Domingo. Já cheira a natal, embora eu ainda não sinta.
O sol veio de visita, morno e amigo, nesta manha fria. Ainda bem. Ajuda a espantar o nevoeiro das ideias e a escuridão dos medos. Inunda tudo de claridade, o que é uma bem para o corpo e a alma. Apesar disso, não liberta as palavras que trago encolhidas no coração. Estão compactadas, sinto, e não há espaço para as distender. Aguardemos que o tempo ajude a construir uma composição mais percetivel e transparente: as palavras bem alinhadas, umas a seguir às outras, com os múltiplos sentidos a descoberto.
Enquanto isto, persigo ideias e sons, junto sentimentos e emoções e olho-me ao espelho dos dias. Penso nas crianças da sala. Vejo-lhes os risos e a zangas, permaneço um pouco naqueles que ainda procuram um lugar no grupo. Zangam-se e protestam, numa ladainha decorada pela presença de sofrimento. Sei que é isso, quem bate quer abraços, ainda que também segurança e apoio. Quem se zanga com muita regularidade, grita por adultos que os ajudem a serenar. Se não, ficam invadidos pelo medo dos seus impulsos, que não conseguem gerir. Lá na sala, ainda existem muitos meninos e meninas assim.
E existem outros, que já se libertaram das amarras das suas dores e que iniciam um tempo e um processo de lugar no grupo, na rotina e nos projetos. Aprenderam o sentido de estar em conjunto, decidir, investir e avaliar. Não são muitos, mas estão lá, realizam os nossos desejos mais profundos de uma pedagogia estruturada e democrática. Confirmam a nossa necessidade profunda de sucesso como profissionais. Apesar de não o confessarmos, devolvem-nos uma imagem de competência. Mas são muitas vezes os menos apoiados, porque os deixamos entregues à sua autonomia, na impossibilidade de responder a todos. Descubro, muitas vezes, os seus olhos a pedirem colo. E corro para o dar, mas está sempre muito ocupado e cheio das histórias e dos corpos dos meninos e meninas mais inquietos. E sinto a minha limitação como pessoa e educadora. Não chego para tanta vida e tantos desafios.
Nesta(s) dualidade(s) diária vou fazendo o melhor que sei, sentindo que não me chega a experiência, o saber e a emoção que me caracteriza. Nem as estratégias que procuro, regularmente. Mas não há como desistir. nem como não alimentar a vontade de continuar, com verdade, a tentar dar o melhor de mim. A isso estou eticamente obrigada, porque a educação é um compromisso ético.
Aconchego-me então em alguns ditos de quem pensou a educação das crianças no mundo
" A criança precisa de ser frustrada para sentir que não pode possuir tudo e para poder pensar em vez de fazer; de ser contrariada para sentir que há outros interesses para além do seus; de sentir agressividade e também de a manifestar; de ter pais e educadores reais e não seres convencionais, frios, dogmáticos, daqueles que fazem educação pelo manual. Precisa de desobedecer para aprender o que é a desobediência; precisa de fazer experiências dolorosas para aprender a conhecer e compreender a dor; a criança precisa de ser educada com verdade” (João dos Santos, 1991)
Mais uma vez a Manuela coloca em texto aquilo que muitos educadores, como eu, vivem e sentem nas suas vidas e reflexões do dia a dia.
ResponderEliminarE isso ajuda-nos a sentir que não estamos sós, há mais como nós!
Beijinhos e uma boa semana, que sejam semanas cada vez mais cheias de meninos "que já se libertaram das amarras das suas dores e que iniciam um tempo e um processo de lugar no grupo, na rotina e nos projetos"... porque isso, realmente, nos "devolve uma imagem de competência" e nos ajuda, nos impele a continuar, apesar de tudo o resto.
Muito obrigada pelo apoio e concordância. É que me sinto muitas vezes "estrangeira" na forma como faço o trabalho com as crianças...e em certos meios, não somos entendidas!
EliminarBjs e uma boa semana também
Obrigada . Ao ler os teus textos tão verdadeiros e sinceros, tão genuínos e profundos, recordo tempos passados e sinto-me acompanhada.
EliminarBeijos e boa semana
É muito agradável ler o que escreve. É mesmo assim, sem reticências. Reflexo de muita lucidez e de uma visão do tamanho do mundo. Um abraço.
ResponderEliminarObrigada. Gostava muito de ter essa lucidez que fala, mas às vezes duvido!
EliminarBoa semana
Mais um excelente texto texto...Boa semana...aproveita o sol com os teus meninos... Obrigada pela partilha.
ResponderEliminarRevejo-me também nessas palavras, tão sabiamente escritas...
ResponderEliminarÉ tão bom ler o que escreve! E não se sinta estrangeira. Há aqui algumas de nós a falar a mesma linguagem, e isso faz-nos estar mais perto umas das outras, mesmo estando longe.
ResponderEliminarBoa semana