sábado, 1 de março de 2014

Inspiração

Falaram-lhe que sim, que era possível, bastava abrir o coração e escutar alguns dialetos de ternura. Disseram-lhe que não desesperasse, as palavras não fogem de repente nem a vontade de vislumbrar milagres em dias de rotinas cansadas. Segredaram-lhe algumas mezinhas, coisas que já tinham provado serem infalíveis, lenços atados dentro de gavetas, cordéis à volta de mesas, orações em altares inventados, mas a mulher a tudo virou o rosto e disse não. Sentia o frio do silêncio nas madrugadas sem sono e descobrira, com surpresa, o papel em branco, onde antes tinha desenhado letras e frases de amor, com caligrafia cuidada. Não se atreveu a partilhar tal descoberta, por certo a incluiriam em mais um devaneio. E não queria, perdida já se sentia. 

Largou tudo o que tinha, amizades antigas e recentes, anéis e brincos de trazer em dia de festa, papéis e livros de renovar ânimos, o quente da manta e as pantufas dos dias cinzentos e partiu. Não deixou recado, não saberia como dizer ao que queria ir. Mas foi.

Uma força pequena mas urgente levou-a a fazer caminho, rua atrás de rua, beco trás de beco, silvas e ervas daninhas, muros caídos e casas com redes à porta, até avistar o mar.
Cansada sentou-se na areia, no ponto mais alto das dunas que ali estavam a aguardar as marés. E assim esteve durante um tempo que pareceram dias, avistando o rebentar das ondas, o voo das gaivotas em terra, a brisa do vento a despentear os cabelos, a areia a cobrir o regaço, o vestido a fazer de toalha.  

E assim ficou, mão sobre o coração para o sentir bater, a olhar o teto do mundo, um céu azul de pintor dedicado. Tanto céu e tanto mar, tanto silêncio de gente e tanta presença de vida. A essencial, pensou, a mais despida de ornamentações, a mais nua e crua, límpida e bela, ainda que fria e cortante em dias de inverno.

Ali ficou, sem nada que a distraísse, frente a frente com a sua circunstância, a ouvi-la e a tentar entendê-la. E foi assim que pôde regressar ao seu lugar, cheia de si e das palavras que sentira arredadas de si, no meio da cidade onde vive.

Quando lhe perguntaram por onde tinha andado, não respondeu, certa de que não saberia falar condignamente do vento que sopra do norte, em praias de dunas desertas e caso se saiba escutar, arrasta-nos para a certeza das palavras que nos definem.

Sem comentários:

Enviar um comentário