazer a diferença nas suas vidas, apesar de erros e dúvidas. Obrigada pelos risos, pelas conversas, pelas brigas e birras e por me mostrarem a complexidade e riqueza da(s) infância(s), desafiando-me a não me acomodar.
Obrigada ainda às palavras e às ideias que sempre me apaixonaram e me vão mantendo viva, procurando-me um pouco todos os dias. Para que me possa cumprir e ficar sem medo do que virá depois.
Para não esquecer
Esta foi sua empresa: reencontrar o limpo
Do dia primordial. Reencontrar a inteireza
Reencontrar o acordo livre e justo
E recomeçar cada coisa a partir do principio
(Sophia de Mello Breyner)
Sem comentários:
Enviar um comentário