sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Lições de pedagogia: ser-se quem se é

Era uma menino assertivo, tinha uns olhos azuis muito grandes e curiosos, sempre à procura de todas as novidades que o mundo lhe pudesse dar. Atento, as suas intervenções eram sempre muito diretas e incisivas, bem como as suas opiniões, que não deixava por boca alheia. Uma vez a ouvir uma poesia sobre o arco-íris e a amizade, não se coibiu de afirmar, isso não é verdade, essa coisa do arco-íris da amizade não existe, só se for aí nas palavras ou na vossa cabeça referindo-se a mim e ao grupo que tinha gostado da poesia. Retorqui como soube e pude, defendendo a liberdade de cada um poder acreditar no que sente e no caso, poder imaginar o arco-íris, as cores e os amigos. Fiz uma defesa forte pelo sentido da palavra e da poesia e ainda me lembro do seu silêncio a olhar para mim e da contrariedade de não lhe ocorrer nada para dizer, depois das minhas razões.    

Um dia, perto do natal, esteve em silêncio a ouvir o  planeamento que fizemos para a festa e nada disse. Sabia que não podia participar nestes festejos - a cultura e a religião que professavam em casa não o permitia - limitando-se nestas situações a fazer outras coisas, aceites por todos, depois de um dia ter apresentado ao grupo os seus motivos e eu ter ajudado na sua explicitação. 

Como sempre, depois do planeamento, metemos mãos à obra e lá fomos organizando a festa, sendo necessário, em alguns momentos, fazer ensaios, porque o grupo tinha escolhido apresentar um teatro.

Lembro-me de ter cuidado em não encher os dias só com estes momentos, permitindo e favorecendo a manutenção das rotinas e de um ambiente o menos stressado possível, convicta da importância de conceder ao natal a sua importância, sem contudo lhe dar um estatuto de hipótese única na sala. Porque é assim que entendia a intervenção com as crianças e também porque pensava no menino e na sua necessidade e direito de inclusão no trabalho diário. Mas sei que apesar destas preocupações, o natal invadia o espaço, as conversas e as produções das crianças.

Numa dessas manhãs, mais perto do dia da festa, íamos a entrar na sala, depois do tempo de recreio e o menino disse-me:
- Anda cá, Manela, quero dizer-te uma coisa
- Diz lá, disse eu, rodeada de muitas crianças
- Não, não pode ser assim, tem que ser em particular. E afastámo-nos os dois para um canto, sem ninguém presente
- Manela, não me digas que agora vais entrar e vais começar a ensaiar...
- Sim, temos que fazer isso, muitos meninos entram na peça e muitos têm faltado, precisamos de acertar tudo...
- Bem Manela peço-te que não faças isso...ainda por cima tu não és assim, não és essa educadora, és diferente...
- Diferente como? 
- Diferente, sabes aceitar as coisas, sabes pensar em tudo, tu não és assim, tu não és essa educadora...


Ri-me a abracei-o. Lá fomos para a sala e nesse dia não fizemos ensaios. Nos outros, que se seguiram, ensaiámos sem pressa e com o menino a fazer de encenador, dando a sua opinião e sugestões aos companheiros. Tínhamos combinado que essa seria a sua função, em conjunto comigo, situação que aceitou de bom agrado e fazia na perfeição. Foi fundamental no apoio aos colegas e ele sabia disso.

Sempre que é natal e estou no jardim de infância a trabalhar lembro-me do R.  e tento ser a educadora que ele me disse que era, em forma de chamada de atenção e aviso. Tento não perder o norte das minhas convicções e não encher as crianças de mil tarefas esgotantes e às vezes pouco significativas sobre o natal 

 E tento sobretudo respeitar aqueles que por opção ou condição familiar, o vivem de outra forma. Para que a inclusão seja uma prática e a pedagogia não fique esquecida, com as festas e as luzes do pai natal.  

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